segunda-feira, outubro 04, 2010

MARCELO DE PAIVA ABREU

Costeando alambrados
Marcelo de Paiva Abreu
O Estado de S. Paulo - 04/10/2010

Escrevo antes de ser conhecido o resultado do primeiro turno da eleição presidencial. Será Dilma Rousseff vitoriosa no primeiro turno? Ou será que a reversão do apoio à candidata oficial detectada nos últimos dias foi suficiente para assegurar um segundo turno? Do ponto de vista da economia brasileira, a opção entre José Serra e Dilma Rousseff não é caracterizada por contrastes muito marcantes. Em ambos os casos há motivos para preocupações, a despeito do clima de euforia de manada.

A eleição de Dilma no primeiro turno remove apenas parcialmente as incertezas com relação à natureza do novo governo. Numa eleição marcada pela ausência de programas coerentes, os eleitores ficam à mercê de conjecturas quanto às políticas que mais provavelmente serão adotadas pelos candidatos.

Uma das maiores contribuições de Leonel Brizola ao folclore político nacional foi a difusão da expressão gaúcha "costear o alambrado" - própria para designar comportamento de gado propenso à fuga - para caracterizar políticos que se preparam para trocar de lado. A expressão é também útil quando aplicada a mudanças abruptas de postura em relação a promessas eleitorais.

Dilma Rousseff tem experiência em costear alambrado do ponto de vista partidário: depois de longa militância pedetista, terminou no PT, já no século 21. É alto o risco de que volte a costear o alambrado, agora renegando compromissos eleitorais, especialmente em relação à política monetária e ao gasto público. De fato, seria um costeio do alambrado na contramão de cambalhota anterior, pois voltaria às suas posições originais de hostilidade à coerência da política macroeconômica. De fato, a sua revisão de posições adotadas no passado foi bastante facilitada pela resistência que marcou a campanha de José Serra em fazer uso da herança macroeconômica do governo FHC.

No último biênio, em especial, a postura do governo Lula com relação a gasto público tem sido extremamente imprudente. A racionalização anticíclica brandida de início deixou de ser válida e, mesmo assim, o governo foi em frente, usando de expedientes canhestros para tornar menos transparentes as suas estripulias financeiras. O clima é de gastança a todo vapor. Impera o banzo da política econômica do homem cordial, uma recidiva de outros tempos em que, nas palavras de Lucas Lopes, nas suas reminiscências sobre JK, reinava um desenvolvimentismo à outrance que pouco se incomodava em como as obras seriam financiadas.

Talvez por conta do passado pedetista da candidata governista, têm sido frequentes as análises que enfatizam a continuidade entre o lulismo - e, portanto, o dilmismo, seu caudatário integral - e o varguismo. Getúlio Vargas, segundo a versão canônica do folclore oficial, assegurou um governo "nacional e popular", baseado na "aliança entre a classe trabalhadora, o empresário nacionalista e o estamento militar". Visão bastante deformada do caudilho que se democratizou. A sua escolha de ministros dificilmente poderia caracterizar um governo "nacional e popular". Horácio Lafer e Oswaldo Aranha, nos anos 50, foram nomes de compromisso na área econômica, tal como haviam sido os ministros econômicos antes de 1945. De fato, a fórmula varguista, baseada na escolha de nome de compromisso para estar à frente da equipe econômica, poderia estimular Dilma Rousseff a emulá-lo e seguir o mesmo caminho. Os indícios, entretanto, são de que isso dificilmente ocorrerá.

Dilma provavelmente acabará saltando de volta o alambrado, dando continuidade à política econômica do segundo mandato de Lula, e não à política prudente herdada de FHC, mantida por Lula no primeiro mandato. O que impressiona no momento atual é um certo embotamento da capacidade coletiva de percepção - no Brasil e no exterior - de quão sério tem sido o reposicionamento da coalizão governista quanto à política macroeconômica. Com o leite derramado, qualquer correção de rumos será certamente muito mais custosa.

Mesmo que haja segundo turno, a vitória da candidata oficial ainda seria muito mais provável do que a vitória da oposição. Os riscos relativos à condução da política econômica apontados acima seriam semelhantes. A diferença relevante seria, talvez, a preservação de uma coalizão oposicionista menos frágil e consequentemente mais eficiente nas críticas às ações do governo. É muito difícil a vitória final da oposição e, ainda assim, não seria sem riscos, em vista da patente falta de compromisso do principal candidato oposicionista com a política econômica adotada no governo FHC.

A campanha eleitoral mostrou a força da democracia e, também, as debilidades do processo político brasileiro, em especial o quase completo desaparecimento de partidos e, mais ainda, de programas críveis. É lamentável que, para não perder a oportunidade magnífica de decolar economicamente, na esteira das descobertas do pré-sal e da expansão da fronteira agrícola, o Brasil ainda deva depender tanto da sorte e tão pouco de suas lideranças políticas. Apertem os cintos.

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