Nada é mais difícil de suportar do que uma sucessão de dias belos”, dizia Goethe exprimindo um pessimismo que até mesmo Freud — de quem eu tiro a referência e que teve um senso implacável de finitude e da honestidade que tal sentimento acarreta — remarca: mas isso pode ser um exagero! Ninguém pode duvidar do exagero, mas o que seria de nós sem as caricaturas e as ocasiões em que as usamos, livremente, abertamente, como no carnaval que acaba de passar e já foi devidamente esquecido? E que teve seus ritos marcados por dias de glorioso sol e calor, facilitando a nossa imagem tropical (e canibal) desta festa nascida na cristandade europeia e lá celebrada em pleno frio? Confesso que, em pleno tempo de folia, pensei nessa busca de contrários que é o sal da vida porque cansei um pouco de tanto feriado e de tanto tempo livre. Esse tempo livre que nos livra das obrigações coletivas mas, em compensação, traz à tona nossos hóspedes não convidados: nossas inseguranças e fronteiras.
Mas não perdi por esperar porque, na quinta-feira, a chuva derramou um claro sentimento de normalidade e rotina, comuns depois da celebração carnavalesca que renega o trabalho e recusa definir um objeto, sujeito ou alvo exclusivo. Se a festa, dizem alguns entendidos, começa com uma formalidade, ela deve terminar informalmente.
Já a mascarada carnavalesca que promove uma gigantesca troca de papéis sociais e faz do mundo um palco, e não mais uma oficina, acaba com o retorno relâmpago aos papéis que normalmente a vida nos impinge. O destaque sabe que é mesmo um subempregado na Quarta-Feira de Cinzas, quando é novamente arrochado em suas obrigações. Salvo se consegue ficar entre (ou com) esses dois mundos.
Um sintoma de juventude é a dificuldade de ajustamento aos papéis obrigatórios, sobretudo os baseados em dinheiro, poder e prestígio. Aos vinte e pouco anos, não era fácil aceitar o fim da festa e nas derradeiras horas da Terça-Feira Gorda, cantávamos com amargura o refrão: “É hoje só, amanhã não tem mais!” pulando com força, num protesto de arrombar o chão. Hoje, eu não tenho mais nenhuma dificuldade em tirar a máscara para voltar aos meus papéis habituais porque faz tempo que aprendi (será preciso citar Shakespeare?) que o mundo é um palco e que todos nós — querendo ou não — somos atores com tempo determinado para o desempenho de nossos papéis, com hora de entrada e, eis o susto necessário e suficiente, de saída.
Afinal, quem é que aguenta um verão com mil janeiros? E com um milhão de peitos e bundas devidamente siliconados? Quem não acaba um pouco enjoado com a convivência com todos esses deuses pedindo admiração exclusiva, fazendo o mundo ficar feminino e arredondado? Na quinta-feira, voltando ao normal, andei (em vez de dançar) na rua, rumo ao trabalho. Entrei num táxi e recebi o primeiro choque: ouvi no radio que um dos assassinos de João Hélio, o menino arrastado e morto por dois assaltantes num crime hediondo no Rio e Janeiro, fora posto em liberdade. O formalismo hierárquico brasileiro condena pela idade, tal como na universidade o sujeito ganha mais ou menos não pelo que escreve, mas pelo tempo de casa! Cuida-se mais de quem cometeu do que do crime. Em nosso mundo, há quem seja inocente por essência ou santo por ter abraçado alguma causa.
Não examinamos a mensagem em relação ao missionário já que, na nossa cabeça, a boa reza faz o santo, o que deixa de fora os casos em que as grandes causas são usadas para a bandidagem. Um governador, porém, foi finalmente preso! Sim. Mas num local especial. Não temos dúvida que logo será libertado porque, tal como ocorre no carnaval, ninguém segura um “homem grande” preso por muito tempo. Eles são sempre maiores que as prisões.
O motorista está revoltado. Como a maioria, ele confunde limite com força sendo favorável à violência para liquidar a violência. Se o carnaval exagera na presença do luxo para acabar com o fosso entre ricos e pobres, as pessoas comuns acham que só um governo duro e autoritário pode inverter o curso da história, criando mais igualitarismo. Para o taxista, bandido tem que morrer; tal como, para alguns dos meus conhecidos, banqueiros, fazendeiros e comerciantes têm que ser destituídos de seus penachos. Uma lei geral, perfeita como o carnaval, será o instrumento de um estado generoso, provedor e onipotente que vai resolver todos os problemas do povo. Freudianamente, a pátria vira mátria.
Chegando ao meu destino, eu não tinha mais nenhuma dúvida que o carnaval havia acabado. Ele terminava naquilo que nós, brasileirinhos da gema, chamamos de “a dura realidade da vida”. Esse muro que, até hoje, nós só pensamos em pular, jamais em desconstruir e, mesmo assim, só nos dias de Momo.
ROBERTO DaMATTA é antropólogo |
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