Conta movimento, versão 2010
O ESTADO DE SÃO PAULO - 15/02/10
A ideia de animais vindos do passado atemorizando os viventes é tema recorrente na ficção. Michael Crichton, por exemplo, explora o assunto no romance Jurassic Park, cuja versão cinematográfica alcançou grande sucesso. Felizmente, para a tranquilidade geral, experimentos como o da clonagem de dinossauros não chegaram ainda ao mundo real e, nesse particular, podemos todos seguir dormindo tranquilos.
No campo das políticas públicas, contudo, as coisas se passam de modo diferente e criaturas jurássicas recém-clonadas podem fazer mal, muito mal. Não raro, os viventes são surpreendidos e atemorizados por criaturas do passado que se julgavam extintas e apenas de interesse histórico. Esse é tipicamente o caso do ensaio de ressurreição, pelo governo Lula, de um animal institucional que tem o DNA da extinta conta movimento, para permitir a realização de gigantescos aportes de recursos a bancos oficiais.
Trata-se das operações de emissão de dívida pública mobiliária para capitalizar ou realizar empréstimos a bancos públicos oficiais, notadamente o BNDES. O que ocorre nessas operações é a expansão do endividamento bruto do Tesouro e a criação simultânea de um direito contra o BNDES ou outro banco oficial federal, sob forma de capital ou de crédito. Embora sob a ótica da dívida líquida do setor público tal operação pareça inofensiva, suas implicações fiscais e monetárias são bem menos benignas, haja vista a expansão do endividamento bruto do governo.
Nos tempos jurássicos das finanças públicas, a conta movimento era o mecanismo pelo qual o Banco Central (BC) supria o Banco do Brasil (BB) de recursos que eram utilizados na expansão dos ativos consolidados do sistema bancário (em particular do próprio BB). Essa conta permitia a liberação de empréstimos e financiamentos, no interesse de programas de governo, sem que estes constassem do orçamento fiscal.
A conta movimento teve seu auge nos anos 1970, pois era peça-chave da estratégia desenvolvimentista dos governos de então, que exigia a utilização do Banco Central como banco de fomento, num processo continuado de expansão monetária ou de elevação da dívida mobiliária.
A extinção da conta movimento só veio no final dos anos 1980, com a reforma das finanças públicas, quando também houve a incorporação do orçamento monetário ao Orçamento-Geral da União, a perda das funções de fomento pelo Banco Central e a criação da Secretaria do Tesouro Nacional.
De todo modo, a bagunça monetária e fiscal viabilizada pela conta movimento foi um dos responsáveis diretos pela instalação do processo inflacionário crônico no País, que somente foi revertido no Plano Real. Assim, o fim da conta movimento representou um grande avanço para assegurar a estabilidade e o crescimento econômico sustentado no País.
A tendência recente à banalização das emissões de dívida mobiliária para sustentar o crescimento dos ativos dos bancos públicos implica pôr em marcha um mecanismo que tem semelhança genética com a conta movimento, pelas suas implicações no mercado monetário, não obstante tais operações integrarem o orçamento fiscal. Em 2009, por exemplo, houve emissão de dívida pública federal no montante de R$ 105 bilhões, sem contrapartida financeira, sendo os papéis correspondentes entregues ao BNDES para venda em mercado, à medida que o banco tenha necessidade de caixa. A questão é que a venda desses títulos provoca, "ceteris paribus", um desequilíbrio no mercado monetário, o que implica a necessidade de o Banco Central monetizar tais papéis, gerando expansão da liquidez. Dependendo do montante e da frequência desse tipo de operação, o BC pode se tornar tão passivo no processo quanto o era nos tempos da conta movimento.
Por óbvio, o problema não está na realização de operações isoladas de capitalização dos bancos oficiais federais com recursos advindos da emissão de dívida pública, no bojo de um processo normal de expansão dessas instituições e no contexto de uma política fiscal responsável. Igualmente não haveria inconveniente, sob esse aspecto, se o crescimento desses bancos estiver baseado em captações no mercado. Grave erro seria o governo embarcar numa política de desmedida expansão das operações oficiais de crédito via emissão de dívida pública, replicando a perversa estratégia dos anos 1970 e 1980. No momento, esse risco existe, dado o forte discurso ideológico de alguns integrantes do governo a respeito do papel do Estado e de suas instituições financeiras no desenvolvimento econômico.
Em conclusão, a réplica nos dias atuais do modelo "desenvolvimentista" baseado no crescimento das operações oficiais de crédito, tendo como agentes os bancos federais, representaria um grande retrocesso institucional que poderia colocar em sério risco as conquistas econômicas dos últimos anos.
Por tudo isso, seria recomendável que o governo Lula (e seu sucessor, obviamente) abandonasse definitivamente a ideia de trazer à vida dinossauros extintos. Deixemos isso para os ficcionistas. É muito mais seguro.
Gustavo Loyola, sócio-diretor da Tendências Consultoria, foi presidente do BC
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