segunda-feira, janeiro 11, 2010

SANDRA CAVALCANTI

O muro que precisa ser derrubado

O Estado de S. Paulo - 11/01/2010


Assim que assumi a Secretaria dos Serviços Sociais do governo Carlos Lacerda, nos idos de fevereiro de 1962, tomou corpo a ideia de um Plano de Habitação destinado à população mais pobre do novo Estado da Guanabara. A ideia era simples: em áreas situadas às margens de vias urbanas, onde seria fácil instalar redes de luz, água e esgoto, a Cohab, companhia de habitação que integrava a nova secretaria, construiria condomínios de casas populares. Ali seriam implantados os serviços públicos que caracterizam os centros urbanos: escola, postos de saúde e de atendimento social, áreas de recreação, locais para cultura, espaços para reuniões e igrejas, além de vias de acesso para coleta de lixo, corpo de bombeiros, polícia e ambulância. Esses condomínios se integrariam aos bairros que fossem construídos, todos eles já servidos por eficientes redes de transporte coletivo.

O alvo mais importante do plano era oferecer aos moradores das favelas uma nova condição de cidadania: passar de "favelados" a "urbanizados".

Essa questão foi a marca dos projetos que realizamos no governo de Carlos Lacerda e, depois, por meio do Banco Nacional da Habitação (BNH), em vários governos de vários Estados: nunca pensar em urbanizar a favela! Nunca! Pensar primeiro nos favelados. Ainda quando não fosse necessário retirá-los das áreas por eles ocupadas, o objetivo era torná-los cidadãos iguais aos demais. Tínhamos o objetivo de libertar o favelado do curral eleitoral urbano onde ele vivia, totalmente dependente do chefete local, que mandava em nome de políticos corruptos. Como ainda hoje!

Pelo nosso plano, quando o morador de uma favela era levado para sua nova moradia, já entrava nela como proprietário legal. Nada desses falsos papéis de posses escusas e mentirosas. Nada de garantias ilegais, como hoje. Nada disso! O contrato era simples: 15 anos para pagar a prestação mensal; conforme o imóvel, variava de 10% a 15% do salário mínimo que estivesse em vigor. Vale lembrar que o País não tinha moeda. A inflação, deixada pela aventura de Brasília e agravada pela situação mundial, já rondava os 37% ao ano. Acabou chegando perto de 84%, antes da salvação do Real, em 1994.

Os primeiros condomínios, a que demos o nome de vilas, ficavam em excelentes áreas suburbanas, servidas por trens, ônibus, ruas calçadas e iluminadas. Infelizmente, qualquer possibilidade de privilegiar o instituto da propriedade privada significava, para a esquerda tupiniquim, uma verdadeira desgraça ideológica.

Mesmo assim, posto em prática, em três anos de pacífica organização, o governo de Carlos Lacerda conseguiu um resultado fantástico. Até hoje me comove a lembrança de vários chefes de família, com os olhos cheios de lágrimas, recebendo a escritura das casas que iam começar a comprar. Tanto o plano da Cohab da Guanabara como, depois, o das cooperativas do BNH, todos ofereceram a milhares de famílias, retiradas de áreas faveladas, a oportunidade de passarem a viver os direitos e os deveres da verdadeira cidadania, sob o império da lei. Em nível de igualdade social, como qualquer outro habitante do Rio. Com as mesmas responsabilidades, as mesmas conquistas urbanas, sanitárias, sociais e culturais.

Por causa disso, claro, tivemos de enfrentar uma guerra incessante. Nem a esquerda fanática, nem os exploradores dos currais eleitorais engoliram os fatos. A aliança política maldita que, para azar nosso, continua a mandar no Brasil, populistas de direita conluiados aos de esquerda, barra até hoje esses projetos. Retirar favelados instalados nas margens infectas de lamaçais, rios e lagoas, ou pendurados perigosamente em encostas traiçoeiramente frágeis, ou em devastadas colinas das serras da mata atlântica, nem pensar! Falar nisso virou tabu.

Para impedir esse projeto foi erguido um muro de burrice preconceituosa, formado pelos mais conhecidos líderes do atraso. A esquerda clerical. Os despreparados líderes universitários do Rio, de Minas e de São Paulo. Os famosos gênios "urbanistas" que projetaram Brasília e a Barra da Tijuca sem rede de esgotos, de água e de transporte coletivo. Os bem-aventurados arquitetos donos até hoje da "reserva de mercado dos projetos da capital", que nem banheiros para as damas souberam incluir nas dependências do plenário do Congresso. Esse é o muro!

Enquanto isso, as metrópoles foram inchando. E os favelados, chegando. E todos continuando favelados. Nunca foram urbanizados. No Rio, na "era Brizola", sem apoio legal algum, foi permitida a construção dos barracos de alvenaria. As autoridades foram impedidas de entrar nas favelas para exigir o cumprimento das leis municipais e estaduais sobre edificação. O exemplo do caudilho gaúcho foi imitado em outras cidades, para azar delas. E os recursos municipais e estaduais oriundos dos corretos pagadores de impostos foram sendo desviados para obras tipicamente eleitoreiras.

Daí por diante, as favelas passaram a ser as cidadelas ideais para sediar o crime organizado, principalmente o tráfico de drogas. O dinheiro e o medo mandam nas eleições. E reina a lei do silêncio.

Os moradores das áreas de risco sabem que a qualquer momento, nas chuvas torrenciais do fim do verão, podem ser soterrados por avalanches ou pela queda dos prédios irregulares, ilegais e mal construídos, sem nenhuma possibilidade de resistirem a uma tromba-d"água. Retirá-los de lá é considerado um ato desumano.

Os coronéis são outros. As posturas municipais não existem. Mas há sempre um "dono"... Assim que a lama secar, assim que as dificuldades forem vencidas, o muro da burrice preconceituosa vai continuar. Ninguém impedirá que outros se instalem ilegalmente em áreas de risco ou de edificação proibida. Menos ainda alguém oferecerá uma saída legal para os encurralados... Esse muro não será derrubado.

Sandra Cavalcanti, professora, jornalista, foi deputada federal constituinte, fundou e presidiu o BNH no governo Castelo Branco

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