terça-feira, dezembro 15, 2009

SANDRA CAVALCANTI

Caras de anjo enganam caras de pau


O Estado de S. Paulo - 15/12/2009

Tinha de acontecer! Estava escrito e só não viu quem não quis ver... Os três Poderes, instalados em Brasília, estão sendo afogados pelo tsunami das ilegalidades consentidas. São caras de anjo enganando caras de pau. E vice-versa!

A História ensina que a democracia só dá bons frutos quando funciona sob a eterna e atenta vigilância de um povo livre e consciente. Do contrário, tudo apodrece.

Infelizmente, a capital do Brasil não produz vigilantes... Uma epidemia de cumplicidades tomou conta daquele silencioso e distante planalto. Ali só se ouvem murmúrios e sussurros. Conversas sempre cifradas. Personagens que se empenham em esconder o que pensam e o que fazem. Caras de anjo que enganam caras de pau e caras de pau que fingem estar sendo enganados...

Primeiro veio o mensalão do PT. Foi um susto, pois o partido era o porta estandarte da moralidade política. Depois apareceu o mensalinho mineiro, exatamente dentro do mesmo modelo. Agora, o mensalão brasiliense, sempre dentro do mesmo modelo.

Por conta deles, várias informações sobre mensalinhos anteriores, só agora descobertos e identificados. Todos seguindo o mesmo modelo: o que o Marcos Valério tornou famoso, que o Dirceu aprovou e para o qual o Delúbio criou toda uma logística.

Podem escrever: ainda vão surgir outros por aí, porque, na verdade, como sentenciou o grande pajé, "tudo isso é caixa 2 e todo mundo sempre fez..."

Muitos sociólogos (!) e cientistas políticos (!) estão oferecendo análises profundas, explicando que a corrupção mora na alma do brasileiro e que todo mundo, em nosso país, por meio do famoso jeitinho ou do sabe-com-quem-está-falando, age assim. Daí a leniência de nossas autoridades e daí a impunidade geral!

O fato é que esse presidencialismo caudilhesco, pelego, sindical, oligárquico e imperial, vigorando há tantos anos, é que cria todas as condições e fornece todas as ocasiões. Depois, providencia as desculpas.

Neste nosso sistema, quando o presidente da República se elege sem que, na mesma eleição e juntamente com ele, fique formada uma segura e legítima base majoritária no Legislativo, o resultado é sempre o mesmo: ou ele compra os aliados, para fingir que governa com o Legislativo, ou dá um golpe.

Tem sido assim ao longo de toda a nossa História republicana. No período da monarquia parlamentar, durante quase sete décadas, o Brasil não viveu um só dia de desobediência às normas constitucionais. Nunca houve estado de sítio nem censura à imprensa. Sem maioria eleita pelo povo, o Gabinete caía e o povo era, de novo, chamado a escolher. Democracia.

Após a implantação da República, durante quase cem anos tivemos dezenas de golpes, quarteladas, revoluções, insurreições e mudanças de Constituição. Sempre por falta de maioria no Congresso. Essa foi a origem do voto proporcional, imposto por Vargas, quando todos os poderes vigilantes dos eleitores do Brasil foram retirados. Esse tipo de voto, além disso, ainda conseguiu ser piorado com a diabólica invenção do coeficiente eleitoral, no governo Geisel. O povo dançou de vez.

O eleitor, no Brasil, é um simples coadjuvante. Nunca tem papel principal e nem sabe o que é voto proporcional... O coitado vota no seu candidato, crente que escolheu alguém. Mal sabe que o voto dele vai servir para eleger outro, que ele talvez nem conheça. Trata-se de uma manobra perversa.

O voto proporcional acabou com o distrito eleitoral. O distrito eleitoral do cidadão passou a ser o seu Estado e o seu município. Para presidente o distrito eleitoral é o País inteiro. E ainda dizem que somos uma República Federativa!

Por conta dessa perversidade política, o eleitor fica a anos-luz de distância dos candidatos. Para estes, o território a ser trabalhado fica imenso. Por isso as campanhas ficaram tão caras, tão dependentes de rádio, televisão, seitas, ONGs e "contribuições generosas de grandes empresas"...

Fica fácil entender a origem do caixa 2. Sujeitas às leis fiscais, as empresas são levadas a encontrar caminhos para financiar os candidatos que lhes parecem ser úteis para seus municípios ou Estados. Mesmo com a ajuda da chamada "propaganda gratuita" no rádio e na TV, os partidos ficam na dependência desses grandes arranjos.

Não é fácil ser candidato a deputado federal num Estado grande ou populoso. Onde, para ir da capital a outra cidade, ele vai levar três dias de embarcação. Ou quatro horas de avião. Ou enfrentar 12 horas de estradas caindo aos pedaços. Daí a importância das telecomunicações. Daí a importância dos minutos de TV e de rádio. Daí essas coligações espúrias, feitas apenas para somar segundos.

Quem provoca caixa 2 é o nosso processo eleitoral! Só quem tem como manobrar caixa 2 faz maioria legislativa. Fica com os representantes do povo em suas rédeas. Faz o que bem entende com o Legislativo, com o orçamento e com a opinião pública.

Isso explica por que jamais será feita uma reforma política neste país. Os donos do poder não querem. Não interessa a eles. E essa história de o atual presidente dizer que enviou uma proposta ao Congresso é um escárnio! Ao contrário, Lula e o PT acabaram com a cláusula de barreira assim que puderam. Montaram um esquema de facilidades para infidelidades. Inventaram tortuosos caminhos para um tal de financiamento público, que é uma vergonha. E agora, quando o último mensalão foi praticado por políticos fora do PT, o chefão estufa o peito e acha que está na hora de tomar providências. Que providências? As que ele tomou com a sua gente? Tirando o autor da denúncia e o líder que foi apanhado com a boca na botija, quem sofreu alguma coisa?

Conversa. Conversa de cara de pau querendo enganar cara de anjo. Ou vice-versa...

Sandra Cavalcanti, professora, jornalista, foi deputada federal
constituinte, secretária de Serviços Sociais no governo Carlos Lacerda, fundou e presidiu o BNH no governo Castelo Branco.

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