A verdadeira escatologia
FOLHA DE SÃO PAULO - 16/12/09
Se havia em Paris uma livraria capaz de ter o livro, só podia ser a Shakespeare & Co., cuja fundadora, a americana Sylvia Beach, publicara o Ulysses, de James Joyce, em 1922, sustentara o irlandês pelos anos que ele levara para escrever o romance e ainda lhe lavava as cuecas. Ao sair, Ulysses teve sua circulação proibida nos EUA por conter meia dúzia de palavrões. A Shakespeare & Co. era avançada, pelo menos no tempo de Sylvia Beach.
Nem tanto em 1989, no bicentenário da Revolução. Como havia duas senhoras no recinto, eu quase sussurrara o título do livro ao ouvido do vendedor, um senhor já entrado em anos. Mas bastou-lhe ouvir a palavra mágica (merde) para começar a vociferar em “franglais”, certamente usando expressões contidas no dicionário. Era óbvio que ele não sabia do livro e interpretou o pedido como um trote de turista ou coisa assim. Pois também me fiz de ofendido e passei anos sem voltar à livraria.
Outro dia, no Maranhão, o presidente Lula falou “merda” duas vezes em rede nacional. E, na minha opinião, sem nenhum problema, exceto por um certo arranhão na compostura inerente ao cargo. Mas quem ainda se surpreende com ele?
Mais grave e, de fato, imoral foi o que antecedeu a palavra chula: “Tem que conversar com quem tem votos”, disse Lula. “Não se trata de ter amigos ou não ter amigos. Não se trata de ter afinidade ideológica ou não ter afinidade ideológica. Se trata de pragmatismo, governança.” Tsk, tsk, tsk.
A “realpolitik” é a verdadeira escatologia.
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