domingo, novembro 08, 2009

OPINIÃO - O GLOBO

1989

O GLOBO - 08/11/09

A História às vezes parece andar se arrastando, com passos de tartaruga.

Mas, de repente, pode saltar como um felino.

Assim foi em 1989, ano tão histórico quanto 1789, ou 1917. Um império que parecia destinado a uma longa existência, um dos polos de poder do mundo, desaparecia como que num passe de mágica, sem grandes conflitos, quase sem derramamento de sangue.

Naquele momento crítico, a rapidez dos acontecimentos foi extraordinária.

A 19 de agosto de 1989, a Hungria abriu suas fronteiras a alemães orientais que queriam entrar no lado ocidental.

No dia 9 de novembro, o Muro de Berlim veio abaixo quase que por acaso, em seguida a uma declaração mal entendida de um funcionário do leste alemão. A 17 de novembro, a “revolução de veludo” promovia a troca de regime em Praga. Em dezembro, na Romênia, o tirano Ceausescu foi apeado do poder e imediatamente executado. A URSS ainda seguiu o seu caminho, trôpega, por algum tempo; mas em menos de dois anos as 15 repúblicas soviéticas proclamavam a sua soberania, e um Gorbatchov ainda desejoso de manter o status quo era atropelado por Boris Yeltsin, que se convertera no homem da hora.

O qu e a c o n t e c e u que justificasse mudanças tão drásticas? Livro sobre livro tem sido escrito para tentar explicar a data histórica de 20 anos atrás, cada um deles com a sua ênfase preferencial.

Mas alguns fatos são cristalinos, como a decisão de Mikhail Gorbatchov de, de repente, jogar uma luz crua sobre a realidade do sistema soviético. Foi o que ele chamou de “glasnost”, “transparência”, e que foi detalhado no livro que traçava os rumos da “perestroika” (“reconstrução”). Ali ele explicava que o sistema estava fazendo água por todos os lados, que todos os indicadores apontavam para baixo, e que não havia saída sem mudanças radicais.

Gorbatchov tinha sido selecionado, alguns anos antes, como o dirigente “jovem” que poderia trazer ar fresco a um sistema combalido.

Foi o que ele tentou com a “perestroika”. Mas logo se viu que o regime não tolerava esse grau de abertura: bastou um pouco de ar para que a casa inteira viesse abaixo.

Assim se demonstrava, também, que os fatos históricos podem ter razões complexas, e poderosas, mas que eles se modificam de acordo com os indivíduos que estão à frente dos acontecimentos.

Se, em vez de Gorbatchov, estivessem no comando homens como Andropov e Chernenko (seus dois antecessores), certamente continuaria a resistência à mudança. Ela ia acontecer em prazo maior, e a um custo muito mais alto. A Gorbatchov, o mérito indiscutível de ter colaborado com o inevitável.

Outros atores também influíram vigorosamente — como o “papa polonês”, João Paulo II, cuja eleição, em 1979, certamente trouxe ânimo e inspiração ao movimento sindical liderado por Lech Walesa — o Solidariedade. Na defesa dos operários poloneses, o papa estabeleceu com o presidente americano Ronald Reagan uma parceria altamente eficaz.

E não se pode esquecer as inquietações nacionalistas que fizeram correr um calafrio por todo o sistema soviético — que era um império multinacional ao estilo antigo. Esse era um problema tão grave que, com 20 anos de antecedência, a historiadora francesa Hélène Carrère D‘Encausse, no grande livro que se chama “L´Empire Éclaté”, previu que ele levaria à dissolução do império.

O paradoxal é que, em algum período entre os anos 70 e 80, o sistema parecia relativamente vigoroso, e chegou a ter apoio popular com suas políticas que garantiam saúde, educação e moradia a custo zero. São as vantagens relativas de um sistema autoritário, que faz o que quer, quando quer e como quer.

Mas, depois, vem a esclerose resultante do próprio autoritarismo, da falta de oxigênio político. Na terramãe do sistema, o autoritarismo era uma herança secular, que, desde Ivan, o Terrível, nunca fora realmente contestada.

Mas, para países do Leste europeu como a Polônia, a Hungria e a Tchecoslováquia, o estado policial e o dirigismo russo eram doenças difíceis de tolerar.

O regime central sufocou brutalmente qualquer tentativa de mudança — na Hungria, em 1956, na Tchecoslováquia, em 1968.

Mas esse endurecimento do gigante moscovita produziu maus efeitos por toda parte — um quadro caracterizado pelo segredo e pela coerção, a cultura da suspeita, a promoção dos leais à frente dos capazes, dos medrosos em lugar dos criativos.

No conjunto, as repúblicas soviéticas mostravam-se incapazes de competir com o Ocidente.

Mas, para manter algum apoio interno, não podiam retirar os subsídios que impregnavam toda a economia.

A saída encontrada foi a de empréstimos cada vez mais vultosos ao próprio sistema ocidental que a vulgata marxista vilipendiava.

Até que, num determinado momento, acendeu-se a luz vermelha.

Daí por diante, nada mais podia segurar as correntes subterrâneas da História, que afinal se manifestaram com ímpeto avassalador

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