sábado, setembro 05, 2009

DORA KRAMER

Reformar para piorar

O ESTADO DE SÃO PAULO - 05/09/09

Se era para restringir a liberdade de expressão, regulamentar o uso do caixa 2, livrar os partidos da responsabilidade por dívidas de campanha, reiterar o registro de candidatos processados e ainda cair no ridículo tentando controlar o que se passa na internet, teria sido melhor o Congresso não mexer na Lei Eleitoral.

Indolente no que tange à reforma política há quase duas décadas na agenda das providências inadiáveis, Câmara e Senado são diligentes em relação a adaptações da legislação eleitoral aos seus interesses de ocasião. É praxe: toda eleição nacional é precedida de modificações que visam a atender as conveniências dos partidos, em geral buscando sanar dificuldades enfrentadas no pleito anterior.

Com tanto a ser melhorado no sistema político-partidário, com tanto a ser corrigido nas normas que regem a relação entre representantes e representados, o Parlamento neste ano escolheu criar novos e gravíssimos defeitos. Perdeu excelente oportunidade de ficar calado.

Sua habitual tendência à omissão desta vez teria sido excelente conselheira. Consta que a ideia dos parlamentares seria a de se antecipar a possíveis ações da Justiça Eleitoral, legislando preventivamente contra o rigor do Tribunal Superior Eleitoral, em 2010 presidido pelo imprevisível ministro Joaquim Barbosa.

Seja qual tenha sido a intenção, o resultado saiu bem pior que a encomenda. O ponto mais discutido é a imposição de restrições a manifestações pela internet, estendendo ao ambiente da rede mundial já absurda regra local que proíbe a emissão de opiniões sobre candidatos no rádio e na televisão e obriga as emissoras a concederem a todos os concorrentes o mesmo espaço. Independentemente de serem competitivos ou meramente decorativos na disputa.

A Câmara aprovou, o Senado corroborou a posição na Comissão de Constituição e Justiça, mas senadores prometem corrigir a distorção na votação em plenário na semana que vem. As outras permanecerão intactas, por aceitas pela maioria. Por exemplo, as doações de dinheiro feitas aos partidos podem ser repassadas aos candidatos sem a obrigação da divulgação do nome do doador.

As chamadas “doações ocultas” são defendidas sob o argumento de que atendem ao entendimento do Supremo Tribunal Federal, segundo o qual os mandatos pertencem aos partidos e não aos candidatos.

Uma incongruência, pois a norma seguinte livra os partidos de punições por dívidas de candidatos ou de seções regionais das legendas. Ora, num caso vale a regra da responsabilidade dos partidos e no outro aplica-se o conceito oposto. Na hora de receber dinheiro, o partido prevalece. Na hora de arcar com eventuais danos, transfere-se o ônus.

Em relação ao uso da internet há várias propostas. A mais marota – pior, portanto – é a do relator Eduardo Azeredo, um defensor aguerrido da imposição de controle ao incontrolável. Ele sugere sanar o problema introduzindo no texto uma referência “explícita” à liberdade de expressão. Chove no molhado, pois com ela ou sem ela, se provocado o STF obviamente derrubará o dispositivo por inconstitucional. Exatamente por ferir o direito da livre manifestação.

A proposta menos pior é a do líder do PT, Aloizio Mercadante, que simplesmente retira do projeto quaisquer restrições. A sugestão seria a melhor se estendesse a revogação às emissoras de rádio e televisão. Por serem concessões do Estado entende-se que devem ser submetidas a controle. Ora, e desde quando o Estado está autorizado a controlar informações e opiniões? É uma forma aberta e oficializada de censura prévia.

Surpreendidos pelas críticas, os senadores quebram a cabeça para encontrar uma forma de sair dessa sinuca que, na verdade, não tem saída a não ser a desistência pura e simples de qualquer proibição. Se mantiverem, serão desmoralizados pela Justiça e principalmente pela impossibilidade prática de construir barreiras num universo sem fronteiras.

Na prática

Antes de o PT conferir alguma viabilidade a projetos eleitorais para o deputado e ex-ministro Antonio Palocci, é preciso combinar o jogo com a opinião pública e a lógica dos fatos. Palocci livrou-se de um processo no Supremo. Mas não se livrou da votação apertada em que todos os ministros reiteraram que houve realmente a quebra de sigilo bancário do caseiro Francenildo dos Santos.

Não se livrou da evidência de que pode até não ter sido o mandante, mas foi usuário comprovado do crime. Tampouco está livre da condição de cúmplice da transgressão, uma vez que recebeu o produto da quebra do sigilo, mas não denunciou – e, portanto, prevaricou – o presidente da Caixa Econômica Federal, Jorge Mattoso, a quem o STF atribui o ilícito.

Com esse passivo nas costas, são grandes as chances de a saída de uma campanha eleitoral ser ainda mais traumática e danosa, em termos de imagem, que a entrada.

Um comentário:

Unknown disse...

Tadinho do Francenildo

O governo Lula é uma fábrica de mártires republicanos.
O famigerado Roberto Jefferson, réu confesso, pego com a mão na cumbuca, teve sua biografia reformulada depois de derrubar José Dirceu. Lina Vieira, burocrata de competência discutível, comprometida politicamente, salivou um palpite insignificante sobre evento que não conseguiu provar e se transformou na Garganta Profunda do Dilmagate. Francenildo, o caseiro honesto do lupanar, sublimou as suspeitas de receber propina e cometer falsidade ideológica, entrando no panteão da moralidade.
O que une esses heróis é a cumplicidade inicial com algum tipo de ilicitude, depois renegada e expurgada publicamente. Os escândalos resultam de uma soma de conveniências: forneça-me uma vítima e eu livrarei a sua cara. Esse tráfico de interesses fica mais evidente quando verificamos que episódios muito semelhantes já tiveram desfechos quase opostos, dependendo dos personagens envolvidos.
Vazamentos para a imprensa das capivaras petistas possuem “interesse público”, são demonstrações de jornalismo investigativo. Mas divulgar tucanagens comprometedoras viola sigilo bancário, é antiético, autoritário, stalinista. Os irmãos Vedoin tentaram desmascarar o esquema dos Sanguessugas com os mesmos instrumentos usados por Jefferson, só que mexeram no ninho de José Serra, e ali ninguém bole. A lista das jujubas do casal FHC virou peça de “clara motivação política”, porque, oras bolas, onde já se viu um troço desses? – e o “dossiê” falsificado de Dilma Rousseff na Folha foi, tipo assim, um erro técnico.
Como se sabe, entretanto, este mundinho azul dá uma volta por dia. Gargalho às escâncaras diante das mudanças de humor jornalístico provocadas pela imprevisível condição humana. Até mesmo o egrégio STF, que parecia tão justo e implacável no julgamento do Mensalão, já não parece tão justo ou implacável depois de inocentar Antônio Palocci. Repetindo a previsão sobre Marina Silva, será impagável assistir seu martírio em brasa assim que começar a atrapalhar os planos de José Serra.