quarta-feira, julho 15, 2009

COISAS DA POLÍTICA

O desacerto da promiscuidade

Mauro Santayana

JORNAL DO BRASIL - 15/07/09

Na base das sociedades políticas encontra-se a separação entre o poder de legislar e a ação executiva. Mesmo nos sistemas parlamentaristas, quando o Poder Executivo é normalmente exercido por parlamentares, as duas atividades são definidas e limitadas. O parlamentar, quando investido de função executiva, como membro do governo, é subordinado à instituição legislativa. Quando falta ao governo a confiança do Parlamento, forma-se nova maioria ou, nos casos extremos, convoca-se o povo para eleger outros legisladores e, com eles, outro governo.

Nos sistemas presidencialistas esta separação é exigida mais ainda, pela natureza do sistema, eficiência administrativa e exigências éticas. Os parlamentos surgiram contra os governos monocráticos. Essa consciência de que cabe ao povo, mediante delegados escolhidos, decidir o seu destino, a que damos hoje o nome de democracia representativa, consolidou-se, como é lugar-comum reconhecer, na fundação dos Estados Unidos. A ideia central é a de que a soberania sobre o Estado, sendo imanente ao povo, só pode ser exercida na separação dos deveres e direitos. O povo elege os dois "departamentos", para usar a terminologia norte-americana, para que se contraponham, e assim se defenda o interesse geral. No fundo, o Parlamento deve ser a mobilização permanente dos cidadãos. E, de acordo com os célebres pronunciamentos do Kentucky e da Virgínia, o dever do cidadão é o de sempre desconfiar do governo. Uma vez constituída a administração dos bens públicos, o povo deve manter a sua soberania por intermédio do Poder Legislativo, que determina as leis e as normas e fiscaliza o Poder Executivo, podendo, se for o caso, destituí-lo, por meio do instituto do impeachment. Mas o Parlamento deverá estar também sob a vigilância permanente dos cidadãos.

A Constituição dos Estados Unidos proíbe que membros do Poder Legislativo exerçam funções executivas, e que membros do Poder Executivo sejam eleitos para o Parlamento, enquanto permanecerem em sua função (Article I, Section 6, n.2). Em suma: nenhum senador ou deputado pode pertencer ao Poder Executivo, seja como ministro ou servidor menor. Não pode o membro do Poder Legislativo subordinar-se a ninguém, a não ser ao povo. Aqui, no entanto, desde a Constituição de 1891, essa promiscuidade tem sido um dos maiores infortúnios republicanos. A República nasceu com apenas um poder de fato: os mesmos homens faziam as leis, cumpriam-nas ou não, conforme a conveniência, e eram os excelsos membros dos altos tribunais (como é exemplar o caso de Epitácio Pessoa).

É nessa origem espúria, a que o talento de Ruy Barbosa (e, lamentavelmente, com suas próprias razões) não ousou opor-se, que podemos encontrar os vírus da infecção generalizada do Congresso – e não só do Senado. Os parlamentares ditam as normas que irão cumprir, elaboram os orçamentos que seus amigos, companheiros e representantes dos mesmos financiadores, irão executar. No caso em que, marginalmente, o povo é favorecido, isso se dá apenas pelo interesse eleitoral imediato. Quando anunciam a reforma política, as propostas visam a assegurar o domínio das oligarquias partidárias, como a da instituição das listas fechadas, nunca buscam o aperfeiçoamento democrático.

Nenhuma reforma política terá qualquer efeito se essa promiscuidade não for interrompida – e já. A divisão dos poderes, desde Montesquieu, deve ser clara: quem legisla não pode executar. Em nossa história, como bem lembrou há dias Wilson Figueiredo, a infecção começou a agravar-se com o AI-5, quando os parlamentares, em lugar de entregar as chaves do Congresso ao porteiro, mantiveram as aparências do regime, em troca dos benefícios conhecidos. Nos últimos anos, com a liberdade de imprensa, os vícios dessa promiscuidade passaram a ser mais evidentes. Apesar disso, a tolerância da cidadania, reelegendo notórios corruptores e corruptos para os poderes legislativos da União e dos estados, impediu que a infecção fosse curada, no Estado e na sociedade.

O único remédio – se queremos salvar a República e evitar o pior – é convocar Assembléia Constituinte exclusiva, com a delegação popular única e imperativa, para redigir nova carta, prazo de trabalho definido e dissolução automática. Não há terceira via: estamos entre a razão moral e a anomia.

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