terça-feira, julho 14, 2009

ARNALDO JABOR

A descida aos infernos do pecado dos anos 50

O GLOBO - 14/07/09

Aos quinze anos eu ainda era virgem. Bene, o pipoqueiro e Alfredinho, o aleijado, como já contei, eram meus implacáveis professores de sexo.

Quando fiz 16 anos, fiquei apaixonado por uma pálida menina (o nome me foge), pois me deixou segurar em sua mão. O fato foi considerado por Bené e Alfredinho como um deslize romântico, prejudicando suas aulas de sexo ("amor é coisa de viado"). Não me lembro mais do rosto de meu amor, mas vejo ainda as flores sangrentas dos "flamboyants" que caiam no chão a sua volta, naquele antigo verão.

O leitor perguntará: por que você esta falando dessas coisas remotas e intimas dos anos 50?. Porque ontem filmei uma cena que vivi há quase 50 anos, em meu filme "A Suprema Felicidade".

Como estava dizendo, o Bené mexia a pipoca calado, fingindo desatenção sobre meu amor, quando soltou de súbito: "Vocês já foram ao Mangue?" "E"mesmo! O Mangue, o Mangue!", ecoou o Alfredinho, balançando nas muletinhas.

Senti na pergunta de Bene uma sabotagem deliberada a meu coração de pierrot. O Mangue. A palavra me atraiu como uma gosma que evocava lama e perigo, que fascinava minha fome de verdade.

Fui sozinho, pálido de minha coragem. No Mangue havia uns tapumes que a prefeitura botava na frente das esquinas , para as famílias não verem as nesgas da prostituição pobre. Minha chegada na "zona do baixo meretrício" -como chamavam - foi um soco na cara. Os tapumes eram a fronteira para um outro pais. O Mangue era um pais ao contrario, um negativo de minha realidade, da namorada sob os "flamboyants".

O Mangue eram quarteirões de casas toscas, porta e janela e varandinha , onde se exibiam as mercadorias: as mulheres, diante das quais os homens se postavam como em filas de açougue, em filas de alistamento. Ao primeiro olho, tudo parecia um grande comício. Havia ali mais de mil pessoas ou seria meu olhar espantado? Muitos anos depois, eu vi as geniais gravuras de Lazar Segall sobre a "zona" do Rio. Era assim mesmo.

O que eu vi primeiro foram as línguas e os dedos. As mulheres quase todas ficavam repetindo como bonecas mecânicas o mesmo gesto sincronizado, em que as línguas se batiam entre os lábios, como cobras, e os dedos indicador e polegar unidos em "o", balançavam como num gesto tremulo de "Parkinson", como se todas tivessem um tremor igual, uma "dança de São Guido" pegando na multidão de fêmeas. Estes gestos eram um slogan, um "marketing" de suas habilidades : "pela boca e por trás". Eram mulheres apinhadas nas escadinhas e portais de todas as cores. Havia negras, brancas, louras pintadas, muitas velhas, mocinhas fracas e, mais espantoso, quase todas nuas numa época pudica, só de calcinha e soutien e em posições contrarias a qualquer elegância; eram pernas abertas, seios para fora, cabelos espichados, batons carmesins borrados, banhas, muitas banhas, muitas mulheres sujas, gritos e gargalhadas num descaramento proposital pois ali, todos sabiam, era a cloaca barata, a vala comum, ali só estavam os sem -esperança, os que viviam na miséria do sexo, o proletariado do desejo.

Aquele mangue entrava em mim como uma sujeira salvadora contra a pureza a que me obrigavam. Todos que enxameavam ali nas ruelas escancaravam a bruta feiura de tudo, todos tinham uma fome de escracho para esmagar qualquer ilusão. Tomei coragem e entrei numa casinha onde os quartos eram divididos em compartimentos como baias de cavalo, onde uma caminha suja de solteiro ficava debaixo de um S. Jorge com luzinha. Havia baldes, esteiras, cheiro de urina, mulheres olhando paradas, ruídos de copula, despachos para santos, velas acesas e, claro, os eternos viados da faxina, pobres e feios, cuidando dos

sanduíches e panos de chão. Um deles me expulsou rindo ("Vamos comer o nenen!!!") e voltei para a multidão dos miseráveis . Diante das casinhas sujas, os homens se postavam, baços, pobres, tristes, avaliando com olho morto as réstias de beleza ou juventude que houvesse por ali, enquanto as mulheres em rebanho diziam frases mecânicas tipo "vem cá, boniton!" (ainda havia velhas polacas pintadas), todas sem parar fazendo os gestos de dedo e língua como num comício de mudos. Se os bordeis de classe media fingiam de casa de família, aquilo ali semelhava um campo de concentração. Havia um clima de guerra, de gueto, estrelas amarelas, febre no ar. Havia ali um grande escracho com a liberdade; aquela suja liberdade que todos tinham era uma coisa a ser enxovalhada, morta a pedradas, esfregada na cara de fregueses e putas. As mulheres estavam se vingando por estarem ali, prisioneiras livres, se vingando nas poses safadas, se vingando dos fregueses miseráveis que as olhavam, se vingando de si mesmas.

Foi então que aconteceu. De uma casa, em meio a súbita gritaria de pânico, um marinheiro mulato surgiu correndo desabalado e sumiu na esquina do Mangue em um segundo .

E na mesma porta, em câmera lenta, uma mulher apareceu, parada quase, completamente nua, muito, muito branca, usando apenas uma fita vermelha descendo-lhe entre os seios, obliquamente até a cintura, uma fita perfeita, rubra, como uma faixa de miss. Sua mão erguida com delicadeza apontava para cima e de seus dedos pingavam estrelas vermelhas como as flores do "flamboyant" que caiam em volta de minha amada, lá no país remoto de onde eu viera.

A mulher, muito branca, de cal, de gesso, não era uma miss com faixa; a fita vermelha perfeita era a navalhada que o amante tinha deixado antes de sumir na rua e, de seus dedos erguidos, o sangue caia como as flores rubras de uma arvore alta. Muitos anos depois, eu vi num museu aquela mulher do quadro de Delacroix, simbolizando a liberdade francesa, de seios nus, a "republica" à frente dos cidadãos. E me lembrei sempre da mulher muito branca com a fita de sangue no busto. Voltei para casa e não falei com ninguém, nem com Bené. Minha amada mudou para Botafogo e não a vi mais.

Naquele dia, no Mangue, eu descobri o Brasil.

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