segunda-feira, maio 18, 2009

COISAS DA POLÍTICA

Dois tempos e uma estigmatização


Jornal do Brasil - 18/05/2009
 

O QUE EXPLICA A DIFERENÇA DE EXECUÇÃO de uma mesma ideia, defendida por duas autoridades separadas por um desfiladeiro de cinco anos de distância? A resposta óbvia: o capital político de cada um e sua (in)capacidade de construir um certo consenso público. Seria a explicação mais evidente para justificar o fracasso do projeto defendido em 2004 pelo então vice-governador do Rio de Janeiro e secretário estadual de Meio Ambiente, Luiz Paulo Conde, defenestrado por sugerir a construção de muros que cercassem favelas cariocas.

O desajeitado Conde era vice de Rosinha Garotinho – não exatamente uma fortaleza política edificada no meio da elite da Zona Sul carioca, para ser elegante com a ex-governadora – e nomes como o atual prefeito Eduardo Paes atacaram a ideia. “Um muro não impediria bandidos de passar de um lado para um outro, por mais alto que fosse”, disse o então deputado federal. O projeto virou balão de ensaio.

Hoje, até os desinformados sabem que o governador Sergio Cabral executa mais ou menos a mesma ideia de Conde. Constrói 14 quilômetros de muros de três metros de altura, cercando 11 favelas da Zona Sul. Começou com o morro Santa Marta, seguiu na Rocinha, em São Conrado, e construirá no Chapéu Mangueira, no Leme. O projeto vai longe. Com o apoio de Paes e o silêncio do presidente Lula.

A marotagem do governador foi mudar a escrita e dizer que, com a providência, quer evitar a destruição da mata e a expansão de construções ilegais. Substituiu-se o argumento da segurança pública (dos bacanas da Zona Sul) pela justificativa ambiental. Antes se propunha o muro como proteção contra bandidos; agora contra o crescimento das favelas e o desmatamento. Demofobia, não. Preservação ambiental, sim.

Há uma semana, sugeriu-se aqui que se estava diante de uma lorota pública – afinal, o maior crescimento proporcional das favelas está na Zona Oeste (11,5%), e lá não se fala em muros. Na média, a expansão das favelas do Rio foi de 6,9%, segundo o Instituto Pereira Passos. As comunidades escolhidas por Cabral cresceram só 1,2%. O Santa Marta encolheu 1%.

É antiga a estigmatização da favela, dos favelados e de qualquer área e moradores que, pela aparência e pelos fatos, degradem uma cidade. Segundo a pesquisadora Ana Lúcia Gonçalves Maiolino, autora do recém-lançado livro Espaço urbano: conflitos e subjetividades, Pereira Passos, no início do século 20, abriu a atual Avenida Rio Branco, no Centro do Rio, e demoliu quarteirões de cortiços – eles abrigavam os mais miseráveis. Um “populacho inculto”, como se dizia.

Eram pobres, ex-escravos e migrantes, que subiram os morros e desbravaram as primeiras reclamações das elites. Entre os anos 20 e 30, o arquiteto francês Alfred Agache, um dos reformadores do Rio, falava na “infestação avassaladora das lindas montanhas do Rio de Janeiro pelo flagelo das favelas, lepra da estética”. No Rio, da teoria da lepra ao urbanismo do medo, favela passou a ser sinônimo de violência e marginalidade. Ana Lúcia lembra, no entanto, a percepção, a partir da década de 80, de que era importante implantar ações de caráter mais global nas favelas. Essa tendência teve reflexo direto na formulação do Plano Diretor da Cidade, de 1992, que privilegiava a opção pela urbanização das favelas. Em sequência, veio o programa Favela-Bairro do prefeito Cesar Maia – que propunha a integração da favela à cidade “formal”.

Não dá para dizer, porém, que o muro de Cabral se resume a uma demonização desses espaços da cidade. Há problemas ambientais graves? Sim. Há ocupações irregulares? Sim. Há uma pletora de marginais instalados nos morros? Sim. Há uma indústria pesada, complexa e rentável de pontos de droga (com fornecedores dos usuários da Zona Sul, diga-se) associados a uma incômoda e insistente violência? Sim. Há necessidade de criação de ecolimites? Sim.

O que importa é como agir. Se favela murada é como um condomínio, como disse a secretária do Ambiente, Marilene Ramos, o governo poderia ouvir seus moradores antes de cercá-las. Nos condomínios, quem decide são os condôminos. O pior pesadelo do escritor Primo Levi, em Auschwitz, era voltar para casa e não encontrar quem acreditasse no horror do que tinha a contar. Acreditar no horror exige imaginá-lo de perto e arriscar alguma identificação com as vítimas, mesmo quando distantes de nós. É o caso, por que não, das favelas e de seus moradores.

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