quarta-feira, maio 13, 2009

ALEXANDRE SCHWARTSMAN

A gentileza de estranhos


Folha de S. Paulo - 13/05/2009
 


Continuamos a colher os frutos das políticas "ortodoxas" ao mesmo tempo em que flertamos com seu abandono


HÁ CERTO consenso de que o Brasil estará entre as primeiras economias que se recuperarão do forte choque externo. Em que pese o impacto negativo da queda das exportações, a verdade é que, em contraste com episódios anteriores, a crise internacional não se traduziu em contrapartida doméstica. Não vivemos uma crise fiscal, nem uma crise financeira, nem, por fim, uma crise do balanço de pagamentos, graças às políticas responsáveis adotadas antes do colapso global. 
Já examinei aqui o papel central da mudança do perfil da dívida pública. Por conta da acumulação de reservas e da atuação do BC no mercado de derivativos, a dívida deixou de ser majoritariamente denominada em moeda estrangeira; ao contrário, o governo se tornou credor líquido em dólares, de modo que a depreciação da moeda reduziu a dívida pública, aliviando, ao invés de agravar, a situação fiscal. 
Um fenômeno semelhante -a mudança do endividamento para o investimento direto- se passou no campo do financiamento externo da economia, também colaborando para a estabilidade do país ante a crise e, portanto, para as condições de retomada à frente. Entre 2003 e 2008, o ingresso de investimento direto estrangeiro atingiu pouco mais de US$ 140 bilhões, enquanto o investimento brasileiro no exterior ficou pouco aquém de US$ 75 bilhões. Nesse mesmo período, a dívida externa, líquida de reservas, caiu US$ 145 bilhões. 
A contrapartida dessa mudança ficou aparente na evolução da conta corrente, em particular no que se refere ao serviço do capital estrangeiro. O pagamento de juros caiu à metade do que era, mas o pagamento de dividendos, pouco superior a US$ 5 bilhões/ano entre 2001 e 2003, chegou a quase US$ 34 bilhões no ano passado. 
Poderia parecer um mau negócio, pois o retorno do investimento é, pelas razões examinadas abaixo, geralmente superior ao custo da dívida. Há, porém, motivo para crer que, ao final da história, foi uma boa escolha, dadas duas diferenças cruciais entre juros e dividendos. 
Em primeiro lugar, o pagamento de dividendos se move em linha com o desempenho econômico: em bons anos, paga-se mais, mas, nos anos ruins, quando os lucros encolhem, os montantes caem. Em contraste, o pagamento de juros tipicamente não se altera com o estado da economia. Faça chuva ou faça sol, o pagamento é devido, o que, em épocas de vacas magras, pode se tornar um problema, como, aliás, a história revela. 
Além disso, o pagamento de juros é usualmente denominado em moeda estrangeira, enquanto os dividendos são calculados sobre lucros gerados em moeda doméstica. Assim, a depreciação da moeda não altera o montante de juros devidos (em dólares), embora reduza o pagamento de dividendos. 
Assim, no primeiro trimestre deste ano o déficit em conta corrente encolheu cerca de US$ 6 bilhões na comparação com o mesmo período em 2008. Desses, US$ 5 bilhões são devidos à menor remessa de dividendos, refletindo tanto a reversão cíclica como a desvalorização da moeda. Em outras palavras, quase 90% do ajuste externo se deu à custa do investidor estrangeiro, dentro, é bom dizer, das regras do jogo. 
Vale notar que essa mudança no padrão de financiamento não ocorreu por acaso, mas resulta também de decisões de política, como as medidas de liberalização na área cambial e de capitais, pois não há quem coloque recursos onde existam riscos de não poder retirá-los. Continuamos, pois, a colher os frutos das políticas "ortodoxas" ao mesmo tempo em que flertamos com seu abandono. O que restará para colher nos próximos anos?

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