domingo, abril 05, 2009

ÉLIO GASPARI


Sem favelados, o que será de nós?

O GLOBO - 05/04/09

O Instituto Pereira Passos informa: a expansão física das favelas da zona sul do Rio é uma lorota


O 'GOVERNO do doutor Sérgio Cabral quer murar 11 comunidades da zona sul do Rio de Janeiro. O objetivo proclamado pelos seus sábios é a defesa da mata e o controle da expansão das favelas. Deve-se aos repórteres André Zahar e Italo Nogueira a desmistificação dessa patranha. Os números do Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos, o centro de pesquisas da prefeitura carioca, informam que, entre 1999 e 2008, a expansão física das favelas cariocas foi de 6,9%.
Pode ser muito, mas as 11 comunidades escolhidas pelo governo de Cabral cresceram 1,2%. A Dona Marta, onde a construção do muro já começou, encolheu 1%. O doutor só quer murar comunidades encravadas na zona sul.
Não bastou o vexame ocorrido em dezembro de 2007, quando uma patrulha ecológica subiu à favela da Chácara do Céu para derrubar barracos que invadiam a mata e achou apenas um puxadinho. No lance, seus patrulheiros souberam (e viram) que um condomínio vizinho privatizara o meio ambiente, construindo duas quadras de tênis.
O Muro do Cabral é uma construção do imaginário demófobo. Já em 1926 reclamava-se da "infestação avassaladora das lindas montanhas do Rio de Janeiro pelo flagelo das favelas, lepra da estética". Em 1930, o arquiteto francês Alfred Agache, um dos reformadores do Rio, lembrava que, com a burocracia urbana da cidade, "o operário pobre fica descoroçoado e reúne-se aos sem-teto para levantar uma choupana".
Trocando-se o trabalho objetivo da revisão das posturas pelo culto à subjetividade da teoria da lepra, produziu-se o urbanismo do medo. A primeira proibição de obras em favelas é de 1937.
Às vezes as pessoas, cidades ou até mesmo nações acreditam que seus problemas estão encapsulados numa anomalia (a favela, ou a violação de sepulturas) e que as soluções demandam a imposição da disciplina a um pedaço demonizado da sociedade (o muro, ou a perseguição aos índios).
Sepulturas e índios entram nessa história por conta de um episódio da Guerra Civil Americana. Sullivan Ballou, um advogado de Rhode Island, alistou-se como major nas tropas da União e, em julho de 1861, escreveu à sua mulher Sarah uma das cartas mais bonitas da história.
Ballou morreu uma semana depois, no primeiro grande combate da guerra e foi sepultado na vizinhança de uma igreja. Gente de seu Estado chegou à região para resgatar os mortos e achou o horror. O major fora retirado da sepultura e decapitado. A cabeça sumira e o corpo havia sido queimado. A selvageria foi atribuída aos índios que acompanhavam as tropas do Sul. Mentira. Uma comissão do Congresso investigou o caso e concluiu que não havia índios no lance. Como diria Nosso Guia, quem roubou a cabeça de Ballou foram os "brancos de olhos azuis", muito provavelmente do 21º Regimento da Geórgia, o Estado de Scarlett O'Hara e de Ashley Wilkes (Vivian Leigh e Leslie Howard em "...E O Vento Levou").
O crânio de Ballou pode ter se transformado em suvenir, pois alguns sulistas desenterravam soldados do Norte e guardavam ossos para mostrar em casa. Convinha acreditar que as tropas do general Lee jamais fariam coisas assim. Era serviço de índio, mas índios não havia.
Quando a exaltação prevalece sobre o raciocínio, alguma coisa acaba dando errado. Se os índios tivessem degolado Ballou, os americanos não teriam que lidar com a realidade dos soldados da Causa Nobre violando sepulturas para roubar caveiras. Se as favelas estivessem engolfando a zona sul do Rio, o medo e os muros poderiam alavancar um plano de governo.
Se o doutor Cabral quisesse apenas demarcar a mata e evitar a expansão das favelas, o muro não precisaria ter três metros de altura, bastariam 30 centímetros. Essa medida atende a uma fantasia demófoba e irracional: murando o outro, eu me protejo. Felizmente os números do Instituto Pereira Passos tiram o véu da iniciativa: estão murando a Dona Marta (que encolheu) e pretendem murar comunidades da zona sul cuja expansão foi irrelevante.
É o caso de recitar as últimas linhas do poema "À Espera dos Bárbaros", do egípcio Constantino Kaváfis:
"Sem bárbaros o que será de nós?
Ah! Eles eram uma solução".

TRAIDOR
Em 2005, quando a Polícia Federal varejou a contabilidade da Daslu, o presidente da empreiteira Camargo Corrêa, doutor Fernando de Arruda Botelho, fazia pequenos comícios sociais contra o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos. Na suas palavras, permitindo que a polícia entrasse na Daslu, o advogado traía "sua gente". Passou o tempo, a Polícia Federal varejou a Camargo Corrêa e o doutor Arruda Botelho contratou Thomaz Bastos para chefiar a equipe de advogados que defenderá a empresa. No mínimo, mudou de ideia a respeito do que vem a ser uma traição.

FUMAÇA
A banda de música das empresas que vendem tabaco deveria engavetar o terrorismo tributário a que recorre para condenar a alta do IPI dos cigarros, que elevará o custo do maço em pelo menos 20%.
Segundo a Souza Cruz, a elevação do imposto estimulará o contrabando e provocará um efeito contrário, baixando a arrecadação. Admitindo-se que o argumento seja verdadeiro, sobra uma questão: o contrabando precisará dos fabricantes brasileiros para se expandir. Atualmente o Paraguai exporta ilegalmente 19 bilhões de cigarros para Pindorama.
Uma parte é de produtos falsificados. A outra é comprada legalmente em fábricas brasileiras, livres de impostos.
Se o contrabando aumentar, a indústria do fumo pode ajudar a Viúva.
Basta ficar de olho nas suas vendas ao Paraguai. Se aparecerem importações esquisitas, deve alertar o governo. De certa maneira, é o que os bancos fazem quando não querem se acumpliciar com mecanismos de lavagem de dinheiro.

"ESSE É O CARA"
Ainda não se pode garantir que o companheiro Obama visitará o Brasil durante o governo de Nosso Guia. Se isso acontecer, será a primeira passagem de um chefe de Estado estrangeiro por Pindorama com clima de Carnaval.

ARMADILHA
Na terça-feira, Lula foi surpreendido ao ver que comeria ao lado de Omar Al-Bashir, o soba do Sudão. Felizmente, deu uma desculpa e foi-se embora.
Nunca na história deste país um presidente foi para uma mesa sem que a turma do seu cerimonial lhe dissesse quem sentaria ao seu lado.

JUIZ QUALQUER
Na quarta-feira, os ministros Carlos Ayres Britto e Eros Grau deram seus votos pela revogação da Lei de Imprensa. A sessão do STF poderia ter continuado, mas Gilmar Mendes houve por bem suspendê-la. Antes de levantar da cadeira, o presidente da corte disse que, a seu juízo, ainda há alguns aspectos a ponderar. Tudo bem, mas, se ele tinha algo a dizer, não deveria ter encerrado os trabalhos. Se precisava terminar a reunião, poderia ter deixado o comentário para a sessão do dia 22.
Como diria Neném Prancha, "jogador joga no campo, quem dá entrevista na boca do túnel é massagista".
As dúvidas do ministro relacionam-se com a pronta cessão de espaço para as vítimas dos jornalistas: "Não se pode entregar a qualquer juiz ou tribunal a construção do que é direito de resposta".
Falta definir "qualquer". Só o presidente do Supremo pode fazê-lo porque, se a patuleia tentar, vai em cana por desacato ao meritíssimo, qualquer que seja.

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