Roberto Pompeu de Toledo
O conservador liberalão
"Disse a mulher ao marido: ‘Você estava com eles,
como a gente está num baile, onde não é preciso ter
as mesmas ideias para dançar a mesma quadrilha’"
Batista, grande Batista! Quem não conhece o Batista não conhece o Brasil. Batista é personagem do romance Esaú e Jacó, de Machado de Assis. Ele tem a ambição política no sangue, e vive impaciente por um bom cargo. No passado foi aquinhoado com uma presidência de província. Bons tempos – era cercado de atenções, além de contemplado com boas oportunidades de negócios, como uma certa concessão de águas, em que operou em parceria com o cunhado. Seguiu-se um período de ostracismo. Agora – estamos no Brasil de dom Pedro II, em que os presidentes de província, cargo equivalente ao dos atuais governadores, eram nomeados pelo governo central – já está tudo articulado para, de novo, ele ganhar uma presidência. Nada mais natural. Governa o Partido Conservador, e Batista, conservador de quatro costados, não haveria de ser esquecido.
Eis que, bem na iminência da nomeação, cai o gabinete, e sobem os liberais. Era assim que funcionava a gangorra do poder no parlamentarismo do período imperial: caíam os conservadores, subiam os liberais; caíam os liberais, subiam os conservadores. Batista andava de um lado para outro, as mãos às costas, a extravasar sua frustração numa conversa íntima com a mulher, dona Cláudia. "Era negócio só de esperar um mês ou dois", explicava. Dona Cláudia, cuja vontade de ferro servia de impulso à carreira do marido, ouviu, refletiu, sopesou, e enfim: "Mas, Batista, você o que é que espera mais dos conservadores?". O desterro conservador poderia durar oito, dez anos, calculou a mulher; e, quando voltassem ao poder, lembrariam dele? Dona Cláudia "olhou fixa para ele" e proclamou: "Batista, você nunca foi conservador!".
O marido espantou-se. Como, não era conservador?! Nesse partido esteve desde sempre, nele estava sua turma, nele mandavam os chefes que o estimavam. Mas dona Cláudia tinha um ponto: "Você estava com eles, como a gente está num baile, onde não é preciso ter as mesmas ideias para dançar a mesma quadrilha". Batista, por mais que se esforçasse, não conseguiria identificar as ideias liberais que a mulher lhe atribuía, mas ela insistia: "Você é liberal". E, para encerrar a conversa: "Um liberalão, nunca foi outra coisa". A ideia era chocante, mas aos poucos Batista foi se acomodando a ela. Passou a procurar um contato liberal aqui, a frequentar uma festinha dos antigos adversários ali e… de novo uma presidência de província surgiu em seu horizonte.
Azar. Estamos em 1889, e sabe-se o que aconteceu em novembro daquele ano: foi proclamada a República. Lá se foi o imperador, e com ele o governo liberal, e de quebra a oposição conservadora, todos feitos relíquias da história. Batista e dona Cláudia caem de novo em depressão, mas, como para tudo há remédio nesta vida, mesmo para a morte – quando se trata da morte de governos ou de regimes –, logo estão frequentando os bailes da República, e Batista acaba obtendo um cargo do marechal Deodoro. Deodoro por sua vez vai cair, em 1891, e ser substituído pelo vice, Floriano Peixoto. Toca a fazer uma visita ao novo presidente aqui, um agrado ali. Ganhou um naco também no novo governo.
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A lembrança do Batista é aqui invocada em homenagem aos vencedores das eleições da mesa da Câmara e do Senado. São todos, os presidentes de uma e outra casa, e boa parte dos eleitos para os demais cargos – sem esquecer o corregedor-geral da Câmara, possuidor de um castelo medieval não declarado à receita e posto à venda por 57 milhões de reais –, lídimos sucessores do marido de dona Cláudia. Eles apanharam a tocha lá onde ele a deixou, junto à espada do marechal Floriano, e a vêm trazendo, sempre acesa, não importa que acidentes encontrem na história brasileira, um golpe aqui, uma brusca vitória da oposição ali, uma ditadura acolá, uma restauração democrática em seguida. Alguns, nesse passo, construíram carreira bem mais afortunada que a de Batista. Hoje estão reunidos nesse prodigioso partido chamado PMDB, ao mesmo tempo liberal e conservador, de esquerda e de direita, e, se vier ao caso, monarquista e republicano. É o partido que veio para superar todos os partidos. Nele, os filiados se acomodam a salvo de ideias e doutrinas, projetos ou programas, tão saudavelmente acima de velhos entraves que nem agir em conjunto precisam, pode ser cada um por si, e geralmente o é. Salve eles. Salve o Batista. Salve o Brasil.
P.S.: Esse último "salve o" é no sentido de "alguém venha em salvação do".
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