sábado, fevereiro 07, 2009

LYA LUFT

REVISTA VEJA

Lya Luft
Como administramos crises?

"Houve um tempo em que Davos era algo 
solene e definitivo. Agora, os grandes saem
de lá dizendo-se confusos. E nós, como ficamos?"

"A crise" é desculpa para muita loucura, nossa e dos que chamamos líderes. Como administramos crises? Crises se administram ou se sofrem... ou simplesmente se desenrolam e nós rolamos feito marisco solto no mar? O que fazer com as crises pessoais e financeiras? As da vida pessoal podem ser mortais, mas quase sempre encontramos um caminho, no que depende de nós. As econômicas regionais, nacionais ou, pior, mundiais, como a atual, nos são alheias. A parte mínima que cabe a cada um é apertar o cinto e rezar (ou torcer) para que os responsáveis não façam besteira demais.

Ilustração Atômica Studio


Houve um tempo em que Davos era algo solene e definitivo. Agora, os grandes saem de lá dizendo-se confusos. E nós, como ficamos? Líderes perplexos e nós, mortais comuns, feito formiguinhas no campo de batalha dos grandes, nós que vivemos de salário e pagamos a conta com impostos, ficamos encolhidos diante da onda de desastres nascidos da trágica irresponsabilidade na economia mundial, que não dependeu de nós. A mim dão tristeza os desempregados. Publicam-se todo dia números mascarados, sabemos que são muito maiores e mais dramáticos do que aparecem. Um operário de uns 40 anos, casado, cinco filhos, relata que no café-da-manhã recebeu uma cartinha: demitido. "O que vou fazer agora?", indagou com lágrimas nos olhos. Na Europa e nos Estados Unidos, e também no Japão e na China, os números são espantosos, e todos indagam: "E agora, e agora?". O seguro-desemprego não é grande coisa nem é permanente. A crise, se tirarmos a cínica máscara do otimismo, que aliás está caindo por quase toda parte, deverá durar vários anos. Depois dela, o que virá? Quanto tempo até levarmos uma vida menos aflitiva? Ou os despossuídos, antigos e novos, ficarão comendo, como já se faz no Brasil há tantas décadas, farinha com água e, com sorte, um pouco de sal?

Um fantasma intrometido espia sobre meu ombro: "Pô, que artigo mais negativo! Os escritores devem dar esperança aos leitores". Não. Os escritores falam por todos os que não têm acesso nem voz. Por que tratar os leitores como idiotas? O que escutamos sobre a crise é tão contraditório que daria para encher muitos consultórios e clínicas de psiquiatria: "Gastem tranquilamente, comprem, isso aí não é nada. Não gastem, tomem cuidado, o apocalipse está chegando. Os governos estão controlando gastos. Os governos estão aumentando gastos. Os governos estão abrindo milhares de vagas; os governos não têm dinheiro para pesquisa, cultura, educação. Os governos sabem tudo, os governos não sabem nada". E nós, jogados de mão em mão ou de conselho em conselho, de uma explicação a outra, em quem devemos acreditar? Talvez no próprio bolso. Ou no vizinho demitido. No outro vizinho, desempregado, na vizinha de despensa vazia. Nos assaltos que aumentam, nos pedintes que se multiplicam, e se o mundo inteiro, unido, não tomar providências eles serão multidões, e nós estaremos entre eles. Dificilmente haverá união entre os países: queremos pisar uns nos outros, se possível nos matamos mutuamente. A crise, que já é um tsunami, vai nos transformar a pau em gente mais racional, mais sensata. Mais humildes os poderosos, mais confortados os despossuídos, porque nos aproximaremos na aflição. Será?

A primeira vez em que hospedei uma amiga da Europa, ela se espantou ao almoçar em minha casa, classe mediazinha: "Dois bifes para cada filho? Bifes desse tamanho? Todo mundo podendo repetir?". Só faltou vasculhar nosso lixo, para dizer que na então poderosa Europa muita gente comeria dali. Impressionada, nunca me esqueci. Não pedi para meus filhos adolescentes roerem perna de mesa, mas fui ainda mais severa quanto ao desperdício. Desde sempre, se podia lhes dar três pares de tênis, dava-lhes dois. Três pares de jeans, dava dois. Fiquei mais cautelosa, talvez assustada com a insegurança que, tantos e tantos anos depois, bateria à nossa porta. Que os deuses da riqueza e da miséria, da fome e da abundância, da ganância e da decência façam seus congressos celestiais e nos deem uma mãozinha por aqui.

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