domingo, maio 05, 2013

Uma dívida de R$ 94 bilhões - FRANCISCO A. FABIANO MENDES

O GLOBO - 05/05
Mário de Andrade, ao escrever Macunaíma, formulou síntese que ficou famosa: pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são. Acertou em parte, porque os males brasileiros são muitos: falta de segurança, corrupção, pouca eficiência do Poder Público, transporte precário, sonegação, má aplicação dos altos impostos arrancados dos contribuintes. A lista é grande.

Escrevo aqui sobre mais um mal, uma original invenção brasileira: o precatório, palavrinha sinistra que significa o crédito de um particular contra o Poder Público, oriundo de condenação judicial definitiva (transitada em julgado, como falam os processualistas). Já que no Brasil não se aceita que os bens públicos sejam penhorados e leiloados para pagamento dos créditos dos particulares, concebeu-se o precatório. A ideia é interessante e está prevista na Constituição Federal: uma lista de credores do Poder Público, organizada e gerida pelo Poder Judiciário, em que são arrolados os nomes das pessoas físicas ou jurídicas que venceram demandas contra o governo, e que recebem uma espécie de senha (o número do precatório), atestando o dia em que seu precatório foi apresentado ao Judiciário. Organizam-se listas com esses precatórios: a dos idosos e doentes graves, que recebem com prioridade; e duas filas comuns.

À medida que são transferidos recursos financeiros do governo federal, estadual ou municipal ao Poder Judiciário, este expede as ordens de pagamento em favor do dono do precatório. Portanto, quem ganhou um processo contra o Poder Público tem a certeza de que receberá seu dinheiro. Simples, não? Engano seu: complicadíssimo, demorado e enervante. Assim como a jabuticaba, que só existe no Brasil, o precatório é coisa nossa, sendo desconhecida pelos gringos, e serve de escudo para o Poder Público pagar muito pouco do que deve, e nada acontecer ao administrador relapso, que não vira "ficha suja", mesmo se sair do governo sem pagar um só centavo dos precatórios. Convenhamos: isso é um incentivo e tanto ao calote.

O precatório tem inspiração nobre (regularizar o pagamento das dívidas publicas, evitando atrasos e espertezas), mas na prática foi desvirtuado, e hoje a dívida dos precatórios, somando tudo, no Brasil inteiro, é de R$ 94 bilhões. Atente bem: quantias fantásticas de dinheiro são devidas pelos estados e municípios e não são pagas, e fica tudo por isso mesmo. A União Federal é exceção, pois paga suas dívidas, o que não é vantagem, tendo em vista as fortunas colossais que arrecada em impostos. Outra exceção é o governador Sérgio Cabral (RJ), que vem, com habilidade, consertando os desmandos financeiros dos governos diminutivos que o antecederam e, de forma consistente, tem transferido ao Poder Judiciário, ano a ano, valores elevados. Muito falta a ser pago, mas ao menos há boa vontade e atuação firme.

Mas essas exceções não obscurecem - até ressaltam - o fato de que o precatório é um verdadeiro instrumento de tortura, que pune o credor e deixa o administrador público à vontade para nada pagar, sem sequer virar "ficha suja". Primeiro, o cidadão ou empresa, prejudicada de algum modo pelo Poder Público, tem que enfrentar um longo processo judicial para ver reconhecido seu direito de crédito. Depois de vencer sua demanda, o credor nada recebe, a não ser um papel (precatório) que, na prática, só lhe dá o direito de aguardar mais alguns anos.

Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas cunhou a frase: "O sertão é uma espera enorme." O mesmo se diga dos titulares dos precatórios: uma espera infinda, dupla (a do processo inicial e mais a do precatório), agravada pela dor de um dia ter sido lesado pelo Poder Público - motivando a demanda inicial - e continuar a ser desrespeitado em sua cidadania, ao esperar um pagamento devido, mas sempre protelado.

Não ouso propor solução para esse problema. Está fora da realidade propor que o precatório seja desinventado e as dívidas públicas sejam pagas nos seus vencimentos, pois isso implicaria mudar as práticas políticas, que resistem com sucesso invariável às tentativas de moralização. Também não adianta constatar, como os romanos já fizeram, que as leis de nada valem, se não existirem os bons costumes.

Cabe tão só deitar luzes sobre o problema e lutar, com os escassos meios de que dispõem os cidadãos, para a construção de um Brasil minimamente razoável. Como disse John Lennon, sou um sonhador, mas não sou o único.

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