domingo, janeiro 20, 2013

Lutas - CAETANO VELOSO

O GLOBO - 20/01


Meus amigos de São Paulo lutam pela dignidade das vítimas de chacinas e de casos de “resistência seguida de morte”


Enquanto escrevo (às pressas para não perder o voo para a Bahia), meus amigos do Rio estão guardando a Aldeia Maracanã, que recebeu, com a permissão finalmente dada por Eduardo Paes, o que parece ser um golpe fatal. Eu quase que ainda sou do tempo do Largo do Maracanã da valsa, anterior à construção do estádio Mário Filho (só o Nelson Rodrigues chamava o estádio pelo nome oficial). Maracanã, esse nome indígena das aves verdes que soam como chocalhos espargidos no ar. Cuiubas, maitacas e maracanãs passavam pelo céu de Santo Amaro na minha meninice. Será que a vulgaridade que ronda a atual administração estadual (sublinhada pela municipal) vai tomar conta do entorno do Maraca? Um prédio que foi o Museu do Índio, que tem a história ligada ao glorioso Marechal Rondon e que hoje se chama Aldeia Maracanã não pode ser posto abaixo. Ou será que já devo escrever “não poderia ter sido posto abaixo”?

Meus amigos de São Paulo lutam pela dignidade das vítimas de chacinas e de casos de “resistência seguida de morte”. Essas vítimas são, em sua grande maioria, jovens pretos. Em sua totalidade, pobres. Quando e como virá a segunda abolição? Minha amada Regina Casé diz que, se perguntada por sua definição política, responderia: “Sou abolicionista.”

Houve um esboço de planejamento federal da segurança pública no primeiro governo Lula. Luiz Eduardo Soares era uma espécie de quase-ministro. Mas jogaram-no fora. No Rio, meu amigo Marcelo Freixo (essa grande figura pública brasileira) me contou que Beltrame, cuja atuação valoriza o governo Cabral, foi indicação de Lula. Beltrame é um gaúcho cuja passagem pelo Rio não será esquecida. Esperamos que o que há de bom em suas ideias e em seu tom possa seguir sendo aproveitado pelo poder que o convidou. Que a vulgaridade não seja mais forte do que a inspiração que, segundo minha fofoca de alto nível, veio de Lula em pessoa.

Em São Paulo não há nada semelhante. E todo o avanço de superação dos índices de criminalidade é negado pelo que parece uma falência da política de segurança do governo tucano. Bem, os indicadores que davam (dão?) esperança terminam parecendo uma força benéfica misteriosa, atribuível a fatores como envelhecimento da população e outros fatos estatísticos, levando-nos a descartar quaisquer méritos do trabalho do estado. Pessoalmente não creio na nulidade da atuação governamental, mas os últimos acontecimentos (depois do longo histórico que vem de Carandiru e passa pelas chacinas de 2006) induzem a ver o papel do governo paulista apequenado. Refém de uma guerra fora da lei entre a polícia e uma organização criminosa. A voz de Mano Brown e dos Racionais (liderando um mundo de rappers) esteve sempre — e está — levantada contra a brutalidade. Que os governos estadual e federal afinem com o que há de sábio nessa voz.

Foi Regina Casé (olhe ela outra vez aí) quem me mostrou. O leitor pode encontrar no YouTube se escrever “O redemoinho (SWIRL)”. É um dos mais belos filmes brasileiros recentes. Tem o que há de forte em “Avenida Brasil” e em “O som ao redor”. É apenas um vídeo amador familiar que, sendo ele mesmo um milagre, versa sobre uma situação milagrosa. Uma família goiana faz um piquenique no que parece ser uma praia lacustre (ou será um trecho represado de rio?). (O rapaz que filma e comenta pronuncia a palavra “tornadinho” de modo reconhecivelmente mineiríssimo, mas, para efeitos de sotaque, Goiás é o grande Minas, além de, como Guimarães Rosa, o rapaz usar também a forma “redemunho”.) Ele acaba de perder um redemoinho que diz ter tentado filmar. Outro se inicia. Ele tenta acompanhá-lo com a câmera. O que se segue é sempre de grande beleza — e representatividade dos movimentos que se passam na sociedade brasileira. O grupo (com a mãe evangélica de short curtíssimo, do qual se desculpa mas termina argumentando que Deus nos criou nus; o primo que não é “politicamente correto” por não aderir à ideia de que “todo mundo é bonito” e mostrar uma garrafa de cerveja; a namorada, bonita, que comenta, com um misto de pudor e malícia, que há belezas “diferentes”; a criança obesa) é muito típico: numa obra de ficção teria sido um grande conseguimento armar um quadro tão representativo e manter tão alto nível de naturalismo e encanto visual. O zoom no cavalo branco no momento em que a mãe cita o pacto entre Deus e Noé é de arrepiar. Nem vou falar mais. É melhor ver. Dura apenas seis minutos. Já vi inúmeras vezes. Muita gente viu (quase 900 mil pessoas). Certamente o apelo religioso congregou a maior parte desssa plateia. Mas suponho que, como Regina e eu, muitos foram dar uma olhada meramente curiosa e se maravilharam.

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