terça-feira, fevereiro 21, 2012

Uma chance para Obama - MYLES FRECHETTE e JOHN MARIO GONZÁLEZ


O GLOBO - 21/02/12
Em setembro de 2008, em plena turbulência da crise financeira desatada naquele ano, o então ministro das Finanças da Alemanha, Peer Steinbrück, afirmou, diante do Bundestag, câmara baixa do Parlamento alemão, que "os EUA perderão seu status como grande potência do sistema financeiro internacional" e, poucos meses depois, o então presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, acusava pessoas "brancas de olhos azuis" de provocar a crise mundial.

Os comentários, feitos como parte de um ciclone de digressões sobre um declínio de poder dos EUA após os atentados das Torres Gêmeas em 2001, embora ressalvassem a complexidade dos esforços para enfrentar a ameaça terrorista e a resiliência dos EUA, mostravam os enormes desafios que seu próximo presidente enfrentaria. Também ressaltavam que entre suas prioridades dificilmente estaria uma política ativa para a América Latina.

Como o demonstraria a frenética atividade do presidente Obama desde janeiro de 2009, sua agenda estava focada em superar os problemas ocasionados pelo estouro da bolha imobiliária, os do sistema financeiro, do emprego, da crise Afeganistão-Paquistão e Iraque, assim como aprovar a reforma da saúde.

Alguns esforços de Obama, como sua declaração na Cúpula das Américas de Trinidad e Tobago em 2009 de que "não há sócio principal e sócio menor em nossas relações, que se baseiam simplesmente num compromisso de respeito mútuo, interesses comuns e valores compartilhados", foram afogados pela cacofonia populista antiamericana de outros mandatários latino-americanos. Igualmente, seu propósito pessoal de impulsionar uma relação especial com os líderes de Brasil, Chile e México, ao recebê-los na Casa Branca em 2009, e ao visitar seus sucessores no Brasil, Chile e El Salvador, em março de 2011, teve resultados modestos.

Embora o afã da diplomacia americana seja louvável, como demonstra o fato de Hillary Clinton ter viajado com mais frequência à região que qualquer outro secretário de Estado na história moderna dos EUA, e mantenha o compromisso em programas críticos para combater o narcotráfico e aumentar a segurança em México, América Central, Caribe, Colômbia e outros países andinos, o cenário foi desperdiçado.

Se a ausência de uma política externa americana mais dinâmica na América Latina possa ser entendida à luz da situação de crise, as circunstâncias atuais delineiam um contexto distinto e mais promissor para relançar uma política ambiciosa para a região. A próxima Cúpula das Américas, dias 14 e 15 de abril, em Cartagena, na Colômbia, oferece uma conjuntura peculiar para que o presidente Obama possa apresentar as novas linhas de uma política para a América Latina, na qual deveriam estar presentes pelo menos uma agressiva posição de luta contra as drogas internamente, nos EUA, e o compromisso decidido de impulsionar a reforma da política para os imigrantes.

O presidente Obama obteve êxitos em sua política externa a partir de complexas cirurgias políticas que não só demonstram sua extraordinária capacidade como também o fato de que o declínio dos EUA parece não figurar num futuro próximo. Muitos já são os exemplos dessas complexas, e em vários casos exitosas, operações políticas, tais como a Primavera Árabe e a operação na Líbia, a estratégia para Afeganistão-Paquistão, a abertura do regime de Myanmar, o recente aumento de tropas na Austrália e da presença no Mar do Sul da China ou a estratégia de aproximação com as ambições nucleares do Irã.

Apesar do contexto de hostilidade de algun governos na América Latina, e inclusive em razão disso, aumentam as razões para elevar o status das relações entre os EUA e a região. Prova disso é a designação pelo governo Obama de um enviado especial para a América Latina.

Em primeiro lugar, porque, a continuar a recuperação econômica e da confiança nos EUA, a reeleição de Obama não é somente um cenário altamente factível, como poderá se tratar de um mandatário com estatura internacional sem precedentes. Suas conquistas permitiram mudar a imagem dos EUA no mundo e a reverteram na América Latina, como evidencia a pesquisa Latinobarômetro de 2011, na qual Obama aparece como o presidente mais bem avaliado e em que dois terços da população latino-americana (72%) mostraram uma atitude favorável aos EUA, aumento de 15 a 25 pontos em relação a 2008.

Em segundo lugar porque enormes podem ser os ganhos para o Hemisfério com um trabalho mais agressivo de coordenação política que faça contrapeso ao discurso hostil aos EUA adotado por alguns mandatários. Embora na região tenha havido nos últimos 20 anos inúmeros foros de negociação política, com a tendência recente de excluir os EUA, seus resultados têm sido mais vagos e retóricos que práticos. O presidente Obama poderia explorar a viabilidade de impulsionar a OEA ou um organismo com maiores condições de aprofundar a integração política.

Adicionalmente, o comércio entre os EUA e a América Latina e o Caribe alcançou US$ 524 bilhões em 2009. Apesar de o comércio da América Latina com a Ásia ter crescido em ritmo acelerado, os EUA seguem sendo o destino mais importante das exportações da América Latina e do Caribe, que também são um destino primordial das exportações americanas.

Finalmente, na América Latina há alguns presidentes com uma liderança construtiva em relação aos EUA que poderão apoiar uma aliança mais ambiciosa em benefício da região, como os mandatários da Colômbia, Juan Manuel Santos, de El Salvador, Mauricio Funes, ou do Chile, Sebastián Piñera.

O momento para o relançamento das relações entre os EUA e a América Latina passa por uma conjuntura singular, entre outras coisas, porque, contrariamente às digressões que anteciparam um declínio do poder e do papel dos EUA, a tendência de superação de sua crise pode catapultar o país para o exercício sem precedentes de sua liderança.

Desfiles políticos - DENISE ROTHENBURG

CORREIO BRAZILIENSE - 21/02/12


Ao apresentar maravilhas do governo Lula na avenida, a escola deixou a impressão de que quem fez pelo Brasil pode fazer o mesmo por São Paulo. Jogou as bases de um projeto do PT não só para 2012 como também para 2014

Se o carnaval de 2010 foi pródigo em apresentar os pré-candidatos a presidente da República, este, de 2012, pode ser definido em termos políticos como uma festa destinada a mostrar arranjos futuros e construção de enredos nos mais diversos partidos. O mais visível deles envolveu o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, criador do PSD. Ao aparecer ao lado do governador de Pernambuco, Eduardo Campos, no Galo da Madrugada, no primeiro dia de folia, Kassab colocou cercas no apoio que deverá dar ao ex-governador de São Paulo José Serra. E ainda reforçou os laços com o PSB, presidido por Campos.

Kassab ficou menos de 10 horas em solo pernambucano. Fez questão de dar entrevista ao lado de Eduardo Campos antes de partirem para o desfile do Galo. Não o faria se não tivesse o objetivo de fixar alguns parâmetros atuais e futuros. Ali, se referiu a Eduardo Campos como “seu líder”, mas, ao mesmo tempo, não dispensou o apoio a Serra em São Paulo.

Para bons entendedores do PSD e fora dele, Kassab delimitou espaço e tempo: no momento, apoia Serra na província. Quanto ao futuro, prefere jogar com Eduardo Campos e não com o PSDB. Se será mesmo assim, dependerá de uma penca de fatores, inclusive da eleição paulistana deste ano e o PT.

Por falar em PT…
Enquanto Kassab fazia uma fezinha em Pernambuco, os petistas faziam seus gestos na capital paulista. A homenagem que o ex-presidente Lula recebeu da escola de samba Gaviões da Fiel, em pleno ano eleitoral, não pode ser lida como mera obra do acaso. Ao apresentar maravilhas do governo Lula na avenida, a escola deixou a impressão de que quem fez pelo Brasil pode fazer o mesmo por São Paulo. Jogou as bases não só de um projeto para 2012 como também para 2014.

Embora o presidente não estivesse na avenida, lá estavam a mulher dele, d. Marisa, a história de vida e a propaganda de seu governo. Assim como em 2010, esteve nas telas de cinema com o filme, Lula um filho do Brasil. Naquela época, maio do ano eleitoral, o então presidente planejava eleger a sucessora, como desta vez trabalha para eleger Fernando Haddad prefeito de São Paulo contra os tucanos.

Por falar nos tucanos…
Da parte do PSDB, os movimentos ficaram mais restritos aos bastidores e ao noticiário. Ao apresentar a candidatura de Serra como a “resistência ao projeto petista” de conquistar São Paulo — como fez Sérgio Guerra em recente entrevista à jornalista Cristiane Samarco, do Estadão —, o PSDB trata de nacionalizar o pleito e repor Kassab e seu PSD na órbita oposicionista.

Foi justamente para não deixar passar essa ideia de oposicionista que o prefeito foi ao Galo da Madrugada, em Recife, onde tem um aliado capaz de entender o gesto de apoiar Serra em São Paulo. Parte dos socialistas está convicta de que, para o PSB de Eduardo Campos, não é interessante deixar o PT “tomar tudo”.

Não é segredo para ninguém o modus operandi do PT, de sempre dar um jeito de impor seus candidatos sobre os dos demais partidos. E, no momento em que o partido de Lula tiver São Paulo nas mãos, dentre outras cidadelas importantes, alguns avaliam que o sonho do PSB por uma candidatura presidencial vai pelo ralo. Ocorre que, da sua parte, Eduardo Campos não tem como deixar de apoiar Haddad em São Paulo. Quer o PSB goste ou não. Da mesma forma, Kassab não pode deixar de apoiar Serra. Quer o PSD goste ou não.

Diante de tantos compromissos e dívidas de gratidão, Eduardo Campos e Kassab preferiram deixar acertado um encontro para o futuro. Se não conseguirem levar o projeto adiante em 2014, por conta das circunstâncias ou essas mesmas dívidas, podem deixar para 2018. Afinal, assim como é certeza ter o Galo da Madrugada todos os anos, é certo que Eduardo e Kassab não estão na avenida apenas para fazer figuração ou ficar sempre com o papel de coadjuvantes.

Deixem que os muçulmanos cuidem de si - WILLIAM STODDART e MATEUS SOARES DE AZEVEDO


FOLHA DE SP - 21/02/12

A estratégia ocidental de impor a democracia a qualquer preço tem criado caos social, dá poder a uma ala mais intolerante do islã e prejudica até mesmo Israel

A tragédia no estádio de futebol de Port Said, no norte do Egito -país cuja população alcança expressivos 81 milhões de habitantes, algo que faz dele uma das cinco maiores nações muçulmanas no mundo-, aliada às suas conotações e implicações políticas e às suas possíveis consequências futuras, obriga-nos a colocar a seguinte questão.

O que está acontecendo atualmente no mundo islâmico e árabe é de fato uma "primavera" ou é antes um pesadelo?

Outra pergunta, relacionada a essa: o que a população do Iraque (30 milhões de habitantes) ganhou depois de nove anos de "regime change" dos neocons americanos e de "imposição" da democracia?

A resposta não é complicada: um país profundamente dividido, com um guerra civil e sectária que tem feito milhares e milhares de vítimas, na maior parte civis muçulmanos.

No Iraque, a "exportação" forçada da democracia levou ao domínio da maioria xiita (que é minoritária no islã global) e à opressão da minoria sunita (majoritária no mundo islâmico).

Esse é o legado deixado pela ocupação norte-americana. Ela, mesmo do ponto de vista dos interesses maiores dos EUA, era a rigor desnecessária, pois os Estados Unidos não tinham nenhuma razão de força maior para ocupar o Iraque. O país se rendeu, de forma inconsequente, às pressões de Israel e de seus partidários internos.

Mas, se a ocupação do Iraque favoreceu os desígnios estratégicos israelenses, a turbulência e incerteza em países como Egito, Síria e Líbia, entre outros, parece até aqui ter sido bastante desfavorável para esses mesmos desígnios.

Se, no tempo de Mubarak, o Egito era favorável a eles, mesmo contra a opinião majoritária da "rua árabe", hoje isto não vale mais.

Israel já perdeu a Turquia, que é um dos mais fortes países islâmicos, e agora está perdendo o Egito, ambos crucialmente estratégicos para os seus interesses.

Seja como for, a estratégia da "democracia a qualquer preço" tem paradoxalmente premiado em especial os defensores de um islã limitado e truncado, eventualmente violento. O islã integral, que é simultaneamente tradicional e espiritual, padece nas mãos desses seus intolerantes e supostos "defensores" fundamentalistas.

No Egito, essa ideologia contribuiu para intensificar o caos social e econômico, e no final fortaleceu fundamentalistas militantes. Por exemplo: a Irmandade Muçulmana, minando a influência do islã tradicional, que é pacífico e tolerante.

Já temos suficientes problemas no Ocidente, permitamos aos muçulmanos autênticos a tarefa de cuidar de si mesmos.

O islã tem uma civilização de 1.400 anos de realizações impressionantes em intelectualidade, em espiritualidade, em cultura, em arte, em ciências e em organização social e política.

O islã tradicional é uma civilização viva que tem moldado o pensamento e a vida de mais de um bilhão de pessoas espalhadas pelos cinco continentes.

As suas escolas de espiritualidade ("sufismo"), de jurisprudência ("fiqh"), de teologia ("kalam") e de filosofia ("falsafah") provêm a base sobre a qual agir em conformidade com princípios estáveis e duradouros. Algo imposto do exterior, por meio de força militar e econômica, mais e mais assume as cores de um totalitarismo disfarçado.

Dentes e cuecas - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 21/02/12


Uma coroa dentária de Elvis Presley poderá chegar aos R$ 28 mil em próximo leilão. Não seria inédito.


É inevitável não rir: tempos atrás, li na divina "Literary Review" um artigo hilariante sobre a importância das relíquias sagradas na Europa medieval.

A importância das ditas era imensa -para a propagação da fé e para a encenação dos ritos. Mas era igualmente importante para que as igrejas proclamassem a sua fama, o seu poder -e atraíssem oferendas dos peregrinos de todo o continente.

Neste regime de concorrência entre igrejas, onde cada uma publicitava as suas melhores relíquias como os grandes museus de hoje publicitam os seus acervos, havia guerras ocasionais.

E alguns episódios bizarros: contava Jonathan Sumption, autor do artigo, que, no século 12, são Hugo, bispo de Lincoln, não se teria portado condignamente quando pernoitou na abadia francesa de Fécamp.
Tomado pela ganância das relíquias, foi apanhado pelo anfitrião, ao meio da noite, a tentar arrancar o dedo do alegado braço de Maria Madalena.

Quando o dedo insistia em não sair, são Hugo tentou arrancá-lo com os dentes: primeiro, com os incisivos; depois, com os molares. A história horrorizou os prelados franceses, mas são Hugo não mostrou arrependimento.

É inevitável não rir, disse eu. Mas é injusto fazê-lo: o culto de relíquias sagradas foi recuando no Ocidente laico a partir do século 18.

Mas os homens, "animais religiosos" por definição, sempre tiveram horror ao vazio. Como dizia o sapiente Chesterton, quando os homens não acreditam em Deus, eles não passam a acreditar em nada; eles acreditam simplesmente em qualquer coisa.

Revisitar a história do século 20 é encontrar a influência que as "religiões seculares" (expressão de Raymond Aron para o comunismo e o nazifascismo) tiveram sobre a vida de milhões de seres humanos. Mas não é preciso ir tão longe para identificar versões abastardadas de fé religiosa na alma dos contemporâneos.

Hoje mesmo, com o café da manhã, encontro no "Sunday Telegraph" uma lista generosa com algumas relíquias bizarras que têm aparecido em leilões. Relíquias de celebridades, entenda-se, com particular destaque para dentes e dentaduras.

Informa o jornal que uma coroa dentária de Elvis Presley poderá chegar aos R$ 28 mil em próximo leilão. Não seria inédito. O dente molar que John Lennon teria oferecido à empregada doméstica foi vendido por R$ 53 mil em novembro passado.

Mas o melhor da lista é a dentadura postiça de sir Winston Churchill, arrebatada há uns anos por R$ 41 mil. Infelizmente, ninguém me avisou a tempo. Empréstimo bancário é para isso mesmo.
Quem não gosta de dentes, pode sempre optar pelas cuecas que John F. Kennedy usou durante o serviço militar (vendidas em 2001 por modestos R$ 9 mil); ou então por um set com três chapas de raio-X de Marilyn Monroe. Data: 1954. Preço: R$ 77 mil. Pormenor: as chapas são do peito de Marilyn, o que talvez explique o preço inflacionado.

Regresso ao artigo de Jonathan Sumption, que cita são Tomás de Aquino: na Idade Média, as relíquias sagradas reuniam três qualidades fundamentais -continuidade, espiritualidade e abertura à dádiva divina.
Por outras palavras, as relíquias permitiam aos peregrinos manter o contato com os mortos; observar representações tangíveis da alma do santo; e, mais importante, canalizar a fé (e os pedidos terrenos) para um objeto potencialmente milagroso.

São qualidades que passaram dos peregrinos de ontem para os fãs de agora: quem compra a dentadura de Churchill não espera apenas um contato sensível com o seu ídolo; espera também que as qualidades milagrosas de sabedoria, coragem e resiliência, exibidas por Churchill na Segunda Guerra Mundial, possam também transitar de gengiva para gengiva.

Por isso aviso: se você, leitor, é pessoa famosa e com legião de seguidores, não se esqueça de ir fazendo o enxoval: dentes, unhas, cabelos, eventualmente dedos ou membros inteiros -tudo serve.

E roupa também: eu, pelo sim, pelo não, tenho acumulado desde a infância as fraldas e as cuecas que acompanharam o meu crescimento. Os dentes e a língua, só por cima do meu cadáver. Literalmente.
Com sorte, os meus descendentes terão a vida garantida pela paciência de santo do avô.

GOSTOSA





O passo seguinte - MIRIAM LEITÃO


O GLOBO - 21/02/12

Uma nova reunião ontem em Bruxelas dos ministros das finanças da Zona do Euro foi o suficiente para deixar as bolsas animadas. O mundo não leva tão a sério assim o carnaval e tudo continua funcionando.

O que se pode esperar é um acordo que permita a liberação de mais uma prestação do empréstimo para a Grécia, com a qual o país irá rolar a dívida que vence em março. Isso é a solução? Não.

Uma análise feita pelas autoridades que representam os países do euro e os credores, a troica (FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia), projeta que, mesmo se a dívida grega for reduzida em C 100 bilhões, pelo sucesso da negociação com os bancos, o país em 2020 estará com dívida de 129% do PIB. Eles exigiam 120%. No final do dia já aceitavam 125%. Que diferença faz? Qualquer um desses números é absurdamente alto. Qual a capacidade de um país, qualquer que seja, manter um ajuste tão longo em suas contas para conseguir um resultado tão medíocre? Todo ajuste fiscal é de longo prazo e precisa da manutenção de metas de superávits cumpridas por vários anos para se conquistar indicadores melhores.

Mas a partir de um determinado ponto o país só faz encolher, o que eleva a dívida pública mesmo se os juros forem zero. A Grécia está prisioneira dessa armadilha. Este é o quarto ano em que o PIB vai diminuir, então a dívida aumentaria mesmo se em volume permanecesse estável, porque seria mais alta como proporção do PIB. Mas não permanece estável porque os juros têm subido quanto maior é a crise no país.

Qualquer ajuste além de um determinado ponto não é economicamente viável e pode não ser viável politicamente.

Num artigo publicado no "Financial Times", o articulista Wolfgang Münchau disse que "nós estamos num ponto em que o sucesso não é mais compatível com a democracia".

Ele acha que se os credores tiverem sucesso em impor ao novo governo uma política econômica estarão criando a primeira colônia da Zona do Euro.

O compromisso assumido pelo então candidato Luiz Inácio Lula da Silva não é comparável à carta que as autoridades da Zona do Euro exigiram dos candidatos à próxima eleição grega, de abril. Na Carta aos Brasileiros, o que Lula se comprometia era do interesse geral; a manutenção da estabilidade do real. A Carta afastou os temores em relação à mudança de partido no poder, e ele foi eleito. Agora, o que se quer dos gregos não tem apoio na maioria da sociedade.

Se o remédio amargo for rejeitado democraticamente, como pode ser imposto? "Como impedir um novo governo grego e um novo parlamento de unilateralmente mudar o acordo?", pergunta o articulista do "Financial Times". A proposta alemã de que se adie eleições é simplesmente ultrajante.

Não há solução sem dor para a Grécia, mas ela tem que procurar por ela mesma que dor prefere sentir. Os gregos querem ficar no euro, mas começam a achar que é impossível.
A saída do euro vai significar um grande calote interno nos poupadores gregos porque a conversão para a nova moeda, que pode ser a volta ao centenário dracma, será feita com perda de valor do principal hoje poupado em euros. Haverá um empobrecimento adicional dos gregos.

Mas não se pode impor a alternativa de ficar a um preço que signifique determinar de Bruxelas os destinos de Atenas. Ou de Berlim.

O que Bruxelas deveria estar pensando agora é qual é o passo seguinte. Se a Grécia sair do euro, sairá também da União Europeia? Se a saída for imposta, será uma violência. Se ficar, os trabalhadores desempregados da Grécia irão para os outros países da Europa pressionando um mercado de trabalho que está com dificuldade de atender à demanda por emprego. Então, expelir a Grécia como se fosse um corpo estranho não funcionaria.

Depois de queimarem as mãos na dívida grega, os bancos vão olhar com suspeição para Portugal.

E pode-se imaginar um cenário em que se force a saída de Portugal do euro e da União Europeia? Hoje, o presidente da Comissão Europeia é um português: José Manuel Durão Barroso. E mesmo se isso for feito, não será o fim da crise.

A Zona do Euro tem demonstrado desde o começo desta crise uma enorme incapacidade de ter visão estratégica. Em que ponto mesmo quer chegar? Por mais meritório que tenha sido o objetivo inicial da moeda comum — aprofundar a unidade — o fato a se reconhecer neste momento é que não foram tomadas as devidas precauções para um momento de crise, como a atual. E dado que não se pode alterar o passado, é preciso ver adiante e ter um objetivo futuro.

Não há de ser o acordo que estava sendo fechado ontem. O parlamento grego pode aprovar um pouco mais de corte nas pensões como o que estava ontem em discussão, os ministros reunidos em Bruxelas podem aprovar o novo acordo, a Grécia pode receber a nova parcela do empréstimo e cumprir seus compromissos de março, e os bancos podem fechar o acordo de abatimento da dívida. Se tudo isso acontecer, se o melhor cenário em cada caso for atingido, o que se terá ao final? Um país em recessão, com uma dívida acima de 120% do PIB, com déficit alto, com um quinto da mão de obra trabalhando para o governo.

Até os sacerdotes da Igreja Ortodoxa Grega são funcionários públicos e têm isenção fiscal. A Grécia carrega ainda o custo de ter tido durante muito tempo — até recentemente — um sistema previdenciário que permitia a aposentadoria muito precoce.

A Europa está diante de dilemas que marcarão seu projeto comum. Mas seus líderes não parecem ter um plano estratégico. Cada passo é apresentado como a solução final. Mas a crise sempre volta.

Os pacotes e a ambulância - CLÓVIS ROSSI


FOLHA DE SP - 21/02/12

A suposta ajuda europeia está apenas sangrando países à beira da exaustão em todo o continente

A União Europeia discutia ontem o segundo pacote de ajuda a Grécia. Ops, eu disse ajuda? Deveria dizer mais um passo para sufocar um país já exangue.

Os grandes números sobre as consequências dos sucessivos pacotes europeus para a Grécia são eloquentes: o país entra no quinto ano consecutivo de recessão; o desemprego estourou dos 7,4% quando eclodiu a grande crise global de 2008 para os 21% atuais; a renda familiar caiu 30% nos anos de "ajuda".

Pelo menos foram corrigidos deficit e dívida, que o raciocínio convencional aponta como os problemas da Grécia? Não. A dívida saiu de 109% do PIB, no primeiro trimestre de 2007, para os atuais 159%, ao passo que o deficit, que deveria terminar 2011 em 7,6%, bateu em 9%, como proporção do PIB.

Passemos dos grandes números para o cotidiano. O jornal "El País" visitou Portugal, um dos países "ajudados", e recuperou o drama de João António Espadeiro, 84 anos, marca-passo no peito, que vive em Morão, no Alentejo, a uns 200 km de Lisboa.

Quando se sente mal, o que não é raro em uma pessoa dessa idade, ainda mais com problemas cardíacos, "seo" João não pode pedir uma ambulância para levá-lo ao hospital mais próximo, em Évora, a 70 km. Não pode porque a "ajuda" europeia a Portugal foi condicionada a cortes até na gratuidade do transporte em ambulância para necessitados como ele.

Pagar a ambulância roubaria € 36,50 (R$ 83) de sua única fonte de renda, a aposentadoria de € 475 (R$ 1.076). Ah, por favor, não venha me dizer que a aposentadoria de "seo" João é generosa, na comparação com padrões brasileiros. Os padrões brasileiros é que são miseráveis.

Também não venha me dizer que os "joões" de Portugal, da Grécia, da Espanha etc. são os responsáveis pela crise, porque viveram à tripa forra (para usar uma expressão bem portuguesa). Conforme seu gosto e sua visão de mundo, você pode listar uma dúzia de culpados -dos políticos irresponsáveis aos banqueiros gananciosos, passando por vários outros suspeitos-, mas não incluiria aposentados e a grande maioria dos assalariados.

Que, no entanto, pagam o custo até mais que os verdadeiros culpados. Basta ler até quem aprova os pacotes de austeridade, caso de Jean Pisani-Ferry, diretor do Centro Bruegel de pesquisas sobre políticas econômicas europeias, em artigo para o "Monde" de ontem: Pisani-Ferry começa lembrando que entende que os tecnocratas do FMI só pensem em programas como os que estão sendo aplicados. Mas, completa, "a União Europeia é uma entidade política que fez da justiça social um de seus objetivos fundamentais. Ela não pode demandar uma redução do salário mínimo e ter como secundário o fato de que a evasão fiscal dos 10% mais ricos se traduza por uma perda de um quarto das receitas do Imposto de Renda" [caso da Grécia].

O economista afirma que não se trata de negar a necessidade de um programa de austeridade, mas fecha o raciocínio com a observação de que o programa em curso "é tardio, mal concebido e iníquo".

Está explicado por que é errado dizer que se trata de "ajuda"?

Sofrer sem ganhar - PAUL KRUGMAN


O ESTADÃO - 21/02/12

Na semana passada, a Comissão Europeia confirmou o que todos suspeitavam: as economias que ela monitora estão encolhendo, não crescendo. Não é uma recessão oficial ainda, mas a única questão real é qual será a gravidade da retração.
E essa retração está atingindo países que nunca se recuperaram da última recessão. Apesar de todos os problemas dos Estados Unidos, seu produto interno bruto finalmente ultrapassou seu pico anterior à crise; o da Europa, não. E alguns países estão sofrendo dissabores do nível da Grande Depressão: Grécia e Irlanda tiveram quedas de dois dígitos na produção; a Espanha enfrenta 23% de desemprego; e a retração atual da Grã-Bretanha já é mais prolongada que a que enfrentou nos anos 1930.
Pior ainda, alguns líderes europeus - e uma boa quantidade de players americanos influentes - ainda estão casados com a doutrina econômica responsável por esse desastre.
As coisas não precisavam estar tão ruins. A Grécia estaria enfrentando um problema grave independentemente da decisões políticas tomadas, e o mesmo vale, em menor escala, para outros países da periferia da Europa.
Mas as coisas foram agravadas bem mais que o necessário pela maneira como líderes da Europa, e, mais amplamente, sua elite política, substituíram moralização por análise e fantasias pelas lições de história.
Especificamente, a economia de austeridade do começo de 2010 - a insistência de que governos deviam cortar gastos mesmo em face do alto desemprego - virou moda nas capitais europeias. A doutrina afirmava que os efeitos negativos diretos do corte de gastos sobre o emprego seriam compensados por alterações na "confiança", que os cortes de gastos radicais acarretariam um aumento dos gastos industriais e de consumo, enquanto os países que não conseguissem fazer esses cortes sofreriam uma fuga de capitais e uma alta das taxas de juros. Se isso lhe parecer algo que Herbert Hoover poderia ter dito, você está certo: parece mesmo e ele disse.
Agora, os resultados estão visíveis - e eles são exatamente o que três gerações de análise econômica e todas as lições da História poderiam ter-lhes dito que ocorreria. A fada da confiança não apareceu: nenhum dos países que cortaram gastos viu o antecipado crescimento do setor privado. Em vez disso, os efeitos depressivos da austeridade fiscal foram reforçados pela queda dos gastos privados.
Mais ainda, os mercados de bônus continuam sem querer cooperar. Mesmo os bons alunos da austeridade, países que, como Portugal e Irlanda, fizeram tudo que lhes foi pedido, ainda enfrentam custos siderais para a captação de empréstimos. Por quê? Porque os cortes de gastos deprimiram profundamente suas economias, solapando suas bases fiscais de tal maneira que a relação de dívida para o PIB, o indicador do padrão de evolução fiscal, está se agravando ao invés de melhorar.
Enquanto isso, países que não entraram no trem da austeridade - mais especialmente o Japão e os Estados Unidos - continuam tendo custos de captação muito baixos, contrariando as previsões soturnas dos falcões fiscais.
Nem tudo deu errado, porém. No fim do ano passado, os custos para espanhóis e italianos tomarem empréstimos subiram, ameaçando um derretimento financeiro geral. Esses custos agora caíram em meio a suspiros gerais de alívio. Mas a boa nova foi, de fato, um triunfo da antiausteridade: Mario Draghi, o novo presidente do Banco Central Europeu (BCE), desconsiderou os preocupados com inflação e arquitetou uma grande expansão do crédito, que é precisamente o que o médico havia receitado.
O que será preciso, então, para convencer a Convenção da Dor, as pessoas de ambos os lados do Atlântico que insistem em que os cortes permitirão avançarmos para a prosperidade, de que ela está errada? Afinal, os suspeitos de sempre foram rápidos em declarar morta para sempre a ideia do estímulo fiscal, depois que os esforços do presidente Obama não conseguiram produzir uma rápida queda do desemprego - apesar de muitos economistas terem advertido previamente que o estímulo era demasiado pequeno.
Até onde posso dizer, porém, a austeridade ainda é considerada responsável e necessária, apesar de seu fracasso catastrófico na prática.
A questão é que poderíamos realmente fazer muita coisa para ajudar nossas economias pela simples reversão da austeridade destrutiva dos últimos dois anos. Isso vale mesmo para os Estados Unidos, que evitaram uma austeridade estrita em nível federal, mas tiveram grandes cortes de gastos e emprego nos níveis estadual e local. Lembram todo o barulho sobre se havia projetos prontos em número suficiente para tornar factível o estímulo em larga escala? Bem, não importa: tudo que o governo federal precisa fazer para dar um grande impulso à economia é prover ajuda aos governos de níveis inferiores, permitindo que esses governos recontratem as centenas de milhares de professores que dispensaram e recomecem a construir e a manter projetos que cancelaram.
Vejam, eu compreendo por que pessoas influentes relutam em admitir que ideias políticas que, a seu ver, refletiam uma sabedoria profunda na verdade não passam de uma loucura total e destrutiva. Mas já passou da hora de deixarmos para trás as crenças ilusórias sobre as virtudes da austeridade numa economia deprimida. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK

Desafios do financiamento do agronegócio - ANTÔNIO M. BUAINAIN


O Estado de S.Paulo - 21/02/12


A cada safra volta à tona o problema do financiamento da agricultura brasileira, cujo padrão produtivo e cultura foram, pelo menos em parte, formados no ambiente de crédito farto e barato que prevaleceu até meados da década de 1980.

A crise da política agrícola foi um processo longo, marcado por intervenções e omissões do Estado, por um "padrão de intervenção caótico" que deixou sequelas negativas, dentre elas o endividamento e o empobrecimento da agenda de desenvolvimento do setor. A crise da política agrícola dominou a agenda política do setor durante mais de uma década, e um novo padrão só começou a emergir no início dos anos 90, com o reconhecimento da incapacidade de o Estado manter o crédito altamente subsidiado, honrar os preços prometidos pela política de garantia de preços mínimos e assegurar a assistência técnica universal. Ainda hoje, o financiamento é apontado como um dos principais gargalos para o crescimento sustentável do setor.

É bastante difundida a visão de que a agricultura brasileira depende totalmente dos recursos públicos, que o agricultor é descapitalizado e só consegue produzir porque conta com crédito rural oficial e condições especiais de financiamento. O trabalho de dissertação de mestrado em Economia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Financiamento da cadeia de grãos no Brasil: o papel das tradings e fornecedores de insumos, defendido por Felipe Prince Silva, no início de fevereiro, apresenta evidências suficientes para questionar tal ideia.

O estudo parte de um aparente paradoxo: se a agricultura é tão dependente do crédito oficial, como explicar o forte dinamismo e a consolidação do setor na Região Centro-Oeste do País justamente no período mais intenso da crise da política agrícola e de redução de recursos públicos?

Para entender a questão, o trabalho analisa os modelos de crédito rural praticados no Brasil, no âmbito do crédito agrícola oficial e do crédito agrícola comercial privado, crédito não oficial e crédito informal; e quantifica e compara o papel desempenhado pelos agentes privados e pelo setor público no financiamento de custeio de grãos, tomando como exemplos a soja e o milho nas Regiões Centro-Oeste e Sul.

A primeira conclusão é de que no Sul do País predomina o modelo de crédito agrícola oficial, feito pelos bancos comerciais - principalmente o Banco do Brasil - e pelas cooperativas de crédito, enquanto no Centro-Oeste o financiamento se baseia principalmente no crédito agrícola comercial privado, feito por agentes não bancários, como agroindústrias, fornecedores de insumos e tradings.

De acordo com o trabalho, a partir de dados do Banco Central e da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), na Região Sul o crédito agrícola oficial atendeu a 70% da demanda de crédito da soja e a 59% do milho na safra 2010/2011, e apenas a 32% e a 31% na Região Centro-Oeste. Para Prince Silva, "a capacidade dos agentes do agronegócio (a montante e a jusante) de se organizar e criar instituições e mecanismos para suprir a insuficiência de crédito oficial são elementos fundamentais para explicar a expansão da produção na região, mesmo em um cenário de redução dos recursos do Estado".

A segunda conclusão é de que nas duas regiões os produtores aportam porcentuais relevantes de recursos próprios para custear a produção, uma vez que a política agrícola limita o valor do crédito contratado em R$ 650 mil por tomador (controlado pelo CPF). Esse teto é insuficiente para atender às necessidades de custeio da maioria dos produtores de grãos do Centro-Oeste, que produzem em maior escala, e impõe severas restrições até mesmo no Sul do País. Isso obriga o produtor a buscar financiamento privado extrabancário ou a utilizar autofinanciamento, cuja parcela tem aumentado.

Trata-se, sem dúvida, de um fato positivo, em especial porque reduz a exposição do produtor ao risco de inadimplência. Mas tem também um aspecto negativo, pois reduz a disponibilidade de recursos para aqueles "pequenos gastos" que não são objeto de financiamento, mas que são muito importantes para a sustentabilidade da unidade produtiva e do negócio.

Os problemas do modelo oficial são conhecidos, e o estudo revela vantagens e desvantagens do modelo de financiamento privado predominante no Centro-Oeste.

A primeira vantagem é a própria autonomia em relação aos recursos oficiais, que no passado flutuaram de forma muito errática. O financiamento privado extrabancário também permite melhor gestão dos recursos, com efeitos importantes nos custos de produção. Um exemplo é a possibilidade de comprar os insumos na entressafra, quando os preços estão mais baixos, e evitar a conhecida novela do atraso da liberação dos recursos oficiais, que não raramente chegam tarde demais.

Além disso, o financiamento é associado à garantia de comercialização e à fixação de preço, o que reduz fortemente os riscos de mercado na medida em que os produtores fecham de forma antecipada os custos de produção e o preço de venda, deixando em aberto apenas o risco climático que hoje pode ser parcialmente segurado.

O lado negativo é que o "modelo do Centro-Oeste torna a região mais vulnerável à volatilidade do fluxo de recursos financeiros". Como os fornecedores de insumos e tradings que financiam a produção captam parte dos recursos no mercado de crédito internacional, "um cenário de crise econômica externa e queda de liquidez pode provocar diminuição da produção na região, colocar em risco os investimentos realizados e os benefícios gerados pelas exportações...".

Finalmente, talvez o ponto mais negativo "é o encarecimento das linhas de capital de giro para os produtores da região, já que as taxas de juros pagas são entre duas e três vezes mais elevadas que as taxas de juros com recursos controlados". É caro, mas está disponível, enquanto o oficial é mais barato, continua chegando tarde, muitas vezes não chega e ainda é insuficiente. E vem empacotado em serviços extras que o encarecem em alguns pontos porcentuais. Mesmo assim, o "modelo brasileiro" de financiamento privado é, atualmente, exemplo para muitos países.

Dores dos cortes - VALDO CRUZ


FOLHA DE SP - 21/02/12

BRASÍLIA - Divulgado estrategicamente dias antes do Carnaval, o corte de R$ 55 bilhões no Orçamento atingiu em cheio as famosas emendas parlamentares -dinheiro que deputados e senadores mandam para suas bases eleitorais.

Amortecidos pela véspera do período momesco, os protestos devem reinar na volta dos trabalhos do Congresso pós-Carnaval.

Mas não é só ali, no Legislativo, que os cortes geraram queixas e farão Dilma administrar tensões. Dentro da própria equipe econômica o tema divide opiniões.

Guido Mantega defendeu o corte de R$ 55 bilhões. Seu secretário-executivo, Nelson Barbosa, preferia uma tesourada um pouco mais suave para vitaminar os investimentos públicos federais.

As divergências entre os dois, num momento em que o ministro da Fazenda se tornou alvo de tiroteios, azedaram ainda mais o clima dentro do ministério.

Ciente dos atritos, o recado presidencial resume-se a três itens. Primeiro: Guido Mantega e Nelson Barbosa ficam onde estão e precisam se acertar. Os dois contam com seu apoio e admiração. Se o secretário-executivo da Fazenda decidir sair do seu posto, será chamado a assumir outro -mas não acredita que isso aconteça.

Segundo: não acha ruim que eles divirjam, faz bem para o debate "interno" do governo. Detesta, porém, que divergências em sua equipe ganhem as páginas dos jornais.

Terceiro: o corte de R$ 55 bilhões no Orçamento não é decisão desse ou daquele assessor, mas dela. Dilma segue adepta de sua nova visão de rigor fiscal, de olho na redução da taxa de juros para um dígito.

Afinal, ela sabe que o Banco Central só terá condições de seguir reduzindo os juros se o ajuste fiscal prometido for cumprido.

Ou seja, quem esperava mudar a opinião presidencial, aparentemente, pode desistir. A vida da base aliada, principalmente, será dura.

JAPA GOSTOSA




Jogo de empurra - ILIMAR FRANCO

O GLOBO - 21/02/12


COM FERNANDA KRAKOVICS  


Diante das ameaças de greve de policiais militares e bombeiros pelo país, o governo federal afirma que a questão salarial dessas categorias é um problema dos governadores. E estes reclamam que quem inventou a proposta do piso nacional, a PEC 300, foi o então ministro da Justiça Tarso Genro. Então, para os governadores, quem deveria resolver o problema de ter criado essa expectativa é o governo federal. Eles alegam que a aprovação da PEC 300 quebraria os estados.

Regulamentação do direito de greve
O assunto foi tema de conversa dos governadores com a presidente Dilma na posse de Graça Foster na presidência da Petrobras. Os governadores também querem discutir o direito de greve. A questão divide a Justiça. Juízes do trabalho defendem a possibilidade. Presidente da Associação Nacional dos Magistrados
da Justiça do Trabalho, Renato Sant’Anna prega uma leitura mais contemporânea da Constituição. Em 1988, acredita ele, havia o receio de uso das forças militares para fins políticos. “Desde que não exista abusos, policiais militares e bombeiros podem participar de movimentos reivindicatórios” diz Sant’Anna.

"Este ano eleitoral é muito propício ao discurso fácil de vir aqui defender a PEC 300” — Fernando Ferro, deputado federal (PT-PE), sobre a votação da proposta de criação do piso nacional para a PM

AMARRANDO SERRA. O grupo ligado ao senador Aécio Neves (PSDB-MG) e a cúpula tucana já falam em fazer prévias para escolher o candidato do partido à Presidência da República no início de 2013. O objetivo é excluir José Serra. O raciocínio é que, logo após a eleição para a capital paulista, em que Serra deve concorrer, o ex-governador não teria como disputar as prévias, independentemente de ter sido eleito ou não.

Trabalho decente
Será dia 1º de março a solenidade no Planalto para lançar o pacto da construção civil. A CUT cobra um piso nacional para o setor. “Isso é sonho da CUT. Cada obra é uma realidade”, diz o presidente da Força Sindical, Paulo Pereira da Silva.

Pegou mal
Do deputado Chico Alencar (PSOL-RJ), sobre a decisão do prefeito do Rio, Eduardo Paes, de revogar a nomeação do ex-ministro Carlos Lupi para assessor especial da prefeitura: “Era amor de carnaval, que desaparece na fumaça”.

Pauta cheia no STF
O STF deve julgar, nesta quinta-feira, ação direta de inconstitucionalidade (Adin) contra lei estadual do Rio Grande do Sul que proíbe a produção e comercialização de produtos à base de amianto. A matéria-prima é proibida em mais de 40 países do mundo, inclusive em toda a União Européia, devido ao risco à saúde. Também está na pauta do Supremo uma Adin, proposta pelo PP, contra pontos do Estatuto do Torcedor.

Cultura afro
A Fundação Cultural Palmares quer construir um Centro Nacional de Cultura Negra em Brasília. O projeto aguarda licença ambiental. Presidente da fundação, Eloi de Araujo reuniu-se com o diretor do Smithsonian, John Franklin.

Cultura afro 2
A conversa com o diretor do Smithsonian, instituto norte-americano, foi basicamente sobre o Museu Afro-Americano de História e Cultura, cuja pedra fundamental será inaugurada pelo presidente Barack Oba-ma amanhã.

NOVELA. Do ex-governador de São Paulo Alberto Goldman (PSDB), que é do grupo de José Serra: “Espero, quando voltar (do carnaval), ver a novela do candidato do PSDB a prefeito de Sampa terminada”.

O PMDB continua reclamando de estar subrepresentado no governo. E o PT também não gostou das últimas mudanças no Ministério.

COPA. Comissão especial da Câmara dos Deputados tenta votar, mais uma vez, a Lei Geral da Copa, na próxima terça-feira.

Escravos da modernidade - VLADIMIR SAFATLE


FOLHA DE SP - 21/02/12

Na semana passada, a imprensa veiculou a notícia de que uma construtora servia-se de trabalho escravo.
A obra não era uma hidrelétrica na região Norte ou em algum lugar de difícil acesso, onde sempre é mais complicado descobrir o que se passa. Na verdade, a obra encontrava-se quase na esquina com a avenida Paulista.
Trata-se da reforma de um dos mais conhecidos hospitais da capital paulista, o Hospital Alemão Oswaldo Cruz. Ironicamente, a empresa responsável pela obra chama-se "Racional" Engenharia.
Como não podia deixar de ser, a empresa afirmou que os trabalhadores respondiam a uma empresa terceirizada e que os dirigentes desconheciam realidade tão irracional. Este foi o mesmo argumento que a rede espanhola de roupas Zara utilizou quando foi flagrada servindo-se de mão de obra escrava boliviana empregada em oficinas terceirizadas no Bom Retiro.
É muito interessante como empresas que gastam fortunas em publicidade e propaganda institucional são tão pouco cuidadosas no que diz respeito às condições aviltantes de trabalho das quais se beneficiam por meio do truque tosco da terceirização. Quando se contrata uma empresa terceirizada, não é, de fato, complicado averiguar as reais condições a que trabalhadores estão submetidos, se seus turnos são respeitados e se seus alojamentos são decentes.
Há de se perguntar se tal desenvoltura não é resultado da crença de que ninguém nunca perceberá o curto-circuito entre imagens institucionais modernas, requintadas, "racionais", e sistemas medievais de exploração.
No fundo, essa parece ser mais uma faceta de um velho automatismo brasileiro de repetição: discursos cada vez mais elaborados e modernos, práticas cada vez mais arcaicas. Afinal, tal precariedade foi feita em nome de novas práticas trabalhistas, mais flexíveis e adaptadas aos tempos redentores que, enfim, chegaram.
Não mais a rigidez do emprego e do controle dos sindicatos, mas a leveza do paraíso da terceirização, onde todos serão, em um horizonte próximo, empresas. Cada trabalhador, um empresário de si mesmo.
Que essa flexibilidade tenha aberto as portas para uma vulnerabilidade que remete trabalhadores à pura e simples escravidão, isto não retiraria em nada o brilho da ideia. Pois apenas os que temem o risco e a inovação poderiam querer ainda as velhas práticas trabalhistas. Pena que o novo tenha uma cara tão velha.
Pena também que, como os gregos mostrem a cada dia, quem paga o verdadeiro preço do risco sejam, como dizia o velho Marx, os que já perderam tudo

Bônus para servidores paulistas - EDITORIAL O ESTADÃO


O Estado de S.Paulo - 21/02/12


O governador Geraldo Alckmin não só manteve um dos mais importantes programas formulados e aperfeiçoados nos governos Mario Covas e José Serra, como o vem estendendo a toda máquina governamental estadual. Trata-se do sistema de meritocracia, que concede prêmios mensais em dinheiro e vantagens funcionais aos servidores públicos por produtividade e progressão, com base num método de avaliação de desempenho.

Os políticos do PSDB fizeram dessa política a marca de suas gestões nos governos municipais, estaduais e federal. Em São Paulo, essa política foi adotada pelo governo Covas no setor de educação, premiando os professores com melhor desempenho em sala de aula e os diretores de escolas públicas mais eficientes.

Inspirada em programas adotados nos Estados Unidos e na Europa, a ideia era usar a concessão de bônus como instrumento de estímulo para a qualificação do magistério público. Em seguida, com base em testes e experiências conduzidas pelo governo Serra, o sistema de meritocracia foi aprimorado e estendido para o setor de saúde e, mais tarde, para a área fazendária.

Há pouco mais de uma semana, o Diário Oficial do Estado publicou três decretos assinados pelo governador Geraldo Alckmin, com base em lei aprovada pela Assembleia Legislativa no final do ano passado, estendendo o sistema de meritocracia para todos os servidores estaduais. A partir de agora, eles terão seu desempenho avaliado e receberão um bônus mensal atrelado aos resultados dessa avaliação. O valor do bônus varia de acordo com as carreiras do funcionalismo público. Para o oficial administrativo, por exemplo, que tem um salário médio de R$ 760, ele pode chegar a R$ 300 por mês. Já o executivo público, que tem diploma universitário e recebe um salário médio de R$ 2,9 mil mensais, pode receber bônus de até R$ 1 mil. O impacto inicial dessa iniciativa no orçamento estadual, segundo a Secretaria de Gestão Pública, está estimado em R$ 7 milhões mensais.

Quando o sistema de meritocracia foi adotado por Covas, as entidades sindicais do setor educacional resistiram fortemente à sua implementação, alegando que ele não passava de uma medida pontual destinada a compensar a falta de reajuste salarial do funcionalismo paulista. Quando o sistema foi aprimorado e expandido por Serra, as mesmas entidades deflagraram greves e acusaram o governador de utilizar a política de gratificações para punir servidores e dividir o funcionalismo, que sempre foi muito coeso na defesa de seus interesses corporativos.

Agora, as entidades sindicais do funcionalismo paulista alegam que o governo está ampliando o sistema de meritocracia com dois objetivos. O primeiro é congelar os salários da corporação. O segundo objetivo é aumentar o peso relativo dos bônus, em detrimento dos vencimentos, na composição dos salários - a exemplo do que vem ocorrendo há muito tempo em vários setores da iniciativa privada. "O governo inventa gratificações que, no fim, têm mais peso que o próprio salário. O que o funcionalismo quer, e não tem, é um salário digno", diz Carlos Ramiro, ex-presidente do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp) e militante do PT.

As críticas não são procedentes. O que os líderes sindicais querem são reajustes salariais lineares para todos servidores, sem qualquer cobrança de desempenho e qualificação profissional, como contrapartida. "Não estamos pensando em punição para quem for mal avaliado, até porque a perda do bônus já deve servir de sanção. Queremos dar chances ao servidor de melhorar e procurar cursos de qualificação que o Estado vai fornecer nas áreas que considerar mais adequadas", diz a secretária Estadual de Gestão Pública, Cibele Franzese.

A posição dos sindicalistas do serviço público estadual é anacrônica. Na área federal, até o PT - na gestão do presidente Lula - adotou política de metas e bônus no setor educacional, por entender que essa era a melhor estratégia para motivar o professorado.

Profilaxia eleitoral - RENATA LO PRETE

FOLHA DE SP - 21/02/12
Procuradores eleitorais discutem a elaboração de uma lista nacional com nomes de políticos enquadrados nos critérios da Ficha Limpa para subsidiar partidos e coligações no registro de candidaturas, que começa em junho. Abastecido pelos tribunais regionais, o banco de dados, similar ao criado pela AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) em 2010, catalogaria todos os agentes públicos condenados em segunda instância e respectivas causas de inelegibilidade.

Segundo a proposta em estudo, a rede de informações seria coordenada pelo Conselho Nacional do Ministério Público, com o respaldo do CNJ.

Sujou 1 Para o ex-deputado Indio da Costa (PSD-RJ), relator do Ficha Limpa no Congresso, os partidos vão aumentar os filtros na escolha de candidatos. "O risco de ter um registro cassado com a campanha em andamento aumentou expressivamente".

Sujou 2 A quatro meses das convenções, coordenadores de chapas à Câmara de São Paulo vasculham antecedentes de puxadores de voto. Sobretudo em siglas sem coligação proporcional, a descoberta tardia de um "ficha suja" seria fatal para a obtenção do quociente eleitoral.

Mensageiro Fernando Haddad recorreu ao ex-colega de Esplanada Walfrido dos Mares Guia para auxiliá-lo na atração do PSB ao seu bloco de aliados para a eleição paulistana. Titular das pastas de Turismo e Relações Institucionais sob Lula, ele preside hoje a seção mineira da sigla.

Mapa astral Quem conhece bem José Serra afirma: o tucano dificilmente toma decisões importantes antes de 19 de março, quando aniversaria. O problema é que as prévias do PSDB paulistano estão marcadas para o dia 4.

Divã Em Buenos Aires, para onde viajou no sábado, Serra costuma ouvir seu psicanalista, espécie de guru a quem recorre em momentos de inquietação política.

Escuta aqui Aliados alertaram os petistas João Paulo e João da Costa que já é palpável o "enfado" da população de Recife com a guerra fratricida entre os petistas. Foram aconselhados a definir quem será o candidato até março, para que haja tempo de aparar as arestas.

Haja vista Para minar Emília Ribeiro, que tenta recondução ao conselho da Anatel, o presidente da agência, João Rezende, pediu aos conselheiros um balanço de atividades. A intenção era mostrar que Emília recebeu menos processos e barrou votações com pedidos de vista.

Números Autora de projeto por mais transparência na Anatel, Emília foi a única a mandar o relatório. Ela recebeu mais projetos que o próprio presidente, e pediu vista em 13% dos processos, dentro da média do órgão.

Sucessão O mandato de Emília Ribeiro na Anatel acaba em novembro. Daniel Slaviero, diretor do SBT em Brasília, e Bruno Ramos, ex-superintendente da agência, estão na briga pela vaga. Ambos têm apoio de Rezende.

Sinal fechado 1 Dilma comprou briga com as TVs comunitárias, que foram próximas a ela na campanha. O marco regulatório da televisão por assinatura, de 2011, qualifica as emissoras, em grande medida sob controle de ONGs, como "estatais".

Sinal fechado 2 O tratamento impede captação de patrocínio cultural, fonte de recursos para subsistência de 80 canais do gênero em 20 Estados. Associação da categoria quer agora que o Planalto reveja a medida.

com FÁBIO ZAMBELI e ANDRÉIA SADI

tiroteio

"Numa sexta de Carnaval, o prefeito nomeou Lupi no bloco 'Tá na frente eu empurro'. Só faltou combinar com o pessoal do 'Quem vai, vai, quem não vai não cagueta'."

DO EX-PREFEITO CESAR MAIA (DEM-RJ), usando nomes de blocos cariocas para ironizar a reviravolta na indicação de Carlos Lupi para a assessoria de Eduardo Paes. A contratação foi anulada dois dias depois de sair no "Diário Oficial".

contraponto

Google Maps

Durante a campanha eleitoral de 2010, Michel Temer viajou a Cuiabá para participar de um evento. Na companhia do correligionário Geddel Vieira Lima, o então candidato a vice-presidente foi alertado por peemedebistas locais a não cometer a clássica gafe de trocar a capital de Mato Grosso pela de Mato Grosso do Sul.

Mesmo assim, ao discursar, Temer se confundiu. No voo de volta, pouco depois da decolagem, o espirituoso Geddel espiou a paisagem pela janela e brincou:

-Como Campo Grande é bonita assim iluminada...

Dilma, não esquece o Galeão! - RODRIGO CONSTANTINO


O GLOBO - 21/02/12
Aproveitando o clima de carnaval, que coloca a Cidade Maravilhosa em evidência mundial, e também a quebra de mais um tabu ideológico dos petistas, gostaria de lançar aqui a campanha pela privatização do Galeão. Por que Garulhos, Brasília e Campinas, e não o nosso "querido" Galeão, por onde circulam quase 15 milhões de passageiros por ano? Com a expansão da classe média, turbinada pelo crescimento chinês e regada a crédito, a quantidade de passageiros que usam o Galeão cresceu 11% ao ano nos últimos cinco anos. A gestão da Infraero não foi capaz de acompanhar este ritmo. Qualquer viajante que precisa utilizar o Galeão com frequência sabe o martírio que é enfrentar tal desafio.

A privatização de aeroportos não é uma novidade, e tem ocorrido no mundo todo desde que Thatcher iniciou o processo em 1987. Nova Zelândia, Cingapura, Áustria, México, Malásia e Tailândia foram países que seguiram a mesma trilha, privatizando aeroportos que experimentaram expressivos ganhos de produtividade. Nos Estados Unidos também existem vários aeroportos privados.

Não é difícil compreender por que a gestão estatal acaba sendo ineficiente. O governo não é bom empresário, pois lhe faltam os mecanismos adequados de incentivo. A burocracia estatal busca a rotina, não a inovação. O uso de recursos da "viúva" faz com que não exista preocupação com a rentabilidade do negócio. Logo, satisfazer o cliente não é um foco relevante. A estabilidade dos empregados faz com que fique impossível punir a ineficiência e premiar a competência com base na meritocracia, típica do setor privado.

Nas estatais, os interesses políticos sobrepujam os interesses econômicos, fundamentais para se prestar bons serviços. Qualquer cidadão acostumado com a visita rotineira às repartições públicas sabe bem do que estou falando. Para piorar as coisas, no Brasil é crime o "desacato a funcionário público", com pena de até dois anos de detenção ou multa. Como desacato é algo um tanto arbitrário, se o cliente elevar o tom da voz já pode ser enquadrado na lei. Todo cuidado é pouco, viajante!

O ranço ideológico, especialmente do PT, sempre foi uma enorme barreira contra a privatização. O setor privado era visto com enorme desconfiança, o lucro era obra de algum pacto mefistofélico, e os interesses nacionais eram confundidos com a necessidade de controle estatal. Foi com esta mentalidade retrógrada que o governo brasileiro resolveu atuar como empresário em diversos setores.

Após décadas de serviços ruins, bilhões em prejuízos, muita corrupção e atraso tecnológico, teve início a era da desestatização. Justiça seja feita, os tucanos partiram para este caminho a contragosto, por necessidade e não por convicção (como faz falta um partido realmente liberal no Brasil). Tanto que nunca souberam defender abertamente o sucesso das privatizações. Quem esqueceu a cena patética de Alckmin em 2006 posando de outdoor ambulante das estatais, para negar a "acusação" de privatista?

O PT sempre fez de tudo para impedir esta etapa crucial para o progresso do país. Se dependesse dos petistas, a Embraer ainda faria sucatas voadoras, as ferrovias estariam abandonadas, a Telebrás estaria na era analógica e a Vale jamais seria o ícone de excelência que é hoje. Em toda eleição o partido apelava para o "terrorismo" ideológico, alegando que os adversários iriam cometer este terrível pecado que é a privatização.

Nada como o pragmatismo do poder. Com a Copa do Mundo e as Olimpíadas chegando, e a falta de recursos para investimentos (não sobra muito depois de tantos gastos assistencialistas e com pessoal), eis que o próprio PT resolveu privatizar aeroportos! Está certo que houve grande atraso por culpa do ex-presidente Lula. Está certo também que o modelo escolhido foi repleto de falhas, dependeu do BNDES (sempre ele) para garantir financiamento, e foi realizado às pressas.

Ainda assim, antes tarde do que nunca. Mesmo com a forte presença dos fundos de pensão nos grupos vencedores, o fato é que R$ 25 bilhões serão arrecadados pelo governo, e a gestão sairá da Infraero. Quanto valeria o Galeão em um leilão programado com calma, sob forte concorrência internacional?

Aproveitemos que o Brasil está na moda e que os investidores do mundo todo estão desesperados em busca de oportunidades. Nós nem nos importamos com a discussão semântica se é privatização ou não, desde que a gestão fique com a iniciativa privada, em busca de lucros. É a melhor garantia que os usuários têm para melhorias do serviço. Até porque pior do que está não fica!

Alemanha pressiona Grécia a abrir mão da sua democracia - WOLFGANG MÜNCHAU


FOLHA DE SP - 21/02/12

DO “FINANCIAL TIMES”


Quando o ministro das Finanças da Alemanha, Wolfgang Schäuble, propôs que a Grécia adiasse suas eleições como condição para receber nova ajuda, chegamos ao ponto em que o sucesso não é mais compatível com a democracia.
Shäuble quer prevenir uma escolha democrática "errada". Similar é a sugestão de que as eleições aconteçam, mas uma grande coalizão permaneça no poder, independentemente do resultado.
A zona do euro quer impor sua escolha de governo à Grécia, no que a transformaria em sua primeira colônia.
A origem da proposta é um dilema legítimo. Schäuble sabe que é arriscado liberar fundos antes de uma eleição. O que impede que o novo governo mude o acordo?
Não ajuda o fato da Grécia ter um histórico ruim de implementar políticas.
Mas, para superar a desconfiança, a zona do euro está procurando garantias inacreditavelmente extremas.
Uma coisa é os credores interferirem no gerenciamento de políticas de um país beneficiário. Outra é dizer a ele para suspender eleições. Na própria Alemanha, isso seria inconstitucional.
Falta de confiança é a razão pela qual o pacote grego foi adiado até o último minuto possível e porque as últimas propostas contêm pedidos tão perigosos, como a presença permanente dos credores e do FMI no país.
Logo, haverá mais austeridade e, em algum momento, alguém vai reagir.
A estratégia alemã parece ser tornar a vida na Grécia tão insuportável que os próprios gregos vão querer sair da zona do euro.
A chanceler alemã, Angela Merkel, certamente não quer ser vista com uma arma na mão.
É uma estratégia de suicídio assistido, uma tática extremamente perigosa.

Michel Teló rouba a cena de Jennifer Lopez - MÔNICA BERGAMO

FOLHA DE SP - 21/02/12
Já passa das 4h da madrugada quando o prefeito Eduardo Paes, do Rio, "invade" o cercadinho onde o cantor Michel Teló foi instalado no camarote da Brahma para tentar assistir em paz aos desfiles do Sambódromo. "Dança, prefeito", pediu a coluna. Paes joga os braços para cima, começa a rebolar na frente do músico e a cantarolar: "Delícia, delícia, assim você me mata! Ai, seu eu te pego, ai, ai, se eu te pego!".

Alguém na arquibancada joga uma bandeira enrolada e acerta no peito do prefeito. Que continua dançando.

A atriz Suzana Vieira grita: "Ai, que bom, gente, peraí, peraí!", e corre para abraçar Teló. Apresenta a ele Sandro Pedroso: "Esse é o meu namorado, marido e amigo!". Teló pede o contato de Sandro para convidá-los para um show. "Aí você me chama e eu danço com você no palco", diz a atriz.

Sandro abraça o prefeito: "Amo você!".

Teló ri de toda a cena. Cochicha com a coluna: "Carnaval é muito bom procês, né?"

A noite marca a estreia do cantor no barulhento e agitado mundo dos camarotes "vips comerciais". São os espaços que empresas alugam no Sambódromo para convidar "clientes, famosos e gostosas" (como já definiu Jorge Paulo Lemann, um dos donos da Ambev, que fabrica a Brahma) para o Carnaval. Os famosos são o chamariz e a garantia de exposição da marca em sites e jornais.

E Teló é o diamante do momento. Não por acaso, a Ambev enviou um jato particular a Vinhedo, onde ele fazia show, para buscá-lo na noite de domingo e carregá-lo até o Sambódromo. Parceiro da empresa em rodeios em que canta, Teló diz que viajou ao Rio sem cobrar cachê.

E acabou roubando a cena de Jennifer Lopez, que cobrou R$ 2 milhões para circular pelo camarote. Quando ele chegou, ela já tinha saído. E poucos se lembravam que passara por lá.

De diretores da cervejaria a modelos como Tamires, "da agência 40°", de jogadores como Edmundo e Vagner Love à economista Marcela Abdelai, que vai se "casar em maio em Las Vegas com a sua música" -todos apareciam para tirar fotos com Teló. "Só hoje já fiz 300. A gente escolhe umas 20 e coloca no site", explicava Igor Duarte, fotógrafo do cantor. "Deixa ele descansar um pouquinho", pedia Teófilo Teló, seu "irmão, amigo e empresário". Em vão.

Teló se dizia ainda espantado com o sucesso recente -"Ai, se Eu te Pego" estourou em meados do ano passado (ver entrevista ao lado). "Artista é como um copo de chope" filosofava Teófilo, erguendo sua tulipa. "Quanto mais alto, mais difícil de manter lá em cima. A gente nunca viveu isso."

"Sandro! Vem, amor! Vem, amor!", pedia Suzana Vieira para que o marido se juntasse ao grupo que tirava fotos com o cantor.

"A primeira vez que eu beijei o Sandro foi aqui nesse camarote", contava ela. "Eu tinha visto um gato na [escola de samba] Grande Rio. Ele tava me seguindo. Mas eu não sabia se queria ficar com ele antes de beijar ele. Aí vim para cá [camarote da Brahma] e pedi para o José Victor [Oliva, que organiza o espaço há 21 anos]: 'Cê manda buscar o gato?'. Aí trouxeram o Sandro."

"E ele ficou com você naquela noite?", pergunta Oliva. "Nããão. Já eram 6h da manhã. A gente tava suado", diz Suzana. Sandro desmente: "Fiquei, sim, muito. Senão ela não tava aqui comigo hoje!". Os dois dizem que vão se casar. "Comprei um apartamento em frente à praia. Só um quarto para nós dois e uma sala. A família que fique no hotel Sheraton!", gargalha Suzana. "Fiz uma garçoniere!", prossegue. "Vou alugar a minha casa [de seis quartos] por uns R$ 20 mil." "O importante é não brochar de cabeça", aconselhava a atriz aos amigos.

'SOU FEIO, MAS TÔ NA MODA'

O que Michel Teló falaria para Jennifer Lopez se tivesse se encontrado com ela no Sambódromo? 'Delicious", respondeu. E "quem você gostaria de pegar"? "Tô de boa, tô de boa." Seguido por repórteres a noite toda, o cantor conversou com um grupo deles já no fim da madrugada de segunda no Sambódromo. Abaixo, um resumo:

Folha - Você está sendo muito assediado por mulheres aqui hoje. Você acha que ficou mais bonitinho depois do sucesso?
Michel Teló - Eu sou feio, mas estou na moda (risos). Na verdade, é legal quando o mundo tá te vendo. Atores, atrizes que eu conheço [de longe] hoje vêm tirar fotos comigo. Isso é bacana, é um reconhecimento.

Qual deles mais te surpreendeu?
A [atriz] Suzana Vieira começou a dançar hoje para mim aqui. Não é qualquer pessoa, né? É alguém por quem eu tenho todo o carinho e respeito.

O sucesso e o assédio feminino podem ter influído para o fim do seu casamento com Ana Carolina, anunciado neste mês?
O assédio sempre foi natural. Mas este momento de muito trabalho acabou nos distanciando. Eu estou me mudando agora para São Paulo. Mas a minha casa era em Campo Grande (MT). E eu fui só cinco vezes para lá no ano passado.

Em que bairro de São Paulo vai morar?
No Brooklin, num apartamento duplex. Meu irmão mora por ali, é perto do aeroporto. Eu ainda não conheço muita gente em SP. Só a galera dos sertanejos. Mas quero fazer amigos.

Passou a se preocupar com segurança?
Eu não ando com segurança. É que eu levo uma vida normal. Mas a gente vai começar a tomar algumas medidas. Tranquilas, mas necessárias. Eu sempre digo: em primeiro lugar, a minha segurança é Deus.

'NÃO SOU O TIPO QUE BEBE CERVEJA'

A cantora e atriz americana Jennifer Lopez, 42, chegou às 22h10 no Camarote Brahma da Sapucaí, anteontem. Ela conversou com alguns jornalistas. A seguir, as perguntas da coluna:

Folha - Você gosta de cerveja?
Jennifer Lopez - Não, eu não sou o tipo que bebe cerveja, mas tenho muitos amigos que bebem [risos].

Então por que você aceitou fazer essa campanha [da Brahma]?
Porque era sobre o Brasil, sobre o Carnaval, sobre a celebração da vida. Era mais sobre essas coisas boas do que qualquer outra. E eu nunca tinha estado no Carnaval. Pensei que era uma boa maneira de ter essa experiência.

Ganhou muito dinheiro?
Hã? 'Sorry?' [Desculpe?]. Eu não sei. Eu não penso muito nessas coisas. E acho que falar disso é de mau gosto.

Quais os benefícios de se relacionar com alguém mais novo [seu namorado, Casper Smart, tem 24 anos]?
Ah! Ra-ra-ra [ estica o braço em direção à repórter, fecha a mão em um gesto de acabou].
A assessoria fala: "Obrigada, gente. Acabou!". Um dos dois seguranças que vieram dos EUA com J.Lo grita: "Todo mundo pra fora, agora!".

Pouco antes, Luciana Gimenez, apresentadora da RedeTV!, tinha deixado a salinha onde Jennifer estava irritada. "Rolou uma confusãozinha lá dentro, estresse, deixa acabar."

A confusão é que J.Lo só falou com a TV Record, porque ela terá um programa de show de talentos dentro de uma atração da emissora.

A cantora vai para o cercadinho VIP ver as escolas de samba. Arrisca dançar. O fotógrafo da coluna a flagra mordendo um pastel. Ela vira de costas. "Disse que ela era bonita e ela respondeu: 'Você que é", diz Deborah Secco sobre a atriz.

À meia-noite, quando as duas horas de presença na festa combinadas em seu contrato vencem, Jennifer deixa a Sapucaí.

LOIRA DEMAIS

Cooper Hefner, 21, substituiu o pai, Hugh Hefner, fundador da revista "Playboy", que viria ao Brasil escolher, entre quatro modelos, a nova garota-propaganda da cervejaria Devasa. E conversou com a coluna:

Folha - Quanto vocês estão recebendo da cervejaria para estar aqui?
Cooper Hefner - Quanto? [Vira-se para sua assessora e repete em voz alta] Quanto estamos recebendo para estar aqui? Bem... [A assessora faz movimentos negativos com a cabeça] Não, não, não podemos falar sobre isso.

Por que não?
[A assessora responde] Não seria apropriado e não é algo sobre o que gostaríamos de falar.

É "top secret"?
[Hefner] Exatamente, é "top secret".

Como foi crescer vendo seu pai cercado de mulheres, algumas mais jovens que você?
Quer dizer, elas eram mais jovens que eu quando eu era mais jovem. Todo mundo olha para mim e diz: "Como pode isso ser normal?". Mas isso é tudo o que vocês sabem, e é como minha vida é. Não há nada diferente comparado com a vida de outras pessoas.

O Brasil tem muitos tipos de belezas, mulheres negras, orientais. Mas no concurso da Devassa só estão concorrendo loiras.
Eu notei isso! Eu não sei o motivo. Quero dizer, pergunte à Devassa. Em Los Angeles há um verdadeiro "melting-pot" [caldeirão de misturas], onde há diferentes pessoas, culturas e belezas. [O Brasil] É muito similar a isso. Mas eu realmente não sei por que a Devassa escolheu quatro mulheres loiras. Eu não posso realmente responder, porque não sei a resposta.

Esse "melting-pot" deveria estar representado no concurso?
Sim, acho.

As mulheres brasileiras são mais sexy que as outras?
Quando uma brasileira me pergunta se as brasileiras são as mulheres mais sexy, eu vou dizer que, aaabsolutamente, elas são as mais sexy do mundo, sim.

E que características das brasileiras atraem mais o leitor americano de "Playboy"?
Diria que a mesma coisa que nos atrai nas mulheres de Los Angeles. É negra, é branca, misturada, é diferente. O Brasil e o Rio têm isso, definitivamente. É simplesmente inacreditável estar aqui no Carnaval. E essa é apenas a primeira noite. O Brasil é maravilhoso, maravilhoso.

A "Playboy" brasileira ainda é a que mais vende no mundo?
Sim, sim. Nós temos 34 edições estrangeiras. Eu tenho que dar uma olhada nisso, mas eu sei que está indo muito bem.

E o que explica?
É o mesmo motivo pelo qual o Carnaval é um sucesso. As pessoas querem estar em um estilo de vida festivo. Querem ser parte de algo especial, se divertir e relaxar. Levar a vida, você sabe, sem ter nada mais com o que se preocupar. Isso é um sucesso e é por isso que a "Playboy" é um sucesso.

com DIÓGENES CAMPANHA, LÍGIA MESQUITA e MÔNICA BERGAMO, do Rio, e THAIS BILENKY, de São Paulo

GOSTOSA


Cachaça boa, 'marvada' pinga - XICO GRAZIANO


O Estado de S.Paulo - 21/02/12


A cachaça é um verdadeiro patrimônio nacional. Quem afirma é o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, no prefácio de belíssimo livro lançado recentemente por Araquém Alcântara e Manoel Beato. Em tempos de carnaval, cabe homenagear a mais brasileira das aguardentes.

Fama de cachaceiro Fernando Henrique não carrega. Mas, como sociólogo, argumenta ser a cachaça "parte antiga" da História brasileira, peça importante da cultura ligada aos caboclos da terra. Por esse motivo, aliás, o Decreto 4.062/2000, de sua lavra, define o termo "cachaça" como vocábulo de origem exclusivamente brasileira. O ato oficial procurou, na época, impedir que os Estados Unidos incluíssem a bebida, por interesses comerciais, na mesma categoria do rum. Nada a ver.

Elaborada a partir da fermentação do caldo da cana-de-açúcar, a cachaça surgiu nos rudimentares engenhos logo após o Descobrimento. Quem a apreciava eram os escravos e colonos, enquanto a elite da época, é óbvio, tomava vinhos e se embriagava com a bagaceira - um destilado de uva, semelhante à cachaça - trazida de Portugal.

O ciclo da mineração nas Minas Gerais, deslocando o eixo econômico e populacional para o Sudeste do Brasil, parece ter trazido estímulos ao consumo da aguardente de cana-de-açúcar. Uma das razões estava no clima, mais frio nas serras mineiras do que na Zona da Mata nordestina. Uma mordida na rapadura, um gole da branquinha ajudavam a aguentar a dureza do trabalho e a espantar a friagem noturna.

A preferência popular - e o preço barato - permitiu à caninha conquistar fatias mais amplas da sociedade colonial, atrapalhando os vendedores portugueses da bagaceira. Estes pressionaram a Corte a proibir por aqui, em 1659, a produção e o consumo da aguardente de cana. Tudo em nome da ordem, é claro. A esdrúxula medida provocou revolta na colônia e a proibição acabou revogada poucos anos depois.

Pesadas taxas de arrecadação foram tentadas para sufocar a produção, mas tampouco se efetivaram na prática. Não houve o que segurasse a expansão dos alambiques. Sinônimo de brasilidade, a cachaça mais tarde frequentaria a mesa dos Inconfidentes, virando símbolo de resistência contra a dominação portuguesa. Na Semana de Arte de 1922, ganhou status de modernidade.

Pinga ou cachaça? Tanto faz, em termos. O dicionário do Aurélio oferece cerca de 140 sinônimos para a aguardente de cana. Além dos já aqui citados, denominam-na por aí de branquinha, quebra-goela, água que passarinho não bebe, uca - esta comum nas palavras cruzadas. Qualquer uma delas surge da fermentação do caldo da cana-de-açúcar por uma levedura (Saccharomyces cerevisiae). Existe, porém, uma diferença básica no modo de produzir, diferenciando o processo artesanal da fabricação industrial.

Nas destilarias artesanais, o mosto, ou garapa da cana, é fermentado naturalmente e colocado em alambiques de cobre, onde o calor promove a evaporação, com a consequente condensação, da bebida destilada. Especialmente por causa dos trabalhos de certificação de origem mineira, nos últimos anos, cachaça passou a se denominar essa aguardente pura, oriunda de pequenos empreendimentos. Estima-se existirem 40 mil produtores de cachaça artesanal no Brasil.

Eles utilizam técnicas variadas para criar a marca característica da sua cachaça. Alguns colocam quirera de milho no fermento, outros utilizam arroz. A variedade da cana plantada, bem como do solo e do clima regional também influenciam no terroir, tal qual ocorre nas vinícolas.

Quem é da roça sabe que nas alambicadas caseiras os bons produtores desprezam a "cabeça" da aguardente, porque o início da destilação gera uma bebida com álcoois superiores, ficando muito forte. A "calda", parte final do processo, também não se presta, pois começa a ficar muito aguada. Aproveita-se, então, apenas o "meio", ou o "coração", que representa 80% do caldo fermentado.

Nenhuma dessas manhas se utiliza nas grandes empresas. A pinga delas originada sai da destilação contínua em colunas de aço inox, semelhantes às usadas na fabricação do etanol combustível. Além do mais, a aguardente é estandardizada com açúcar e outros agentes químicos, visando a adquirir padrão comercial. As marcas famosas existentes - Tatuzinho, 51, Velho Barreiro, entre outras - abastecem 75% do volumoso mercado nacional, estimado em 1,3 bilhão de litros por ano. Como a exportação é pequena, pois o marketing externo do produto ainda é incipiente, o consumo per capita da aguardente de cana no Brasil aproxima-se de 7 litros por habitante/ano. Uma boa dose.

Desde antigamente, e até hoje, a bebida alcoólica representa fonte de energia barata para a população mais pobre do País. Lembro-me, no final da década de 1970, dos estudos pioneiros coordenados pelo professor Dutra de Oliveira, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, que mostravam a ingestão de pinga como fonte importante de energia para os combalidos boias-frias daquela região. A realidade continua.

Infelizmente, a pinga nacional ajudou a causar uma disfarçada doença que afeta 30 milhões de brasileiros: o alcoolismo. Essa desgraça representa, com certeza, a pior, pela extensão do problema, das nossas tragédias familiares. O crack, a maconha e as demais drogas ilícitas são terríveis. Mas o alcoolismo, legalizado, destrói as pessoas, causa violência contra mulheres e crianças no lar, mata no trânsito. Acaba com o cidadão.

Apreciar uma boa cachaça, seja no carnaval, seja no churrasco com os amigos, não envergonha ninguém, nem mal faz à sociedade. Mas beber socialmente, como se diz, não pode servir para esconder o drama do alcoolismo, um mal que precisa ser reconhecido e combatido.

Maldita pinga.