sábado, março 27, 2010

J. R. GUZZO

REVISTA VEJA
J. R. Guzzo

Mundo-cão

"O prefeito Rubens Furlan, do PMDB, foi à Justiça para impedir 
que o CQC exibisse sua reportagem. O que incomodava 
o prefeito era que o público ficasse sabendo da história"

Muito se deplora em nosso país a dificuldade que "o brasileiro" tem para fazer doações em favor do bem comum. A observação se refere, naturalmente, aos cidadãos que dispõem de dinheiro suficiente para doar alguma coisa que valha a pena; se esses dão pouco ou nada, imagine-se então os que mal conseguem cuidar de si próprios. Os críticos dessa triste atitude nacional tornam-se particularmente severos quando nos comparam com os Estados Unidos. Ali sim, lembram eles, o povo tem razão de sentir orgulho de seus milionários; vivem dando fortunas a museus, universidades, bibliotecas e outras obras de grande mérito. Já aqui, ao contrário, o que se tem é três vezes nada. É o retrato perfeito daquilo que consideram a selvageria do brasileiro rico – inculto, egoísta, insensível, primitivo e incapaz de entender o conceito de espírito público. É também, segundo ouvimos com frequência, um dos motivos pelos quais este país não vai para a frente.
O que se ouve muito mais raramente, nessa história toda, é a extraordinária dificuldade de ordem prática que existe no Brasil para fazer alguma doação por intermédio do poder público – e como é baixa a probabilidade de a população receber aquilo que alguém tenta lhe dar quando entre ela e o bem doado existe uma repartição do governo. Há exceções, é claro. Recentemente, empreiteiras de obras públicas e empresas fornecedoras do governo federal não tiveram nenhum trabalho em contribuir com diversos milhões de reais para o filme Lula, o Filho do Brasil, com o presidente da República no papel de herói – obra considerada por seus realizadores como um esforço em prol da cultura brasileira. Mas em geral não é assim. Em geral a combinação entre a trabalheira para doar e a inutilidade final da doação, já que o beneficiário raramente acaba vendo a cor do benefício, desanima o mais insistente dos homens de boa vontade. É a razão pela qual, quando decidem ajudar alguma causa, tratam de fazer isso por sua própria conta, e tomando o cuidado de passar o mais longe possível de qualquer gabinete oficial.
Uma contribuição impecável para o entendimento dessas realidades, e outras mais, acaba de ser oferecida ao público pelo programa Custe o que Custar, da Rede Bandeirantes, que na semana passada levou ao ar uma reportagem mostrando, do começo ao fim, o que aconteceu com um televisor com tela de LCD doado pela emissora à prefeitura de Barueri, nas vizinhanças de São Paulo. Foi o mais perfeito desastre, como é regra em doações feitas ao governo – mas, nesse caso, um desastre comprovado passo a passo, com imagens filmadas, declarações gravadas e todas as provas materiais com as quais um promotor público poderia sonhar ao oferecer uma denúncia. O televisor foi doado para utilização na rede escolar do município, no último mês de dezembro; na ocasião, o secretário municipal da Educação garantiu que seria imediatamente encaminhado a uma das escolas sob a sua responsabilidade. O que realmente aconteceu, ao fim e ao cabo, é que o aparelho passou praticamente esse tempo todo, de dezembro até meados de março, na casa de uma funcionária municipal.
Revelados os fatos, o prefeito Rubens Furlan, do PMDB, poderia ter dito, como até veio a dizer, que não tem meios de controlar os atos de cada um dos 10 000 funcionários do município e que iria tomar as providências devidas. Em vez disso, foi à Justiça para impedir que o CQC exibisse sua reportagem – o que conseguiu por alguns dias. Ou seja: o que realmente incomodava o prefeito não era o fato de terem passado a mão no televisor da escola debaixo do nariz do secretário da Educação, de quem aliás é irmão, e sim que o público ficasse sabendo da história. Além disso, foi ao ar com uma penosa descarga de insultos, grosserias e acusações ao programa, empregando o que antigamente se chamava palavreado "de carroceiro" e que hoje parece fazer parte da linguagem corrente no paço municipal de Barueri. O prefeito quis parecer indignado e valente; acabou sendo apenas cômico.
Sempre se pode dizer, quanto a essa história: "Barueri? Grande coisa". Mas é uma grande coisa, sim. Na verdade, é uma das maiores coisas que há por aí: o mundo-cão em que vivem tantos dos quase 6 000 municípios brasileiros, e do qual Barueri é uma amostra sem retoques. É, também, mais uma oportunidade para ver por que tanta gente, pelos quatro cantos da vida pública, sonha com o "controle social" sobre os meios de comunicação.

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