DIÁRIO DO PODER - 17/11
Nunca vi tanta gente preocupada com o aspecto macilento e emagrecido do caixa do governo. Reduzido a pele e osso. Em junho de 2014 já estava em milhões de telas de computadores, mundo afora, o alerta que uma analista do Santander fez a seus clientes investidores, antevendo o que iria acontecer com a economia nacional. Não era bola de cristal, mas trabalho sério de quem acha que não se deve brincar com dinheiro alheio. Bola de cristal, bem fajuta e perdulária, era a usada por Dilma, pelos técnicos do governo e por Lula, que assim comentou a circular enviada pela funcionária do banco: "Não entende p.... nenhuma de Brasil" e sugeriu: "Pode mandar embora e dar o bônus dela pra mim, que eu sei como é que eu falo".
A analista foi imediatamente demitida. O cartão vermelho do governo demoraria ainda dois anos para lhe ser exibido. Também no Brasil, e há bom tempo, técnicos sensatos, comentaristas esclarecidos, economistas experientes como os membros do grupo Pensar+ do qual participo, alertavam sobre as consequências da irresponsabilidade fiscal. A gastança criminosa promovida pelos sucessivos governos petistas nos conduzia ao inevitável estouro das contas públicas. A história registrará, entre os grandes infortúnios de nossa vida administrativa, a infeliz coincidência de termos vivido o ciclo mais favorável da economia mundial em muitas décadas sob gestão simultânea de uma organização criminosa e do mais destrambelhado dentre todos os nossos governos. Os tempos pródigos ampliaram largamente a voracidade e perpetuaram os danos causados nesse prolongado ataque por dois flancos. Agora são tempos de zelo com as contas públicas. Como é insensível o coração do caixa!
No entanto, esse necessário zelo não vem acompanhado do devido desprendimento. Parece tratar-se de algo que se exige "dos outros" para que as situações particulares permaneçam inalteradas. Todos querem responsabilidade fiscal para que a situação melhore e ninguém mexa no seu queijo (como no bom livro de Spencer Johnson). Imagino essa preocupação povoando, nestes dias, muitas reflexões sobre a situação do país. Deve pensar assim o ministro, viajando em jatinho da FAB. Também o deputado, cujo queijo se chama emenda parlamentar ou verba de gabinete. Não há de querer diferente o beneficiado pelo queijo da isenção fiscal ou do juro privilegiado. São perfumados os queijos especiais havidos por cargo ou função, por vaga nos superpovoados gabinetes políticos e por aposentadorias precoces. Há tantos queijos em busca de proteção! Eles se chamam, ainda, cartão corporativo e bolsa-empresário. E se chamam mordomias, têm carro oficial, motorista, garçom, copeiro e segurança. Imagino a multidão de seus usufrutuários a sonhar com um Brasil onde a austeridade geral permita que nada mude.
O exercício dos poderes de Estado não pode ocorrer na ausência do mais elementar senso de justiça. O Brasil precisa que seus cidadãos submetam às suas próprias consciências uma PEC das boas condutas e dos bons exemplos. Quando o avião sacode, balança inteiro, da primeira classe ao porão de carga.
Percival Puggina (71), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país. Autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A tomada do Brasil. integrante do grupo Pensar+.
quinta-feira, novembro 17, 2016
Farinha pouca, meu pirão primeiro - BOLÍVAR LAMOUNIER
ESTADÃO - 17/11
Embora só agora vá perceber isso, há muito o Brasil está impregnado pelo ‘trumpismo’
Os conflitos que dividem as sociedades atuais podem ser classificados em três tipos. Há os baseados em clivagens relativamente fixas, como a raça, a religião ou diferenças linguísticas. Há os baseados em divisões ideológicas, notadamente na contraposição entre direita e esquerda. E há conflitos econômico-redistributivos: a onipresente luta entre indivíduos, empresas e setores para manter ou aumentar sua participação no output total da sociedade.
Esses três tipos se interligam e superpõem de várias formas. A intensidade de cada um varia de uma sociedade para outra, ou de um período histórico para outro. A intensidade conjunta dos três também varia, ou seja, certas sociedades e certos períodos são mais conflituosos do que outros.
Na História dos Estados Unidos, polarizações fortes foram muito mais a regra do que a exceção. Nenhum país exemplifica melhor a regra de que a democracia não floresce após a solução dos conflitos mais profundos – como apregoam certas utopias e certos indivíduos mal informados –, mas junto com eles, justamente para permitir seu equacionamento pacífico. Não é outro o sentido da tese liberal-democrática da oposição legítima, fundamento doutrinário da alternância no poder, que só se configurou plenamente e se consolidou nos Estados Unidos na primeira metade do século 19.
Em que pese certo modismo historiográfico que opina no sentido contrário, parece-me fora de dúvida que conflitos derivados de atributos fixos – no caso, a raça – foram historicamente e permanecem mais importantes nos Estados Unidos que no Brasil. A modalidade norte-americana de racismo é muito mais virulenta que a brasileira e nunca é demais lembrar que foi só depois da 2.ª Guerra Mundial, com o país já ostentando o status de potência mundial, que medidas efetivas começaram a ser tomadas contra práticas generalizadas de discriminação. Isso ocorreu, como é de conhecimento geral, graças à intervenção da Suprema Corte, determinando a dessegregação do transporte escolar infantil.
Atualmente, o preconceito atinge sobretudo os imigrantes pobres, creio que especialmente os latinos, mas o discurso de Donald Trump contra eles não me parece ser predominantemente racial. É, isso sim, uma manifestação do conflito redistributivo, ao qual retornarei adiante. Nesse caso, a aura racista serve para turbinar uma tentativa, a meu juízo, irrealista e equivocada de “reconquistar” empregos perdidos por trabalhadores brancos americanos. Na África do Sul, nos anos 1930 e 1940, os ideólogos do apartheid (que viria a ser instituído em 1948) tiveram a franqueza de avisar às famílias brancas de renda modesta que se preparassem para assumir os serviços indesejáveis, como lavar privadas, pois essa seria uma consequência inevitável da exclusão dos trabalhadores pertencentes à raça “inferior”. Se de fato deportar até 3 milhões de imigrantes, Trump poderá agravar a situação econômica de certos estratos de renda média e baixa, pois é em parte graças ao trabalho mal pago, ilegal e submisso dessa gente que certos pequenos negócios sobrevivem e muitos pais de família têm com quem deixar suas crianças.
Se tiveram conflito racial de sobra, os Estados Unidos foram, em compensação, relativamente poupados da virulência ideológica que há muito grassa no Brasil e na América Latina. O próprio Karl Marx observou que os Estados Unidos dificilmente viriam a se dividir em termos de capitalismo x comunismo. O grande ponto fora da curva aconteceu na década de 1950, o chamado macarthismo, uma caça às bruxas comunistas orquestrada por Joseph McCarthy, senador por Wisconsin. Mas para o alucinado senador sumir de vista bastou o Senado cassar-lhe o mandato.
O conflito econômico-redistributivo, como antecipei, é onipresente. Decorre da complexidade da economia moderna e tem a perversa característica de ser ao mesmo tempo consequência e causa da estagnação. O que acontece quando o output total da sociedade para de crescer, ou decresce, é que a concorrência entre indivíduos e entre empresas se transforma numa luta pela sobrevivência – ou, se preferem, num jogo de soma zero, aquele em que um ganha o que o outro perde.
Quanto a esse aspecto, há atualmente mais semelhanças que diferenças entre os Estados Unidos e o Brasil. Como muitos brasileiros, Donald Trump parece acreditar que a culpa é da globalização. Em vez de examinar por que o país se debilitou no contexto da economia internacional, ele parece inclinado a bancar o avestruz, enfiando a cabeça na areia do velho protecionismo.
O Brasil, embora só agora vá perceber isso com clareza, está há muito tempo impregnado pelo “trumpismo”. Demorou a entender que as fases iniciais do crescimento econômico são relativamente fáceis, pois se devem basicamente à transferência de mão de obra do setor rural para o urbano e à incorporação de tecnologias de baixa complexidade ao processo produtivo. Mas um dia essa receita deixa de funcionar e o País se vê aprisionado pelo que se tem denominado a “armadilha do baixo crescimento”. Impotente ou sem coragem para efetivar as reformas estruturais sabidamente imprescindíveis ao crescimento sustentável, o sistema político força a sociedade a se virar com um PIB anual per capita de US$ 11 mil: metade do da Grécia, nível que, pelo andar da carruagem, não atingiremos em menos de uma geração.
Nesse cenário, o conflito redistributivo reina soberano. O Estado açambarca quase 40% do PIB, um volume de recursos aparentemente imenso, mas que mal dá para amenizar o interminável cabo de guerra entre os três Poderes. O setor privado torna-se refém da mesma lógica. Todos, indistintamente, são forçados a obedecer ao velho ditado: farinha pouca, meu pirão primeiro.
*Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro da Academia Paulista de Letras. Seu último livro é ‘Liberais e Antiliberais: a luta ideológica de nosso tempo’ (Companhia das Letras, no prelo)
Embora só agora vá perceber isso, há muito o Brasil está impregnado pelo ‘trumpismo’
Os conflitos que dividem as sociedades atuais podem ser classificados em três tipos. Há os baseados em clivagens relativamente fixas, como a raça, a religião ou diferenças linguísticas. Há os baseados em divisões ideológicas, notadamente na contraposição entre direita e esquerda. E há conflitos econômico-redistributivos: a onipresente luta entre indivíduos, empresas e setores para manter ou aumentar sua participação no output total da sociedade.
Esses três tipos se interligam e superpõem de várias formas. A intensidade de cada um varia de uma sociedade para outra, ou de um período histórico para outro. A intensidade conjunta dos três também varia, ou seja, certas sociedades e certos períodos são mais conflituosos do que outros.
Na História dos Estados Unidos, polarizações fortes foram muito mais a regra do que a exceção. Nenhum país exemplifica melhor a regra de que a democracia não floresce após a solução dos conflitos mais profundos – como apregoam certas utopias e certos indivíduos mal informados –, mas junto com eles, justamente para permitir seu equacionamento pacífico. Não é outro o sentido da tese liberal-democrática da oposição legítima, fundamento doutrinário da alternância no poder, que só se configurou plenamente e se consolidou nos Estados Unidos na primeira metade do século 19.
Em que pese certo modismo historiográfico que opina no sentido contrário, parece-me fora de dúvida que conflitos derivados de atributos fixos – no caso, a raça – foram historicamente e permanecem mais importantes nos Estados Unidos que no Brasil. A modalidade norte-americana de racismo é muito mais virulenta que a brasileira e nunca é demais lembrar que foi só depois da 2.ª Guerra Mundial, com o país já ostentando o status de potência mundial, que medidas efetivas começaram a ser tomadas contra práticas generalizadas de discriminação. Isso ocorreu, como é de conhecimento geral, graças à intervenção da Suprema Corte, determinando a dessegregação do transporte escolar infantil.
Atualmente, o preconceito atinge sobretudo os imigrantes pobres, creio que especialmente os latinos, mas o discurso de Donald Trump contra eles não me parece ser predominantemente racial. É, isso sim, uma manifestação do conflito redistributivo, ao qual retornarei adiante. Nesse caso, a aura racista serve para turbinar uma tentativa, a meu juízo, irrealista e equivocada de “reconquistar” empregos perdidos por trabalhadores brancos americanos. Na África do Sul, nos anos 1930 e 1940, os ideólogos do apartheid (que viria a ser instituído em 1948) tiveram a franqueza de avisar às famílias brancas de renda modesta que se preparassem para assumir os serviços indesejáveis, como lavar privadas, pois essa seria uma consequência inevitável da exclusão dos trabalhadores pertencentes à raça “inferior”. Se de fato deportar até 3 milhões de imigrantes, Trump poderá agravar a situação econômica de certos estratos de renda média e baixa, pois é em parte graças ao trabalho mal pago, ilegal e submisso dessa gente que certos pequenos negócios sobrevivem e muitos pais de família têm com quem deixar suas crianças.
Se tiveram conflito racial de sobra, os Estados Unidos foram, em compensação, relativamente poupados da virulência ideológica que há muito grassa no Brasil e na América Latina. O próprio Karl Marx observou que os Estados Unidos dificilmente viriam a se dividir em termos de capitalismo x comunismo. O grande ponto fora da curva aconteceu na década de 1950, o chamado macarthismo, uma caça às bruxas comunistas orquestrada por Joseph McCarthy, senador por Wisconsin. Mas para o alucinado senador sumir de vista bastou o Senado cassar-lhe o mandato.
O conflito econômico-redistributivo, como antecipei, é onipresente. Decorre da complexidade da economia moderna e tem a perversa característica de ser ao mesmo tempo consequência e causa da estagnação. O que acontece quando o output total da sociedade para de crescer, ou decresce, é que a concorrência entre indivíduos e entre empresas se transforma numa luta pela sobrevivência – ou, se preferem, num jogo de soma zero, aquele em que um ganha o que o outro perde.
Quanto a esse aspecto, há atualmente mais semelhanças que diferenças entre os Estados Unidos e o Brasil. Como muitos brasileiros, Donald Trump parece acreditar que a culpa é da globalização. Em vez de examinar por que o país se debilitou no contexto da economia internacional, ele parece inclinado a bancar o avestruz, enfiando a cabeça na areia do velho protecionismo.
O Brasil, embora só agora vá perceber isso com clareza, está há muito tempo impregnado pelo “trumpismo”. Demorou a entender que as fases iniciais do crescimento econômico são relativamente fáceis, pois se devem basicamente à transferência de mão de obra do setor rural para o urbano e à incorporação de tecnologias de baixa complexidade ao processo produtivo. Mas um dia essa receita deixa de funcionar e o País se vê aprisionado pelo que se tem denominado a “armadilha do baixo crescimento”. Impotente ou sem coragem para efetivar as reformas estruturais sabidamente imprescindíveis ao crescimento sustentável, o sistema político força a sociedade a se virar com um PIB anual per capita de US$ 11 mil: metade do da Grécia, nível que, pelo andar da carruagem, não atingiremos em menos de uma geração.
Nesse cenário, o conflito redistributivo reina soberano. O Estado açambarca quase 40% do PIB, um volume de recursos aparentemente imenso, mas que mal dá para amenizar o interminável cabo de guerra entre os três Poderes. O setor privado torna-se refém da mesma lógica. Todos, indistintamente, são forçados a obedecer ao velho ditado: farinha pouca, meu pirão primeiro.
*Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro da Academia Paulista de Letras. Seu último livro é ‘Liberais e Antiliberais: a luta ideológica de nosso tempo’ (Companhia das Letras, no prelo)
O intocável - EDITORIAL ESTADÃO
ESTADÃO - 17/11 👀👀
Há uma semana, foi lançada em São Paulo mais uma campanha pela imunidade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, atualmente réu em três processos relacionados a casos de corrupção. O nome do movimento – “Por um Brasil justo para todos e para Lula” – não deixa margens a dúvida quanto à sua natureza. Não basta ser justo com todos. Com Lula, é preciso um pouco mais. Trata-se de mais uma tentativa de manipular valores e princípios democráticos, como a igualdade de todos perante a lei e a presunção de inocência, para fins muito distantes dos ideais democráticos. Querem o velho e imoral tratamento privilegiado para o ex-presidente.
Justiça para todos, sim, mas que para Lula seja reservada uma especial justiça, que não lhe traga constrangimentos nem muito menos ouse questionar o seu comportamento com a fria métrica legal. Sim, todos são iguais perante a lei e devem se submeter à justiça, mas Lula – parecem dizer os promotores da campanha – deve ser mais igual que os outros. Mais que por justiça, o tom do clamor é por uma desigual condescendência.
Idealizada por intelectuais de esquerda e amigos do ex-presidente, a nova campanha escancara viés não igualitário. Há investigações contra ele? Há suspeita de recebimento de alguns favores de caráter um tanto duvidoso? Nesses casos, não basta que ele tenha os mesmos direitos concedidos a todos os outros cidadãos e possa, dentro da mais estrita legalidade processual, responder judicialmente. Não é suficiente tampouco que, em seu pleno exercício do direito de ampla defesa, ele seja excelentemente assessorado por uma banca de renomados causídicos. Tudo isso é pouco para Lula.
Ele precisa de uma organizada campanha de comunicação a difundir impropérios contra as instituições. Ele precisa de comitês em todos os Estados brasileiros e no exterior – a campanha em prol da imunidade de Lula não quer se restringir ao território nacional – a propagar a ideia de que há no País uma “perversão do processo legal”. Ele precisa de material impresso e eletrônico para denunciar “prisões banais por meras suspeitas, conduções coercitivas ilegais, vazamentos criminosos de dados e exposição da intimidade”.
Pelo que se vê, Lula não gosta de ser tratado como os outros, e exige que partido, simpatizantes e amigos trabalhem para ele. Todo o restante – rever as práticas partidárias, reconectar o partido com o eleitorado, etc. – pode esperar. A máxima prioridade do PT deve ser proteger seu grande chefe dos efeitos das instituições. Dentro dessa lógica pouco democrática, produz-se uma grande mobilização que difunda dúvidas sobre a legitimidade das instituições nacionais e sobre as intenções daqueles que fazem perguntas incômodas a Lula e podem exigir que ele, como um brasileiro igual a todos os outros, responda pelos seus atos perante a lei.
No ato de lançamento da nova campanha, Lula alegou constrangimento por estar ali em causa própria. “Não me sinto confortável participando de um ato da minha defesa. Eu me sentiria confortável participando de um ato de acusação à força-tarefa da Lava Jato, que está mentindo para a sociedade brasileira”, disse o ex-presidente, que não se deu ao trabalho de explicar as supostas mentiras da operação. Ao fiel público que foi prestigiá-lo, Lula preferiu oferecer o já habitual e cada vez menos convincente papel de vítima. A novidade ficou por conta da revelação de suas visões particulares, nas quais percebe “um pacto quase diabólico” entre as instituições para destruir sua reputação e o projeto de país que implementou em seus oito anos de governo.
“Eles mexeram com a pessoa errada”, concluiu Lula, referindo-se ao trabalho da Polícia Federal, do Ministério Público, do Poder Judiciário e – como o ex-presidente gosta sempre de incluir – da mídia. Na lógica lulista, há pessoas intocáveis, que as instituições não devem importunar. Há pessoas certas e há pessoas erradas para se mexer. É comovente a profunda consciência da ideia de igualdade do ex-presidente.
Há uma semana, foi lançada em São Paulo mais uma campanha pela imunidade do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, atualmente réu em três processos relacionados a casos de corrupção. O nome do movimento – “Por um Brasil justo para todos e para Lula” – não deixa margens a dúvida quanto à sua natureza. Não basta ser justo com todos. Com Lula, é preciso um pouco mais. Trata-se de mais uma tentativa de manipular valores e princípios democráticos, como a igualdade de todos perante a lei e a presunção de inocência, para fins muito distantes dos ideais democráticos. Querem o velho e imoral tratamento privilegiado para o ex-presidente.
Justiça para todos, sim, mas que para Lula seja reservada uma especial justiça, que não lhe traga constrangimentos nem muito menos ouse questionar o seu comportamento com a fria métrica legal. Sim, todos são iguais perante a lei e devem se submeter à justiça, mas Lula – parecem dizer os promotores da campanha – deve ser mais igual que os outros. Mais que por justiça, o tom do clamor é por uma desigual condescendência.
Idealizada por intelectuais de esquerda e amigos do ex-presidente, a nova campanha escancara viés não igualitário. Há investigações contra ele? Há suspeita de recebimento de alguns favores de caráter um tanto duvidoso? Nesses casos, não basta que ele tenha os mesmos direitos concedidos a todos os outros cidadãos e possa, dentro da mais estrita legalidade processual, responder judicialmente. Não é suficiente tampouco que, em seu pleno exercício do direito de ampla defesa, ele seja excelentemente assessorado por uma banca de renomados causídicos. Tudo isso é pouco para Lula.
Ele precisa de uma organizada campanha de comunicação a difundir impropérios contra as instituições. Ele precisa de comitês em todos os Estados brasileiros e no exterior – a campanha em prol da imunidade de Lula não quer se restringir ao território nacional – a propagar a ideia de que há no País uma “perversão do processo legal”. Ele precisa de material impresso e eletrônico para denunciar “prisões banais por meras suspeitas, conduções coercitivas ilegais, vazamentos criminosos de dados e exposição da intimidade”.
Pelo que se vê, Lula não gosta de ser tratado como os outros, e exige que partido, simpatizantes e amigos trabalhem para ele. Todo o restante – rever as práticas partidárias, reconectar o partido com o eleitorado, etc. – pode esperar. A máxima prioridade do PT deve ser proteger seu grande chefe dos efeitos das instituições. Dentro dessa lógica pouco democrática, produz-se uma grande mobilização que difunda dúvidas sobre a legitimidade das instituições nacionais e sobre as intenções daqueles que fazem perguntas incômodas a Lula e podem exigir que ele, como um brasileiro igual a todos os outros, responda pelos seus atos perante a lei.
No ato de lançamento da nova campanha, Lula alegou constrangimento por estar ali em causa própria. “Não me sinto confortável participando de um ato da minha defesa. Eu me sentiria confortável participando de um ato de acusação à força-tarefa da Lava Jato, que está mentindo para a sociedade brasileira”, disse o ex-presidente, que não se deu ao trabalho de explicar as supostas mentiras da operação. Ao fiel público que foi prestigiá-lo, Lula preferiu oferecer o já habitual e cada vez menos convincente papel de vítima. A novidade ficou por conta da revelação de suas visões particulares, nas quais percebe “um pacto quase diabólico” entre as instituições para destruir sua reputação e o projeto de país que implementou em seus oito anos de governo.
“Eles mexeram com a pessoa errada”, concluiu Lula, referindo-se ao trabalho da Polícia Federal, do Ministério Público, do Poder Judiciário e – como o ex-presidente gosta sempre de incluir – da mídia. Na lógica lulista, há pessoas intocáveis, que as instituições não devem importunar. Há pessoas certas e há pessoas erradas para se mexer. É comovente a profunda consciência da ideia de igualdade do ex-presidente.
A revolta dos que não têm partido - VINICIUS TORRES FREIRE
FOLHA DE SP - 17/11
Os aloprados que invadiram o plenário da Câmara temperam com pitadas de ideias podres o caldo da crise brasileira, que tem dado umas fervidas nestes dias. Não entorna pelo país inteiro. Mas preocupa.
É fácil desconsiderar o bando que expulsou deputados federais de suas cadeiras a fim de pedir golpe militar. Quem teve o lazer ou o trabalho de assistir à TV na tarde desta quarta-feira (16) via imagens dos aloprados se alternando, por exemplo, com o caso muito mais sério da revolta dos servidores do Rio.
No entanto, aloprados da extrema-direita voltaram a dar a cara nas ruas desde o Junho de 2013 até a campanha da deposição de Dilma Rousseff. Um deputado inominável do PSC do Rio elogia a tortura em plenário e reivindica o legado da ditadura militar. O PSC é o partido do líder do governo na Câmara, André Moura, aliás padrinho de algumas das mumunhas para dar folga a corruptos públicos e privados.
Por falar nisso, essa molecagem institucional tende a se tornar outro motivo de tensão nacional e do desprezo crescente, chegando ao absoluto, pela política partidária.
Não se trata de dizer que os aloprados são "ovos da serpente", algum outro clichê repulsivo desta espécie ou que são por enquanto mais do que bandos.
Mais importante é pensar no outro lado, no mundo que deveria ser o da política democrática, governos, Parlamentos, partidos ou movimentos da sociedade civil ou "coletivos", o que seja. Isto é, aquelas organizações que poderiam dar sentido à grande e já vez e outra explosiva insatisfação.
Este mundo da política se desfaz, está inerte ou aí se encontram tentativas ainda incipientes ou marginais de organização. O que vai ser feito das revoltas mudas ou gritantes, que ainda vão perdurar, assim como as nossas várias crises?
Para ficar no assunto principal destas colunas, a crise do emprego ainda deve piorar; o desemprego no final de 2017 ainda seria maior que o de meados deste ano, indicam estimativas razoáveis. Mesmo para a abstração que é o PIB, a perspectiva para o ano que vem é de estagnação (nenhum crescimento, em termos per capita).
A ruína dos governos estaduais, Rio de Janeiro à frente e acima de todos, vai durar anos, vai abalar a economia, causa fúrias e misérias. Não terá solução que não seja dolorosa, embora a dor por ora seja reservada ao povo miúdo. Os governadores de irresponsabilidade criminosa estão soltos.
O governo federal tem um plano econômico que, concorde-se ou não com tal programa, não faz sentido nem dá esperança para a maior parte da população, que de certa forma expressa tal opinião dando notas baixíssimas ao presidente e preferindo que houvesse novas eleições. Não há conversa que faça sentido para o povo miúdo, quase todo mundo, isto quando não há troça de movimentos de protesto, como o dos secundaristas, mas não apenas.
A desconexão entre organizações e movimentos políticos maiores e o povo é quase terminal; as alternativas não apareceram ou não tem presença bastante. A crise vai durar. Pode permanecer em fervura baixa e contínua. Ou não.
Não é uma boa ideia esperar para ver como é que fica, sem projeto socioeconômico ou político crível que dê sentido à revolta ora silenciosa.
Os aloprados que invadiram o plenário da Câmara temperam com pitadas de ideias podres o caldo da crise brasileira, que tem dado umas fervidas nestes dias. Não entorna pelo país inteiro. Mas preocupa.
É fácil desconsiderar o bando que expulsou deputados federais de suas cadeiras a fim de pedir golpe militar. Quem teve o lazer ou o trabalho de assistir à TV na tarde desta quarta-feira (16) via imagens dos aloprados se alternando, por exemplo, com o caso muito mais sério da revolta dos servidores do Rio.
No entanto, aloprados da extrema-direita voltaram a dar a cara nas ruas desde o Junho de 2013 até a campanha da deposição de Dilma Rousseff. Um deputado inominável do PSC do Rio elogia a tortura em plenário e reivindica o legado da ditadura militar. O PSC é o partido do líder do governo na Câmara, André Moura, aliás padrinho de algumas das mumunhas para dar folga a corruptos públicos e privados.
Por falar nisso, essa molecagem institucional tende a se tornar outro motivo de tensão nacional e do desprezo crescente, chegando ao absoluto, pela política partidária.
Não se trata de dizer que os aloprados são "ovos da serpente", algum outro clichê repulsivo desta espécie ou que são por enquanto mais do que bandos.
Mais importante é pensar no outro lado, no mundo que deveria ser o da política democrática, governos, Parlamentos, partidos ou movimentos da sociedade civil ou "coletivos", o que seja. Isto é, aquelas organizações que poderiam dar sentido à grande e já vez e outra explosiva insatisfação.
Este mundo da política se desfaz, está inerte ou aí se encontram tentativas ainda incipientes ou marginais de organização. O que vai ser feito das revoltas mudas ou gritantes, que ainda vão perdurar, assim como as nossas várias crises?
Para ficar no assunto principal destas colunas, a crise do emprego ainda deve piorar; o desemprego no final de 2017 ainda seria maior que o de meados deste ano, indicam estimativas razoáveis. Mesmo para a abstração que é o PIB, a perspectiva para o ano que vem é de estagnação (nenhum crescimento, em termos per capita).
A ruína dos governos estaduais, Rio de Janeiro à frente e acima de todos, vai durar anos, vai abalar a economia, causa fúrias e misérias. Não terá solução que não seja dolorosa, embora a dor por ora seja reservada ao povo miúdo. Os governadores de irresponsabilidade criminosa estão soltos.
O governo federal tem um plano econômico que, concorde-se ou não com tal programa, não faz sentido nem dá esperança para a maior parte da população, que de certa forma expressa tal opinião dando notas baixíssimas ao presidente e preferindo que houvesse novas eleições. Não há conversa que faça sentido para o povo miúdo, quase todo mundo, isto quando não há troça de movimentos de protesto, como o dos secundaristas, mas não apenas.
A desconexão entre organizações e movimentos políticos maiores e o povo é quase terminal; as alternativas não apareceram ou não tem presença bastante. A crise vai durar. Pode permanecer em fervura baixa e contínua. Ou não.
Não é uma boa ideia esperar para ver como é que fica, sem projeto socioeconômico ou político crível que dê sentido à revolta ora silenciosa.
O cenário Rio - MÍRIAM LEITÃO
O Globo - 17/11
O tempo ficou curto para que os estados evitem, em suas finanças, o cenário do Rio. A crise é uma combinação de erros: aumento descontrolado de gastos com pessoal, registro estatístico falho das despesas, uso de empréstimos e de outras receitas atípicas para pagamentos de salários. A recessão provocada pelo Governo Federal aprofundou o desequilíbrio que aconteceria de qualquer forma.
O governo Dilma incentivou esse quadro de descontrole quando deu uma sequência de avais para que os estados se endividassem. A recessão provocou a redução das despesas. Por isso a crise ficou mais aparente agora. A secretária de Fazenda de Goiás, Ana Carla Abrão, lembra que a nova matriz econômica flexibilizou a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e permitiu que os estados tomassem empréstimos com o aval do Tesouro. Com isso, receitas atípicas foram usadas para pagamento não só de investimentos, mas de salários.
— A nova matriz rasgou a LRF para os estados. O Tesouro passou a dar garantia aos empréstimos, e os governadores foram aos bancos. Em paralelo, havia um crescimento muito forte dos gastos com pessoal ativo e inativo. Rapidamente, esses empréstimos foram usados para o pagamento de pessoal. Quando Joaquim Levy assumiu a Fazenda, em 2015, ele viu o tamanho do problema e acabou com a festa. Os estados perderam essa receita e veio a recessão. A crise se agravou — disse.
Ana Carla Abrão assumiu a Fazenda de Goiás em janeiro de 2015 e propôs um forte ajuste fiscal no estado. O déficit primário estimado no início daquele ano chegava a R$ 7 bilhões, dentro de um orçamento de R$ 20 bilhões. O desequilíbrio já era enorme. Com o ajuste, o rombo foi reduzido para R$ 1,8 bilhão.
— Mas aí chegou 2016, a recessão se aprofundou e o estado continuou sem caixa. É um ajuste sem fim. Os estados têm um problema estrutural de despesas com pessoal e vão ter que reduzir o tamanho da máquina. A questão é que os gestores não têm instrumentos para enfrentar o problema. O que um governador pode fazer quando a Polícia Militar fica 60 dias em greve? Ele vai dar o aumento — explicou.
Ana Carla defende o endurecimento da Lei de Responsabilidade Fiscal, mas com um prazo para adaptação. Primeiro, diz que é preciso corrigir a contabilidade de gastos com pessoal, porque a regra atual têm excluído despesas como auxílio-moradia, auxílio-alimentação, verbas indenizatórias e vários outros tipos de benefícios dos servidores. Segundo, defende mais instrumentos aos gestores públicos para lidar com a crise, permitindo, por exemplo, flexibilização da jornada de trabalho com redução de salários e a liberdade para desligar servidores de empresas estatais quando elas forem privatizadas. Mas pede um prazo de carência de 10 anos para que os estados voltem a se enquadrar na lei.
— Quando as despesas de pessoal forem registradas corretamente (com todos os benefícios) todos os estados estarão num nível de custo que descumpre a LRF, especificamente o teto de 60% da receita corrente líquida com gastos de pessoal. Acho que é preciso modificar isso, para que todos se desenquadrem e aí se encontre uma solução conjunta.
O projeto de securitização da dívida é apenas um paliativo. Ana Carla cita o exemplo de Goiás. O estado tem R$ 40 bilhões de dívida ativa, mas cerca de R$ 34 bilhões são considerados créditos podres, de nível H, quando tem uma inadimplência de longo prazo. Dificilmente serão recuperados, como no caso de empresas que decretaram falência. Dos R$ 6 bilhões restantes, R$ 5 bi estão em questionamento na Justiça. Sobram R$ 1 bilhão, que poderiam render cerca de R$ 300 milhões aos cofres do estado.
Olhando cada caso, é possível ver uma sucessão de erros. O governo Dilma fez parte do descontrole quando estimulou que os estados tomassem empréstimos para cobrir o rombo que se formava. Aí veio a recessão e as receitas caíram, mas os estados já estavam em crise. Há vários problemas que precisam ser enfrentados, como explicou Ana Carla Abrão, mas todos os estados estão em dificuldade. O Rio de Janeiro é apenas o caso mais grave, o cenário que todos querem evitar.
O tempo ficou curto para que os estados evitem, em suas finanças, o cenário do Rio. A crise é uma combinação de erros: aumento descontrolado de gastos com pessoal, registro estatístico falho das despesas, uso de empréstimos e de outras receitas atípicas para pagamentos de salários. A recessão provocada pelo Governo Federal aprofundou o desequilíbrio que aconteceria de qualquer forma.
O governo Dilma incentivou esse quadro de descontrole quando deu uma sequência de avais para que os estados se endividassem. A recessão provocou a redução das despesas. Por isso a crise ficou mais aparente agora. A secretária de Fazenda de Goiás, Ana Carla Abrão, lembra que a nova matriz econômica flexibilizou a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e permitiu que os estados tomassem empréstimos com o aval do Tesouro. Com isso, receitas atípicas foram usadas para pagamento não só de investimentos, mas de salários.
— A nova matriz rasgou a LRF para os estados. O Tesouro passou a dar garantia aos empréstimos, e os governadores foram aos bancos. Em paralelo, havia um crescimento muito forte dos gastos com pessoal ativo e inativo. Rapidamente, esses empréstimos foram usados para o pagamento de pessoal. Quando Joaquim Levy assumiu a Fazenda, em 2015, ele viu o tamanho do problema e acabou com a festa. Os estados perderam essa receita e veio a recessão. A crise se agravou — disse.
Ana Carla Abrão assumiu a Fazenda de Goiás em janeiro de 2015 e propôs um forte ajuste fiscal no estado. O déficit primário estimado no início daquele ano chegava a R$ 7 bilhões, dentro de um orçamento de R$ 20 bilhões. O desequilíbrio já era enorme. Com o ajuste, o rombo foi reduzido para R$ 1,8 bilhão.
— Mas aí chegou 2016, a recessão se aprofundou e o estado continuou sem caixa. É um ajuste sem fim. Os estados têm um problema estrutural de despesas com pessoal e vão ter que reduzir o tamanho da máquina. A questão é que os gestores não têm instrumentos para enfrentar o problema. O que um governador pode fazer quando a Polícia Militar fica 60 dias em greve? Ele vai dar o aumento — explicou.
Ana Carla defende o endurecimento da Lei de Responsabilidade Fiscal, mas com um prazo para adaptação. Primeiro, diz que é preciso corrigir a contabilidade de gastos com pessoal, porque a regra atual têm excluído despesas como auxílio-moradia, auxílio-alimentação, verbas indenizatórias e vários outros tipos de benefícios dos servidores. Segundo, defende mais instrumentos aos gestores públicos para lidar com a crise, permitindo, por exemplo, flexibilização da jornada de trabalho com redução de salários e a liberdade para desligar servidores de empresas estatais quando elas forem privatizadas. Mas pede um prazo de carência de 10 anos para que os estados voltem a se enquadrar na lei.
— Quando as despesas de pessoal forem registradas corretamente (com todos os benefícios) todos os estados estarão num nível de custo que descumpre a LRF, especificamente o teto de 60% da receita corrente líquida com gastos de pessoal. Acho que é preciso modificar isso, para que todos se desenquadrem e aí se encontre uma solução conjunta.
O projeto de securitização da dívida é apenas um paliativo. Ana Carla cita o exemplo de Goiás. O estado tem R$ 40 bilhões de dívida ativa, mas cerca de R$ 34 bilhões são considerados créditos podres, de nível H, quando tem uma inadimplência de longo prazo. Dificilmente serão recuperados, como no caso de empresas que decretaram falência. Dos R$ 6 bilhões restantes, R$ 5 bi estão em questionamento na Justiça. Sobram R$ 1 bilhão, que poderiam render cerca de R$ 300 milhões aos cofres do estado.
Olhando cada caso, é possível ver uma sucessão de erros. O governo Dilma fez parte do descontrole quando estimulou que os estados tomassem empréstimos para cobrir o rombo que se formava. Aí veio a recessão e as receitas caíram, mas os estados já estavam em crise. Há vários problemas que precisam ser enfrentados, como explicou Ana Carla Abrão, mas todos os estados estão em dificuldade. O Rio de Janeiro é apenas o caso mais grave, o cenário que todos querem evitar.
Eis os culpados - CARLOS ALBERTO SARDENBERG
O GLOBO - 17/11
O Rio de Janeiro é o exemplo limite do que pode acontecer, mas quase todos os estados caminham para o mesmo buraco
Imagine uma empresa ou uma família que estão gastando mais do que arrecadam e, pior, encontram-se numa dinâmica em que as despesas sobem todos os anos acima das receitas. Imagine ainda que uma das despesas represente 60% do total gasto. Segue-se que:
1) a empresa ou a família precisam fazer um ajuste;
2) esse ajuste deve incluir aumento de receita e corte de despesas;
3) o corte deve incidir mais fortemente na despesa maior, certo?
Pois é essa a situação dos governos estaduais. No ano passado, gastaram R$ 542,5 bilhões (despesa primária, não financeira). Desse total, a parcela maior (60%) foi para o pessoal. Como o nome diz, trata-se aqui de todos os pagamentos a pessoas, incluindo funcionários ativos e inativos, civis e militares, do Executivo, Legislativo e Judiciário. Aqui tem de salários a benefícios, de aposentadorias a todos os tipos de auxílio, de horas normais e extras a gratificações.
Esse gasto com pessoal aumentou quase 40% de 2012 a 15, conforme estudo da Secretaria do Tesouro Nacional. A receita líquida dos estados cresceu bem menos, na casa dos 26%. A inflação ficou por aí, e a economia cresceu quase nada
Só no ano passado, quando a crise econômica já era evidente, e as receitas de impostos estavam em queda, essa despesa de pessoal subiu mais de 13% em relação a 2014.
Não tem como dar certo. O Rio de Janeiro é o exemplo limite do que pode acontecer, mas quase todos os estados caminham para o mesmo buraco.
Logo, o ajuste não é nem necessário. É fatal. Será feito por bem ou por mal.
Como seria por bem?
Deveria partir de dois consensos. Primeiro, que o ajuste tem que começar o mais rapidamente possível. Segundo, todo mundo terá que pagar a conta, inclusive o pessoal. Reparem: se a maior despesa é com o pessoal, não tem como fazer o ajuste sem reduzir essa despesa.
Servidores na ativa e aposentados dizem que não têm culpa do descalabro e que, por isso, não devem pagar nada.
Deixemos esse argumento de lado por um momento e vamos especular: então, de quem é a culpa?
Todas as contratações, reajustes de salários e concessão de benefícios passam pelo Executivo estadual e pelas assembleias legislativas. Logo, já temos aí dois grupos de culpados. No primeiro, governadores, ex-governadores e suas turmas na administração. No segundo, os deputados estaduais.
Além disso, essas despesas passam também pelos tribunais de contas, que, aliás, têm promovido interpretações marotas para enquadrar determinados gastos. O mais comum é tirar certos pagamentos a inativos e, assim, reduzir artificialmente o tamanho da folha.
Logo, o terceiro grupo de culpados está nos tribunais de contas.
O quarto está no Judiciário. Por todo o país, juízes torturam leis para reinterpretar, por exemplo, o conceito de teto. Assim, o teto nacional do funcionalismo é de R$ 33 mil, mas isso, interpretam, só se refere ao vencimento básico. Auxílios alimentação, educação, “pé na cova”, auxílio-lanche, diferente de alimentação, não contam para o teto, assim perfurado várias vezes.
Vai daí que o ajuste no pessoal deveria começar pelos salários mais altos, com o corte nas chamadas vantagens pessoais. Dizem, por exemplo, que um senador ganha R$ 27 mil mensais.
Falso. Começa que são 15 salários por ano. Tem casa ou apartamento funcional ou mais R$ 3.800 por mês. Tem carro com motorista. Tem gasolina e passagem de avião. Correspondência e telefone na faixa. Vai somando...
Vale igualzinho para deputados.
Mas, mesmo atacando essas despesas claramente ilegítimas, ainda que legais, a conta não fecha.
Será preciso procurar um quinto grupo de culpados, o pessoal. Não cada pessoa em particular — e sabemos quantas ganham mal no serviço público. Estas, aliás, já estão pagando a conta faz algum tempo. Ganham mal porque outros ganham muitíssimo bem. Há aí uma forte desigualdade.
Mas as associações, os sindicatos de funcionários, com amplo apoio de suas bases, estão o tempo todo forçando reajustes e benefícios. E agora, recusam qualquer tipo de ajuste. Claro que é direito do trabalhador buscar melhorias, mas é preciso ter um mínimo de bom senso.
Estava quase escrevendo um mínimo de patriotismo, de noção de serviço público, mas reconheço que é demais pedir isso no momento em que a Lava-Jato escancara o modo como políticos trataram essa coisa pública.
Mas o bom senso vale. Por uma questão de interesse próprio. Invadir assembleia não cria dinheiro. Não seria mais sensato se as lideranças dos funcionários se reunissem com os outros e principais culpados para buscar uma solução, um corte bem distribuído?
Os números estão aí: os estados estão quebrados ou quase. Ou se faz um ajuste por bem ou será feito por mal. Aliás, já está sendo feito: atrasos de salários e interrupção de serviços essenciais à população.
Aliás, podemos incluir aqui o sexto grupo de culpados, os eleitores que escolheram mal tantas e repetidas vezes. Mas nem precisava: o público é o que sempre paga a maior conta.
Carlos Alberto Sardenberg é jornalista
Imagine uma empresa ou uma família que estão gastando mais do que arrecadam e, pior, encontram-se numa dinâmica em que as despesas sobem todos os anos acima das receitas. Imagine ainda que uma das despesas represente 60% do total gasto. Segue-se que:
1) a empresa ou a família precisam fazer um ajuste;
2) esse ajuste deve incluir aumento de receita e corte de despesas;
3) o corte deve incidir mais fortemente na despesa maior, certo?
Pois é essa a situação dos governos estaduais. No ano passado, gastaram R$ 542,5 bilhões (despesa primária, não financeira). Desse total, a parcela maior (60%) foi para o pessoal. Como o nome diz, trata-se aqui de todos os pagamentos a pessoas, incluindo funcionários ativos e inativos, civis e militares, do Executivo, Legislativo e Judiciário. Aqui tem de salários a benefícios, de aposentadorias a todos os tipos de auxílio, de horas normais e extras a gratificações.
Esse gasto com pessoal aumentou quase 40% de 2012 a 15, conforme estudo da Secretaria do Tesouro Nacional. A receita líquida dos estados cresceu bem menos, na casa dos 26%. A inflação ficou por aí, e a economia cresceu quase nada
Só no ano passado, quando a crise econômica já era evidente, e as receitas de impostos estavam em queda, essa despesa de pessoal subiu mais de 13% em relação a 2014.
Não tem como dar certo. O Rio de Janeiro é o exemplo limite do que pode acontecer, mas quase todos os estados caminham para o mesmo buraco.
Logo, o ajuste não é nem necessário. É fatal. Será feito por bem ou por mal.
Como seria por bem?
Deveria partir de dois consensos. Primeiro, que o ajuste tem que começar o mais rapidamente possível. Segundo, todo mundo terá que pagar a conta, inclusive o pessoal. Reparem: se a maior despesa é com o pessoal, não tem como fazer o ajuste sem reduzir essa despesa.
Servidores na ativa e aposentados dizem que não têm culpa do descalabro e que, por isso, não devem pagar nada.
Deixemos esse argumento de lado por um momento e vamos especular: então, de quem é a culpa?
Todas as contratações, reajustes de salários e concessão de benefícios passam pelo Executivo estadual e pelas assembleias legislativas. Logo, já temos aí dois grupos de culpados. No primeiro, governadores, ex-governadores e suas turmas na administração. No segundo, os deputados estaduais.
Além disso, essas despesas passam também pelos tribunais de contas, que, aliás, têm promovido interpretações marotas para enquadrar determinados gastos. O mais comum é tirar certos pagamentos a inativos e, assim, reduzir artificialmente o tamanho da folha.
Logo, o terceiro grupo de culpados está nos tribunais de contas.
O quarto está no Judiciário. Por todo o país, juízes torturam leis para reinterpretar, por exemplo, o conceito de teto. Assim, o teto nacional do funcionalismo é de R$ 33 mil, mas isso, interpretam, só se refere ao vencimento básico. Auxílios alimentação, educação, “pé na cova”, auxílio-lanche, diferente de alimentação, não contam para o teto, assim perfurado várias vezes.
Vai daí que o ajuste no pessoal deveria começar pelos salários mais altos, com o corte nas chamadas vantagens pessoais. Dizem, por exemplo, que um senador ganha R$ 27 mil mensais.
Falso. Começa que são 15 salários por ano. Tem casa ou apartamento funcional ou mais R$ 3.800 por mês. Tem carro com motorista. Tem gasolina e passagem de avião. Correspondência e telefone na faixa. Vai somando...
Vale igualzinho para deputados.
Mas, mesmo atacando essas despesas claramente ilegítimas, ainda que legais, a conta não fecha.
Será preciso procurar um quinto grupo de culpados, o pessoal. Não cada pessoa em particular — e sabemos quantas ganham mal no serviço público. Estas, aliás, já estão pagando a conta faz algum tempo. Ganham mal porque outros ganham muitíssimo bem. Há aí uma forte desigualdade.
Mas as associações, os sindicatos de funcionários, com amplo apoio de suas bases, estão o tempo todo forçando reajustes e benefícios. E agora, recusam qualquer tipo de ajuste. Claro que é direito do trabalhador buscar melhorias, mas é preciso ter um mínimo de bom senso.
Estava quase escrevendo um mínimo de patriotismo, de noção de serviço público, mas reconheço que é demais pedir isso no momento em que a Lava-Jato escancara o modo como políticos trataram essa coisa pública.
Mas o bom senso vale. Por uma questão de interesse próprio. Invadir assembleia não cria dinheiro. Não seria mais sensato se as lideranças dos funcionários se reunissem com os outros e principais culpados para buscar uma solução, um corte bem distribuído?
Os números estão aí: os estados estão quebrados ou quase. Ou se faz um ajuste por bem ou será feito por mal. Aliás, já está sendo feito: atrasos de salários e interrupção de serviços essenciais à população.
Aliás, podemos incluir aqui o sexto grupo de culpados, os eleitores que escolheram mal tantas e repetidas vezes. Mas nem precisava: o público é o que sempre paga a maior conta.
Carlos Alberto Sardenberg é jornalista
quarta-feira, novembro 16, 2016
Passos de bebê - FÁBIO ALVES
ESTADÃO - 16/11@ 👀👀👀
A desarrumação fiscal da economia é tamanha que a recuperação virá gradualmente
O ponto de partida da crise fiscal é tão grave que alguns executivos financeiros mais pessimistas dizem que o importante agora não é o risco de o Brasil caminhar para a situação de falência da Grécia, mas sim a percepção de que somos todos já o Rio de Janeiro, um Estado sem condições de pagar seus pensionistas e servidores nem de atender às necessidades básicas de saúde e segurança.
Para esses pessimistas, o ajuste fiscal em curso pelo governo Michel Temer é demasiado gradual. E esse gradualismo, dada a trajetória acelerada da dívida pública, não evitará um eventual pânico dos investidores quanto à solvência do Brasil. Com a dívida bruta caminhando para 80% do Produto Interno Bruto (PIB) ao fim de 2017, em comparação com 51,3% em 2011, sem maior crescimento econômico e controle dos gastos, essa proporção ultrapassará os 100% do PIB antes do que se espera.
Na visão dos pessimistas, o governo estaria fazendo pouco para tirar o País da recessão e recolocar a economia nos trilhos de uma maior expansão. Assim, segundo esses executivos, não seria o melhor caminho gastar a munição política de um governo de transição só com a aprovação da PEC 241, que limita o crescimento do gasto público à inflação, e da reforma da Previdência.
Ou seja, Temer e o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, estão dando passos de bebê quando a urgência da crise requer um esforço de um velocista de 100 metros. O foco deveria ser recuperar o investimento imediatamente, na opinião dos críticos.
Diante dessa avaliação, ficam as perguntas: seria a estratégia de Temer e Meirelles acanhada demais para o tamanho do rombo das contas públicas? Seria a escolha mais acertada gastar as fichas para aprovar o ajuste fiscal, em particular a reforma da Previdência, num mandato previsto para acabar em 2018? O que mais seria politicamente viável fazer, além do ajuste fiscal, em tão curto espaço de tempo? O Brasil já se tornou o Rio ou caminha irremediavelmente para a situação da Grécia?
A melhor chance de o Brasil reverter a desconfiança de investidores, empresários e consumidores é aprovando uma reforma da Previdência razoável, que aumente a idade mínima de aposentadoria, desvincule o reajuste dos benefícios do salário mínimo e unifique os sistemas público e privado, combinada, obviamente, com a PEC 241.
Os pessimistas podem até considerar a aprovação dessas medidas como “passos de bebê”, mas sem elas não haverá horizonte macroeconômico com um mínimo de organização, sem o qual os investimentos não virão. Se tudo o que Temer e Meirelles conseguirem fazer for a aprovação da PEC 241 e da reforma da Previdência, o Brasil estará no lucro, diante da bagunça e irresponsabilidade fiscal dos governos petistas.
A desarrumação fiscal da economia brasileira é tamanha que a recuperação virá gradualmente. Ou será realista esperar que grupos de interesses da sociedade vão abrir mão de privilégios tão facilmente? Portanto, gastar as fichas políticas na aprovação daquelas medidas é a melhor escolha que o governo Temer faz.
Isso não significa que o risco de o Brasil virar a Grécia esteja afastado, uma vez que o País não tem histórico de responsabilidade fiscal longo o suficiente para tranquilizar investidores e analistas. Mas a ameaça de se tornar o Rio é alarmista demais, até porque, ao contrário do governo estadual, a União pode imprimir moeda, evitando o calote por meio de financiamento inflacionário.
Quanto à crítica ao gradualismo da política econômica diante da trajetória da dívida pública, agências internacionais de classificação de risco, investidores e economistas já antecipam que o endividamento seguirá crescendo mesmo com a aprovação da PEC 241 e da reforma da Previdência, embora em ritmo menos preocupante.
Se esses agentes considerassem as escolhas do governo Temer como demasiadamente graduais para a gravidade da situação, já teriam punido o Brasil com novos rebaixamentos do rating soberano e fuga de capital. Por enquanto, eis o veredicto sobre essas medidas: é o que temos para hoje.
A desarrumação fiscal da economia é tamanha que a recuperação virá gradualmente
O ponto de partida da crise fiscal é tão grave que alguns executivos financeiros mais pessimistas dizem que o importante agora não é o risco de o Brasil caminhar para a situação de falência da Grécia, mas sim a percepção de que somos todos já o Rio de Janeiro, um Estado sem condições de pagar seus pensionistas e servidores nem de atender às necessidades básicas de saúde e segurança.
Para esses pessimistas, o ajuste fiscal em curso pelo governo Michel Temer é demasiado gradual. E esse gradualismo, dada a trajetória acelerada da dívida pública, não evitará um eventual pânico dos investidores quanto à solvência do Brasil. Com a dívida bruta caminhando para 80% do Produto Interno Bruto (PIB) ao fim de 2017, em comparação com 51,3% em 2011, sem maior crescimento econômico e controle dos gastos, essa proporção ultrapassará os 100% do PIB antes do que se espera.
Na visão dos pessimistas, o governo estaria fazendo pouco para tirar o País da recessão e recolocar a economia nos trilhos de uma maior expansão. Assim, segundo esses executivos, não seria o melhor caminho gastar a munição política de um governo de transição só com a aprovação da PEC 241, que limita o crescimento do gasto público à inflação, e da reforma da Previdência.
Ou seja, Temer e o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, estão dando passos de bebê quando a urgência da crise requer um esforço de um velocista de 100 metros. O foco deveria ser recuperar o investimento imediatamente, na opinião dos críticos.
Diante dessa avaliação, ficam as perguntas: seria a estratégia de Temer e Meirelles acanhada demais para o tamanho do rombo das contas públicas? Seria a escolha mais acertada gastar as fichas para aprovar o ajuste fiscal, em particular a reforma da Previdência, num mandato previsto para acabar em 2018? O que mais seria politicamente viável fazer, além do ajuste fiscal, em tão curto espaço de tempo? O Brasil já se tornou o Rio ou caminha irremediavelmente para a situação da Grécia?
A melhor chance de o Brasil reverter a desconfiança de investidores, empresários e consumidores é aprovando uma reforma da Previdência razoável, que aumente a idade mínima de aposentadoria, desvincule o reajuste dos benefícios do salário mínimo e unifique os sistemas público e privado, combinada, obviamente, com a PEC 241.
Os pessimistas podem até considerar a aprovação dessas medidas como “passos de bebê”, mas sem elas não haverá horizonte macroeconômico com um mínimo de organização, sem o qual os investimentos não virão. Se tudo o que Temer e Meirelles conseguirem fazer for a aprovação da PEC 241 e da reforma da Previdência, o Brasil estará no lucro, diante da bagunça e irresponsabilidade fiscal dos governos petistas.
A desarrumação fiscal da economia brasileira é tamanha que a recuperação virá gradualmente. Ou será realista esperar que grupos de interesses da sociedade vão abrir mão de privilégios tão facilmente? Portanto, gastar as fichas políticas na aprovação daquelas medidas é a melhor escolha que o governo Temer faz.
Isso não significa que o risco de o Brasil virar a Grécia esteja afastado, uma vez que o País não tem histórico de responsabilidade fiscal longo o suficiente para tranquilizar investidores e analistas. Mas a ameaça de se tornar o Rio é alarmista demais, até porque, ao contrário do governo estadual, a União pode imprimir moeda, evitando o calote por meio de financiamento inflacionário.
Quanto à crítica ao gradualismo da política econômica diante da trajetória da dívida pública, agências internacionais de classificação de risco, investidores e economistas já antecipam que o endividamento seguirá crescendo mesmo com a aprovação da PEC 241 e da reforma da Previdência, embora em ritmo menos preocupante.
Se esses agentes considerassem as escolhas do governo Temer como demasiadamente graduais para a gravidade da situação, já teriam punido o Brasil com novos rebaixamentos do rating soberano e fuga de capital. Por enquanto, eis o veredicto sobre essas medidas: é o que temos para hoje.
Laços mais fracos - MÍRIAM LEITÃO
O Globo - 16/11
Lava-Jato está provocando salto institucional. A Operação Lava-Jato está provocando um salto institucional no país, na avaliação do professor do Insper Sérgio Lazzarini, autor do livro “Capitalismo de Laços”. As prisões e condenações de empresários e políticos reduzem a força de um dos mais nocivo defeitos do Brasil: o pacto entre partidos, governos, empresas estatais e privadas em torno de seus interesses. A oportunidade é única, mas há riscos à frente.
Lazzarini estuda essa aliança de proteção mútua entre certos grupos empresariais e elites políticas e por isso define o modelo brasileiro como um “capitalismo de laços”. Pois exatamente esses laços é que estão sendo atacados pela Operação Lava-Jato, na opinião dele.
Esse pacto sempre impediu o melhor funcionamento da economia e acontece assim: políticos indicam pessoas de confiança para cargos de chefia em empresas, bancos e fundos de pensão estatais. Sob essa orientação política, esses gestores usam os entes públicos para beneficiar empresas amigas. Já as companhias privadas retribuem as benesses fazendo doações de campanha para os partidos.
— Esse tipo de relação sempre aconteceu no Brasil. Mas, depois da crise financeira de 2008, a intervenção do Estado na economia entrou na moda e ganhou muita força nos governos do PT. Lula multiplicou isso por cinco. Dilma escancarou e multiplicou por cem — disse Lazzarini.
A Lava-Jato tornou as doações mais arriscadas para as empresas. Ao mesmo tempo, os políticos estão tendo que aceitar leis de governança mais duras, que favorecem as indicações técnicas. As empresas, bancos e fundos de pensão públicos estão lidando com regras de compliance — de cumprimento da lei e de transparência — mais rigorosas, e as firmas de auditorias estão exigindo mais qualidade e informação para a aprovação de balanços.
— O que está acontecendo era impensável na época em que o livro foi lançado, em 2010. Por causa da Lava-Jato, que teve início em 2014, houve abalos nesses três laços da cadeia. Estamos passando por uma transição importante, que me lembra o que aconteceu nos Estados Unidos no início do século XX — disse.
Lazzarini faz críticas não apenas ao governo, mas também ao empresariado. Quando a torneira de favorecimentos se abriu, as grandes entidades privadas exaltaram o modelo econômico que estava sendo aprofundado pelo PT. O BNDES foi capitalizado em R$ 500 bilhões, cerca de 8% do PIB da época, para repassar a empresas e setores e apoiar políticas discutíveis, como a consolidação do setor de carnes que levou o JBS a se tornar o maior frigorífico do mundo. Eike Batista alavancou seus negócios com o crédito barato do banco. Entidades industriais chegaram a emitir uma nota conjunta contra os que criticavam o BNDES:
— O Estado é importante para a economia, mas é preciso clareza e transparência dos custos das políticas públicas. O BNDES foi financiado com dívida do Tesouro e até hoje o país não sabe quanto isso custou e quais foram os ganhos desses financiamentos.
A principal ameaça à Operação Lava-Jato, na avaliação de Lazzarini, é a fragilidade econômica do país. A recuperação não será rápida, diante da magnitude da crise, e isso pode levar novamente as empresas e os políticos a tentarem restabelecer esses laços em nome da retomada do crescimento, e culpar a Lava-Jato pela paralisia econômica. O risco aumentará na medida em que se aproximarem as eleições de 2018.
— O meu medo é a economia demorar a retomar o crescimento e aí volta todo o processo com a eleição de um político populista que restabeleça o modelo anterior. Sempre haverá empresários dispostos a receber favorecimento do governo — afirmou.
A Lava-Jato e todas as outras operações que estão investigando a obscura relação dos últimos anos, entre políticos, governos, estatais e empresas privadas, podem ajudar o país a enfrentar um dos seus mais antigos defeitos do capitalismo brasileiro. Esse pacto de defesa de interesses recíprocos é decorrente do patrimonialismo e explica a desigualdade estrutural da sociedade. A Lava-Jato não foi feita com esse objetivo, mas tem ajudado a enfraquecer os laços que sempre atrasaram o Brasil.
Lava-Jato está provocando salto institucional. A Operação Lava-Jato está provocando um salto institucional no país, na avaliação do professor do Insper Sérgio Lazzarini, autor do livro “Capitalismo de Laços”. As prisões e condenações de empresários e políticos reduzem a força de um dos mais nocivo defeitos do Brasil: o pacto entre partidos, governos, empresas estatais e privadas em torno de seus interesses. A oportunidade é única, mas há riscos à frente.
Lazzarini estuda essa aliança de proteção mútua entre certos grupos empresariais e elites políticas e por isso define o modelo brasileiro como um “capitalismo de laços”. Pois exatamente esses laços é que estão sendo atacados pela Operação Lava-Jato, na opinião dele.
Esse pacto sempre impediu o melhor funcionamento da economia e acontece assim: políticos indicam pessoas de confiança para cargos de chefia em empresas, bancos e fundos de pensão estatais. Sob essa orientação política, esses gestores usam os entes públicos para beneficiar empresas amigas. Já as companhias privadas retribuem as benesses fazendo doações de campanha para os partidos.
— Esse tipo de relação sempre aconteceu no Brasil. Mas, depois da crise financeira de 2008, a intervenção do Estado na economia entrou na moda e ganhou muita força nos governos do PT. Lula multiplicou isso por cinco. Dilma escancarou e multiplicou por cem — disse Lazzarini.
A Lava-Jato tornou as doações mais arriscadas para as empresas. Ao mesmo tempo, os políticos estão tendo que aceitar leis de governança mais duras, que favorecem as indicações técnicas. As empresas, bancos e fundos de pensão públicos estão lidando com regras de compliance — de cumprimento da lei e de transparência — mais rigorosas, e as firmas de auditorias estão exigindo mais qualidade e informação para a aprovação de balanços.
— O que está acontecendo era impensável na época em que o livro foi lançado, em 2010. Por causa da Lava-Jato, que teve início em 2014, houve abalos nesses três laços da cadeia. Estamos passando por uma transição importante, que me lembra o que aconteceu nos Estados Unidos no início do século XX — disse.
Lazzarini faz críticas não apenas ao governo, mas também ao empresariado. Quando a torneira de favorecimentos se abriu, as grandes entidades privadas exaltaram o modelo econômico que estava sendo aprofundado pelo PT. O BNDES foi capitalizado em R$ 500 bilhões, cerca de 8% do PIB da época, para repassar a empresas e setores e apoiar políticas discutíveis, como a consolidação do setor de carnes que levou o JBS a se tornar o maior frigorífico do mundo. Eike Batista alavancou seus negócios com o crédito barato do banco. Entidades industriais chegaram a emitir uma nota conjunta contra os que criticavam o BNDES:
— O Estado é importante para a economia, mas é preciso clareza e transparência dos custos das políticas públicas. O BNDES foi financiado com dívida do Tesouro e até hoje o país não sabe quanto isso custou e quais foram os ganhos desses financiamentos.
A principal ameaça à Operação Lava-Jato, na avaliação de Lazzarini, é a fragilidade econômica do país. A recuperação não será rápida, diante da magnitude da crise, e isso pode levar novamente as empresas e os políticos a tentarem restabelecer esses laços em nome da retomada do crescimento, e culpar a Lava-Jato pela paralisia econômica. O risco aumentará na medida em que se aproximarem as eleições de 2018.
— O meu medo é a economia demorar a retomar o crescimento e aí volta todo o processo com a eleição de um político populista que restabeleça o modelo anterior. Sempre haverá empresários dispostos a receber favorecimento do governo — afirmou.
A Lava-Jato e todas as outras operações que estão investigando a obscura relação dos últimos anos, entre políticos, governos, estatais e empresas privadas, podem ajudar o país a enfrentar um dos seus mais antigos defeitos do capitalismo brasileiro. Esse pacto de defesa de interesses recíprocos é decorrente do patrimonialismo e explica a desigualdade estrutural da sociedade. A Lava-Jato não foi feita com esse objetivo, mas tem ajudado a enfraquecer os laços que sempre atrasaram o Brasil.
Política comercial de Trump levará a aumento da taxa de juros nos EUA - ALEXANDRE SCHWARTSMAN
FOLHA DE SP - 16/11
O cenário econômico dos próximos anos será fortemente afetado pelas iniciativas a serem tomadas pelo novo governo americano, em particular nas áreas fiscal e de comércio exterior. Já quanto à política monetária, muito embora deva permanecer relativamente insulada, já que membros do Federal Reserve possuem mandatos não coincidentes com o do presidente, é de se esperar que reaja às políticas adotadas nas demais frentes.
No lado do comércio exterior, à parte bravatas quanto à imposição de barreiras tarifárias punitivas sobre as importações chinesas e mexicanas, é sincero o desejo de atrair novamente para os EUA setores manufatureiros que se moveram nas últimas décadas para fora do país. Parece um objetivo meritório e quem segue o debate nacional a respeito já há de ter visto defesas bastante apaixonadas de medidas com o mesmo objetivo por aqui. Isto não impede a proposta de estar errada em várias dimensões.
Ainda que medidas de proteção comercial sejam tipicamente justificadas com base nos empregos que poderiam gerar, não se consideram efeitos que possam ter no funcionamento geral da economia, principalmente nas que operam próximas ao pleno-emprego, como parece ser o caso americano.
De fato, o desemprego lá se encontra ao redor de 5% da força de trabalho, cerca de metade do pico atingido após a crise financeira internacional, apenas meio ponto percentual acima do patamar que vigorava logo antes dela, e coladonas estimativas da taxa natural de desemprego, (4,8%).
É verdade que parcela da queda do desemprego reflete regimes de trabalho mais precários, mas, mesmo se adotarmos uma medida de desemprego mais ampla (U6, no jargão ), que contemple este problema, a conclusão pouco se altera. Em outubro a U6 registrava 9,5%, metade do anotado em seu pior momento e apenas 1,5 ponto percentual acima do observado logo antes da crise.
Por onde se olhe, a economia americana opera bastante próxima ao pleno-emprego. Isto significa que o espaço para a geração não-inflacionária de emprego é pequeno: um aumento do emprego nos setores privilegiados pela política comercial teria que ser compensado pela redução de emprego nos demais, de forma a evitar pressões sobre a inflação. Concretamente, o Fed elevaria taxas de juros em ritmo mais intenso do que era esperado há pouco para compensar desemprego sistematicamente inferior à taxa natural.
Além disso, numa economia como a americana, com baixas barreiras comerciais, a migração da produção para o exterior permite que o setor privado se especialize naquilo que faz de mais produtivo, da mesma forma que uma advogada contrata um motorista para dedicar mais tempo à sua tarefa mais produtiva, ainda que dirija melhor que seu funcionário.
A reversão deste processo reduziria a produtividade geral, assim como a demissão do motorista faria nossa advogada perder horas valiosas no trânsito. O menor crescimento da produtividade exacerbaria pressões inflacionárias e contribuiria para um aperto monetário mais intenso.
Tais raciocínios são ao menos parte da explicação para a (ainda modesta) elevação das taxas de juros nos EUA nos dias que seguiram à eleição. Na semana que vem examinaremos outros motivos, assim como sua provável repercussão sobre o Brasil.
O cenário econômico dos próximos anos será fortemente afetado pelas iniciativas a serem tomadas pelo novo governo americano, em particular nas áreas fiscal e de comércio exterior. Já quanto à política monetária, muito embora deva permanecer relativamente insulada, já que membros do Federal Reserve possuem mandatos não coincidentes com o do presidente, é de se esperar que reaja às políticas adotadas nas demais frentes.
No lado do comércio exterior, à parte bravatas quanto à imposição de barreiras tarifárias punitivas sobre as importações chinesas e mexicanas, é sincero o desejo de atrair novamente para os EUA setores manufatureiros que se moveram nas últimas décadas para fora do país. Parece um objetivo meritório e quem segue o debate nacional a respeito já há de ter visto defesas bastante apaixonadas de medidas com o mesmo objetivo por aqui. Isto não impede a proposta de estar errada em várias dimensões.
Ainda que medidas de proteção comercial sejam tipicamente justificadas com base nos empregos que poderiam gerar, não se consideram efeitos que possam ter no funcionamento geral da economia, principalmente nas que operam próximas ao pleno-emprego, como parece ser o caso americano.
De fato, o desemprego lá se encontra ao redor de 5% da força de trabalho, cerca de metade do pico atingido após a crise financeira internacional, apenas meio ponto percentual acima do patamar que vigorava logo antes dela, e coladonas estimativas da taxa natural de desemprego, (4,8%).
É verdade que parcela da queda do desemprego reflete regimes de trabalho mais precários, mas, mesmo se adotarmos uma medida de desemprego mais ampla (U6, no jargão ), que contemple este problema, a conclusão pouco se altera. Em outubro a U6 registrava 9,5%, metade do anotado em seu pior momento e apenas 1,5 ponto percentual acima do observado logo antes da crise.
Por onde se olhe, a economia americana opera bastante próxima ao pleno-emprego. Isto significa que o espaço para a geração não-inflacionária de emprego é pequeno: um aumento do emprego nos setores privilegiados pela política comercial teria que ser compensado pela redução de emprego nos demais, de forma a evitar pressões sobre a inflação. Concretamente, o Fed elevaria taxas de juros em ritmo mais intenso do que era esperado há pouco para compensar desemprego sistematicamente inferior à taxa natural.
Além disso, numa economia como a americana, com baixas barreiras comerciais, a migração da produção para o exterior permite que o setor privado se especialize naquilo que faz de mais produtivo, da mesma forma que uma advogada contrata um motorista para dedicar mais tempo à sua tarefa mais produtiva, ainda que dirija melhor que seu funcionário.
A reversão deste processo reduziria a produtividade geral, assim como a demissão do motorista faria nossa advogada perder horas valiosas no trânsito. O menor crescimento da produtividade exacerbaria pressões inflacionárias e contribuiria para um aperto monetário mais intenso.
Tais raciocínios são ao menos parte da explicação para a (ainda modesta) elevação das taxas de juros nos EUA nos dias que seguiram à eleição. Na semana que vem examinaremos outros motivos, assim como sua provável repercussão sobre o Brasil.
Aos Trumps e Brazumps - MONICA DE BOLLE
ESTADÃO - 16/11
Com Trump, algo parece certo: não há qualquer cenário que beneficie o Brasil
O mundo, os mercados, o Brasil ainda estão digerindo o resultado das eleições americanas e a vitória de Donald Trump. Sem visão clara sobre os ocupantes dos principais cargos – sabemos apenas que Reince Priebus, chairman do comitê republicano, e Steve Bannon, ex-Goldman Sachs e chairman da ultra-conservadora empresa de comunicação Breitbart News, serão seus assessores mais próximos –, há muita especulação. Contudo, a despeito de como se formará a administração Trump e de quais serão os seus rumos econômicos, algo parece certo: não há qualquer cenário que beneficie o Brasil.
Tomemos o enredo que os mercados internacionais abraçaram nos últimos dias. Segundo a trama, Trump haverá de modular consideravelmente a retórica de campanha, sobretudo na área comercial. De acordo com essa visão, o protecionismo será moderado – Trump não sairá por aí rasgando acordos comerciais nem solapando tarifas proibitivas em alguns de seus principais parceiros comerciais. Moderada, também, será a política de imigração – saem de cena as deportações em massa, cedendo lugar à extradição de ilegais que tenham cometido crimes em solo americano.
As primeiras declarações de Trump e de Paul Ryan, porta-voz da Câmara, corroboram a tese de que a imigração será tratada de forma mais suave do que os brados de campanha. A ver. Sem tanto protecionismo e com um política de imigração mais moderada, sobram os efeitos da gigantesca expansão fiscal pretendida. Os esboços de Trump na área fiscal sugerem redução expressiva dos impostos corporativos e aumento igualmente expressivo dos gastos, sobretudo na área de infraestrutura. Com Congresso inteiramente republicano, é provável que o presidente eleito consiga levar tais planos a cabo, ainda que em magnitude inferior aos 6% do PIB pretendidos.
O cenário de maciça expansão fiscal condiz com inflação em alta mais acelerada do que se supunha há poucos meses. Portanto, o caminho para a alta de juros promovida pelo Fed seria bem diferente daquele que se delineara. Menos gradualismo no aperto, mais altas pela frente. É esse o principal motivo para que se tenha visto no Brasil, e em outros mercados emergentes, aguda reprecificação de risco, com desvalorizações abruptas e esfriamento da euforia reinante. Caso esse quadro se concretize, poucas dúvidas restam de que o Banco Central brasileiro não terá espaço para promover a queda de juros que os mercados e, sobretudo, as empresas e as famílias brasileiras esperavam.
Poder-se-ia dizer, inclusive, que o BC perdeu o timing – talvez tivesse sido melhor promover a redução mais acentuada dos juros na esteira da euforia que inaugurou o governo Temer e que agora se apaga nem tão lentamente. As previsões de crescimento já foram revistas para baixo pelo próprio governo – não mais do que 1% em 2017.
O segundo cenário, hoje tão provável quanto o dos mercados, é que Trump seja mais protecionista, faça sua expansão fiscal e, além de tudo isso, continue a ser o provocateur da campanha. Mais protecionista não significa rasgar acordos, mas significa retórica aguerrida que acirre os riscos geopolíticos e, sobretudo, a incerteza.
Daqui para frente, afinal, são suas palavras que ditarão os rumos dos mercados, mais do que as de Janet Yellen ou de qualquer outra autoridade. Trata-se da política sobrepondo-se à economia, como temos visto nesse nosso Brasil encalhado. Como nos revela nossa própria experiência recente, quando a política se impõe dessa maneira perversa, as “melhores intenções” não produzem os melhores resultados – paira a incerteza. Em ambiente assim, é possível vislumbrar os EUA crescendo pouco, mas com mais inflação. Dito de outro modo, dá para imaginar cenário de semiestagflação. Esse quadro não propele a economia mundial e, de quebra, desarranja ainda mais os países emergentes, já que o Fed terá de elevar os juros mais rapidamente do mesmo modo.
Não falei do cenário em que Trump faz tudo o que prometeu – faltou espaço. Em uma palavra? Catástrofe.
Portanto, assim estamos. Entre Trumps e Brazumps, nosso futuro acaba de ficar bem mais obscuro.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Com Trump, algo parece certo: não há qualquer cenário que beneficie o Brasil
O mundo, os mercados, o Brasil ainda estão digerindo o resultado das eleições americanas e a vitória de Donald Trump. Sem visão clara sobre os ocupantes dos principais cargos – sabemos apenas que Reince Priebus, chairman do comitê republicano, e Steve Bannon, ex-Goldman Sachs e chairman da ultra-conservadora empresa de comunicação Breitbart News, serão seus assessores mais próximos –, há muita especulação. Contudo, a despeito de como se formará a administração Trump e de quais serão os seus rumos econômicos, algo parece certo: não há qualquer cenário que beneficie o Brasil.
Tomemos o enredo que os mercados internacionais abraçaram nos últimos dias. Segundo a trama, Trump haverá de modular consideravelmente a retórica de campanha, sobretudo na área comercial. De acordo com essa visão, o protecionismo será moderado – Trump não sairá por aí rasgando acordos comerciais nem solapando tarifas proibitivas em alguns de seus principais parceiros comerciais. Moderada, também, será a política de imigração – saem de cena as deportações em massa, cedendo lugar à extradição de ilegais que tenham cometido crimes em solo americano.
As primeiras declarações de Trump e de Paul Ryan, porta-voz da Câmara, corroboram a tese de que a imigração será tratada de forma mais suave do que os brados de campanha. A ver. Sem tanto protecionismo e com um política de imigração mais moderada, sobram os efeitos da gigantesca expansão fiscal pretendida. Os esboços de Trump na área fiscal sugerem redução expressiva dos impostos corporativos e aumento igualmente expressivo dos gastos, sobretudo na área de infraestrutura. Com Congresso inteiramente republicano, é provável que o presidente eleito consiga levar tais planos a cabo, ainda que em magnitude inferior aos 6% do PIB pretendidos.
O cenário de maciça expansão fiscal condiz com inflação em alta mais acelerada do que se supunha há poucos meses. Portanto, o caminho para a alta de juros promovida pelo Fed seria bem diferente daquele que se delineara. Menos gradualismo no aperto, mais altas pela frente. É esse o principal motivo para que se tenha visto no Brasil, e em outros mercados emergentes, aguda reprecificação de risco, com desvalorizações abruptas e esfriamento da euforia reinante. Caso esse quadro se concretize, poucas dúvidas restam de que o Banco Central brasileiro não terá espaço para promover a queda de juros que os mercados e, sobretudo, as empresas e as famílias brasileiras esperavam.
Poder-se-ia dizer, inclusive, que o BC perdeu o timing – talvez tivesse sido melhor promover a redução mais acentuada dos juros na esteira da euforia que inaugurou o governo Temer e que agora se apaga nem tão lentamente. As previsões de crescimento já foram revistas para baixo pelo próprio governo – não mais do que 1% em 2017.
O segundo cenário, hoje tão provável quanto o dos mercados, é que Trump seja mais protecionista, faça sua expansão fiscal e, além de tudo isso, continue a ser o provocateur da campanha. Mais protecionista não significa rasgar acordos, mas significa retórica aguerrida que acirre os riscos geopolíticos e, sobretudo, a incerteza.
Daqui para frente, afinal, são suas palavras que ditarão os rumos dos mercados, mais do que as de Janet Yellen ou de qualquer outra autoridade. Trata-se da política sobrepondo-se à economia, como temos visto nesse nosso Brasil encalhado. Como nos revela nossa própria experiência recente, quando a política se impõe dessa maneira perversa, as “melhores intenções” não produzem os melhores resultados – paira a incerteza. Em ambiente assim, é possível vislumbrar os EUA crescendo pouco, mas com mais inflação. Dito de outro modo, dá para imaginar cenário de semiestagflação. Esse quadro não propele a economia mundial e, de quebra, desarranja ainda mais os países emergentes, já que o Fed terá de elevar os juros mais rapidamente do mesmo modo.
Não falei do cenário em que Trump faz tudo o que prometeu – faltou espaço. Em uma palavra? Catástrofe.
Portanto, assim estamos. Entre Trumps e Brazumps, nosso futuro acaba de ficar bem mais obscuro.
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
A CNBB e a PEC do Teto - MARCOS POGGI
ESTADÃO - 16/11
Nenhuma novidade que possa enriquecer a discussão desse momentoso tema
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) emitiu nota com severas críticas à PEC 241 ora em tramitação no Congresso. Nenhuma novidade que possa enriquecer a discussão desse momentoso e controverso tema, apenas os mesmos argumentos já repetidos à exaustão pelos críticos da medida. Não obstante, o pronunciamento da entidade enseja, pelo menos, o aprofundamento da discussão de dois aspectos relevantes no caso.
O primeiro liga-se ao imperativo de superar o quadro de penúria do Estado brasileiro, e as consequências macroeconômicas de tal situação, realidade solenemente ignorada na nota da CNBB. E que impõe a aplicação de um freio de arrumação na administração das contas pública no Brasil. Porque, como disse o professor Delfim Netto, “o problema é que, na ausência de uma política de rígido controle, as despesas públicas aumentam sozinhas”. O segundo aspecto refere-se à discussão do tratamento dado pela PEC às regras que estabelecem o nível mínimo de recursos destinados às áreas de saúde e educação, em relação ao qual a carta dos bispos pode conter, apesar de não explicitado, um detalhe de realce, adiante discutido.
Há duas formas de efetuar o controle de qualquer orçamento: pelo aumento da receita e/ou pela redução das despesas. No caso das contas públicas, para aumento das receitas, via elevação da carga tributária, há um limite. A partir de determinado ponto, à medida que a carga tributária aumenta, a arrecadação cai, no lugar de subir. Tal fenômeno é explicado pelo desestímulo que uma elevada incidência tributária provoca nos agentes econômicos numa economia de mercado. Esse fenômeno pode ser facilmente compreendido pela observação da curva de Laffer, no link https://https://www.youtube.com/watch?v=zxo_Ivy5RKw
A teoria em causa trata tão somente dos efeitos da variação da carga tributária sobre o volume da arrecadação fiscal. A questão da adequação ou justiça da estrutura tributária é outra. O que, por conseguinte, não exclui a hipótese de que uma mexida na estrutura tributária possa elevar o ponto na curva de Laffer em que o aumento da carga tributária começa a baixar a arrecadação. Assim, como o nível de tributação no Brasil já encostou ou está muito próximo daquele limite, e não havendo espaço para aumento da receita via elevação de impostos (independentemente de eventuais inadequações e injustiças na aplicação dos tributos no Brasil), há que fazer logo alguma coisa para o efetivo controle das despesas públicas no País.
Quem melhor definiu, no plano macroeconômico, a situação de nossas contas públicas foi o economista Frederico Amorim, com um raciocínio absolutamente direto que pode ser resumido da seguinte forma: com a dívida da União (fora o endividamento dos Estados e municípios) em R$ 3,3 trilhões, o serviço da dívida já passa dos R$ 400 bilhões/ano, o que é insustentável. Desse total, os estrangeiros (apontados por alguns críticos como os vilões do processo), absorvem atualmente cerca de 17%, ficando, portanto, aproximadamente 83% nos bancos, fundos, empresas e pessoas físicas do Brasil.
Uma das consequências de tal situação é uma severa escassez de recursos para realização de investimentos públicos no País, já que as disponibilidades, nesse caso, precisam ser em grande medida canalizadas para pagamento do serviço da dívida. A propósito, é curioso observar que a nota da CNBB “alerta” para o risco de a PEC tornar inviáveis os investimentos em educação e saúde, quando o que se daria sem medidas fortes de controle do endividamento público, como as visadas com a PEC, seria justamente o oposto: a canalização da maior parte dos recursos para investimentos nessas áreas indo para pagamento do serviço da dívida. A menos que se fizesse uma opção preferencial pelo calote e pela hiperinflação.
E não apenas os investimentos públicos seriam fortemente reduzidos: os investimentos privados também o seriam. Em consequência, num quadro como esse a economia não tem como crescer, “porque a poupança, contrapartida macroeconômica dos investimentos, é praticamente toda, ou em grande medida, aplicada na cobertura do déficit público com suas generosas taxas de juros. A receita pública, com as restrições ao avanço da produção, e da arrecadação, também não cresce”. E sem superávit fiscal não há como honrar o serviço da dívida. A saída nesse contexto é fazer novas dívidas para pagar juros. Tal processo tem de ser estancado, sob pena de o País cair numa situação semelhante à da Grécia recentemente.
O segundo aspecto acima mencionado liga-se à limitação de gastos com saúde e educação. É que, apesar de os porcentuais mínimos para essas duas áreas não estarem atreladas à despesa (que a proposta limita), e sim à receita, que, obviamente, não se propõe congelar, há na PEC um dispositivo que limita, a partir de 2017, o crescimento dos gastos com saúde e educação ao total dessas mesmas despesas no exercício anterior corrigidas pela variação do IPCA. Esse dispositivo (que na prática desvincula as despesas com saúde e educação da receita) poderia ser considerado dispensável. Porque sem ele tais despesas só cresceriam em ritmo mais significativo no caso de um aumento superlativo das receitas, o que seria de todo desejável, já que reforçaria o combate às carências nacionais nessas áreas sem provocar dano maior às contas públicas. O único senão seria causado por uma possível necessidade de redução das despesas em outras áreas para atendimento a tais limites mínimos da saúde e educação, que ficariam livres para crescer com a receita. Não obstante, essa não seria uma dificuldade insanável. Uma compensação, ainda que parcial, a esse excesso de cuidado pode ser a anunciada emenda de aumento do limite mínimo de despesas com a saúde de 15% para 17% das receitas da União.
*Economista e escritor
Nenhuma novidade que possa enriquecer a discussão desse momentoso tema
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) emitiu nota com severas críticas à PEC 241 ora em tramitação no Congresso. Nenhuma novidade que possa enriquecer a discussão desse momentoso e controverso tema, apenas os mesmos argumentos já repetidos à exaustão pelos críticos da medida. Não obstante, o pronunciamento da entidade enseja, pelo menos, o aprofundamento da discussão de dois aspectos relevantes no caso.
O primeiro liga-se ao imperativo de superar o quadro de penúria do Estado brasileiro, e as consequências macroeconômicas de tal situação, realidade solenemente ignorada na nota da CNBB. E que impõe a aplicação de um freio de arrumação na administração das contas pública no Brasil. Porque, como disse o professor Delfim Netto, “o problema é que, na ausência de uma política de rígido controle, as despesas públicas aumentam sozinhas”. O segundo aspecto refere-se à discussão do tratamento dado pela PEC às regras que estabelecem o nível mínimo de recursos destinados às áreas de saúde e educação, em relação ao qual a carta dos bispos pode conter, apesar de não explicitado, um detalhe de realce, adiante discutido.
Há duas formas de efetuar o controle de qualquer orçamento: pelo aumento da receita e/ou pela redução das despesas. No caso das contas públicas, para aumento das receitas, via elevação da carga tributária, há um limite. A partir de determinado ponto, à medida que a carga tributária aumenta, a arrecadação cai, no lugar de subir. Tal fenômeno é explicado pelo desestímulo que uma elevada incidência tributária provoca nos agentes econômicos numa economia de mercado. Esse fenômeno pode ser facilmente compreendido pela observação da curva de Laffer, no link https://https://www.youtube.com/watch?v=zxo_Ivy5RKw
A teoria em causa trata tão somente dos efeitos da variação da carga tributária sobre o volume da arrecadação fiscal. A questão da adequação ou justiça da estrutura tributária é outra. O que, por conseguinte, não exclui a hipótese de que uma mexida na estrutura tributária possa elevar o ponto na curva de Laffer em que o aumento da carga tributária começa a baixar a arrecadação. Assim, como o nível de tributação no Brasil já encostou ou está muito próximo daquele limite, e não havendo espaço para aumento da receita via elevação de impostos (independentemente de eventuais inadequações e injustiças na aplicação dos tributos no Brasil), há que fazer logo alguma coisa para o efetivo controle das despesas públicas no País.
Quem melhor definiu, no plano macroeconômico, a situação de nossas contas públicas foi o economista Frederico Amorim, com um raciocínio absolutamente direto que pode ser resumido da seguinte forma: com a dívida da União (fora o endividamento dos Estados e municípios) em R$ 3,3 trilhões, o serviço da dívida já passa dos R$ 400 bilhões/ano, o que é insustentável. Desse total, os estrangeiros (apontados por alguns críticos como os vilões do processo), absorvem atualmente cerca de 17%, ficando, portanto, aproximadamente 83% nos bancos, fundos, empresas e pessoas físicas do Brasil.
Uma das consequências de tal situação é uma severa escassez de recursos para realização de investimentos públicos no País, já que as disponibilidades, nesse caso, precisam ser em grande medida canalizadas para pagamento do serviço da dívida. A propósito, é curioso observar que a nota da CNBB “alerta” para o risco de a PEC tornar inviáveis os investimentos em educação e saúde, quando o que se daria sem medidas fortes de controle do endividamento público, como as visadas com a PEC, seria justamente o oposto: a canalização da maior parte dos recursos para investimentos nessas áreas indo para pagamento do serviço da dívida. A menos que se fizesse uma opção preferencial pelo calote e pela hiperinflação.
E não apenas os investimentos públicos seriam fortemente reduzidos: os investimentos privados também o seriam. Em consequência, num quadro como esse a economia não tem como crescer, “porque a poupança, contrapartida macroeconômica dos investimentos, é praticamente toda, ou em grande medida, aplicada na cobertura do déficit público com suas generosas taxas de juros. A receita pública, com as restrições ao avanço da produção, e da arrecadação, também não cresce”. E sem superávit fiscal não há como honrar o serviço da dívida. A saída nesse contexto é fazer novas dívidas para pagar juros. Tal processo tem de ser estancado, sob pena de o País cair numa situação semelhante à da Grécia recentemente.
O segundo aspecto acima mencionado liga-se à limitação de gastos com saúde e educação. É que, apesar de os porcentuais mínimos para essas duas áreas não estarem atreladas à despesa (que a proposta limita), e sim à receita, que, obviamente, não se propõe congelar, há na PEC um dispositivo que limita, a partir de 2017, o crescimento dos gastos com saúde e educação ao total dessas mesmas despesas no exercício anterior corrigidas pela variação do IPCA. Esse dispositivo (que na prática desvincula as despesas com saúde e educação da receita) poderia ser considerado dispensável. Porque sem ele tais despesas só cresceriam em ritmo mais significativo no caso de um aumento superlativo das receitas, o que seria de todo desejável, já que reforçaria o combate às carências nacionais nessas áreas sem provocar dano maior às contas públicas. O único senão seria causado por uma possível necessidade de redução das despesas em outras áreas para atendimento a tais limites mínimos da saúde e educação, que ficariam livres para crescer com a receita. Não obstante, essa não seria uma dificuldade insanável. Uma compensação, ainda que parcial, a esse excesso de cuidado pode ser a anunciada emenda de aumento do limite mínimo de despesas com a saúde de 15% para 17% das receitas da União.
*Economista e escritor
Eleição de Trump vai prolongar crise econômica no Brasil - VINICIUS TORRES FREIRE
FOLHA DE SP - 16/11
A primeira onda de choque causada pelo meteorito Trump deve durar tempo bastante para ao menos retardar por um par de meses o fim da recessão.
Há outras dúvidas importantes, novas, sobre: 1) a duração do efeito Trump; 2) a capacidade do governo de aprovar contenções do gasto; 3) a capacidade do governo de criar algum estímulo ao crescimento.
Além do plano fiscal básico (teto, Previdência), o governo terá de acelerar de modo radical o programa de mudanças. Cresceu bem o risco de ficarmos encalacrados em uma espiral de lerdeza econômica, tensão sociopolítica e paralisia decisória.
Começando pela dúvida 2. Uma recuperação econômica retardada no mínimo não facilita a aprovação de mudanças socioeconômicas duras, como a da Previdência. O risco continuado de tumulto político-policial e desastres estaduais amplifica as dificuldades.
Continuando pela dúvida 1. Pode ser que o efeito inicial de Trump se dissipe assim que os donos do dinheiro grosso reordenarem suas aplicações, depois da surpresa eleitoral. Quanto tempo vai levar?
A vitória do voto pela saída do Reino Unido da União Europeia, em junho, causou duas semanas de solavancos. Comparada à vitória de Trump, é brincadeira de criança.
O dólar subiu, o que pode ser ruim para a inflação e a dívida de muita empresa. As taxas de juros de longo prazo no Brasil subiram. Sabe-se lá o que será do financiamento externo, ao qual as empresas voltavam a recorrer. Há desânimo com a possibilidade de o Banco Central acelerar a redução das "suas" taxas de juros, praticamente o único, porém lerdo, estímulo restante do crescimento.
O calendário americano e a própria biruta que é Trump criam incerteza, em si ruim, e podem estender por mais seis meses o período de solavancos.
Até o final do ano, a administração Donald Trump deve ter rostos e sentidos menos indefinidos. Até fevereiro, terá um Orçamento, seu programa de fato. Até abril, o Congresso deve ter dado uma "geral" no que passa ou não (as leis de alocação de despesas vão sendo aprovadas até outubro do ano que vem).
Enquanto isso, se vai descobrir se o novo presidente dos EUA se torna menos estrambótico ou vai ser coerente com o que disse em campanha (a coerência, assim como a coragem, não é uma virtude).
Quanto à dúvida 3, trata-se do mesmo problema notado desde quando Michel Temer lançou as linhas gerais do seu plano econômico, em maio, questão agora ainda mais urgente.
O investimento público cairá; concessões e privatizações, de infraestrutura e outras, estão quase paradas. Não fariam quase efeito em 2017, de qualquer modo -poderiam apenas dar ânimo. O plano Temer sempre foi manco quanto a crescimento.
Não há muito o que fazer agora, mas há um pouco.
Não há margem para erro ou atraso no plano de mudanças fiscais (contenção de gastos). O plano de concessões precisa de urgência radical. Limpar com urgência o entulho burocrático que emperra o investimento pode dar alguma ajuda. Ajuda que não se meta em lambança cúmplice com o Congresso, anistias e coisas assim.
O efeito não tende a ser grande no PIB. Mas estamos correndo o risco de estagnação, social e politicamente venenosa depois de três anos de recessão horrenda.
A primeira onda de choque causada pelo meteorito Trump deve durar tempo bastante para ao menos retardar por um par de meses o fim da recessão.
Há outras dúvidas importantes, novas, sobre: 1) a duração do efeito Trump; 2) a capacidade do governo de aprovar contenções do gasto; 3) a capacidade do governo de criar algum estímulo ao crescimento.
Além do plano fiscal básico (teto, Previdência), o governo terá de acelerar de modo radical o programa de mudanças. Cresceu bem o risco de ficarmos encalacrados em uma espiral de lerdeza econômica, tensão sociopolítica e paralisia decisória.
Começando pela dúvida 2. Uma recuperação econômica retardada no mínimo não facilita a aprovação de mudanças socioeconômicas duras, como a da Previdência. O risco continuado de tumulto político-policial e desastres estaduais amplifica as dificuldades.
Continuando pela dúvida 1. Pode ser que o efeito inicial de Trump se dissipe assim que os donos do dinheiro grosso reordenarem suas aplicações, depois da surpresa eleitoral. Quanto tempo vai levar?
A vitória do voto pela saída do Reino Unido da União Europeia, em junho, causou duas semanas de solavancos. Comparada à vitória de Trump, é brincadeira de criança.
O dólar subiu, o que pode ser ruim para a inflação e a dívida de muita empresa. As taxas de juros de longo prazo no Brasil subiram. Sabe-se lá o que será do financiamento externo, ao qual as empresas voltavam a recorrer. Há desânimo com a possibilidade de o Banco Central acelerar a redução das "suas" taxas de juros, praticamente o único, porém lerdo, estímulo restante do crescimento.
O calendário americano e a própria biruta que é Trump criam incerteza, em si ruim, e podem estender por mais seis meses o período de solavancos.
Até o final do ano, a administração Donald Trump deve ter rostos e sentidos menos indefinidos. Até fevereiro, terá um Orçamento, seu programa de fato. Até abril, o Congresso deve ter dado uma "geral" no que passa ou não (as leis de alocação de despesas vão sendo aprovadas até outubro do ano que vem).
Enquanto isso, se vai descobrir se o novo presidente dos EUA se torna menos estrambótico ou vai ser coerente com o que disse em campanha (a coerência, assim como a coragem, não é uma virtude).
Quanto à dúvida 3, trata-se do mesmo problema notado desde quando Michel Temer lançou as linhas gerais do seu plano econômico, em maio, questão agora ainda mais urgente.
O investimento público cairá; concessões e privatizações, de infraestrutura e outras, estão quase paradas. Não fariam quase efeito em 2017, de qualquer modo -poderiam apenas dar ânimo. O plano Temer sempre foi manco quanto a crescimento.
Não há muito o que fazer agora, mas há um pouco.
Não há margem para erro ou atraso no plano de mudanças fiscais (contenção de gastos). O plano de concessões precisa de urgência radical. Limpar com urgência o entulho burocrático que emperra o investimento pode dar alguma ajuda. Ajuda que não se meta em lambança cúmplice com o Congresso, anistias e coisas assim.
O efeito não tende a ser grande no PIB. Mas estamos correndo o risco de estagnação, social e politicamente venenosa depois de três anos de recessão horrenda.
O golpe de Lula da Silva - EDITORIAL ESTADÃO
ESTADÃO - 16/11👌👌👌
Há quem defenda a ideia de que seriam politicamente proveitosas a condenação e a prisão de Lula, pois, sob protestos dos progressistas do mundo inteiro, criariam um grande mártir cuja imagem atrás das grades motivaria uma reação perfeita para reconquistar apoio popular
O Estado brasileiro é ilegítimo, está a serviço de interesses estrangeiros e por isso não tem moral nem autoridade para julgar e botar na cadeia Luiz Inácio Lula da Silva. Essa é a tese implicitamente defendida há dias pelo antigo ídolo do ABC paulista, em encontro de partidos e movimentos de esquerda: “Estamos na hora de costurar uma coisa maior, mais sólida. Não é um partido, não é uma frente, é um movimento para restaurar a democracia”. Ora, se algo precisa ser restaurado é porque foi desfigurado, deturpado. Sendo assim, as instituições brasileiras não têm legitimidade para julgar e condenar quem quer que seja, muito menos um campeão das causas populares que ensinou ao mundo como combater a fome e acabou com a miséria.
O palco para o grande “evento democrático” em solidariedade ao Movimento dos Sem-Terra (MST) em Guararema (SP) foi armado na Escola Nacional Florestan Fernandes, criada pelo MST para formar militantes políticos. A escola havia sido vítima da “truculência policial”. Participaram do encontro representantes do PT, PCdoB, PSOL e PSTU, além de movimentos sociais e organizações sindicais. Animado por manifestações de devotado apoio – que só tem visto em ambientes selecionados –, Lula sugeriu a existência de influências externas para o fato de os partidos e candidatos esquerdistas terem sido repudiados nas urnas no mês passado: “Tem muita coisa que está acontecendo que não é da cabeça do Temer nem do Eduardo Cunha. Tem muito mais cabeças se metendo, como se meteram na Argentina, Uruguai, Bolívia”.
Está clara, pois, a estratégia de Lula na tentativa de afastar o risco cada vez mais próximo de ser condenado em um dos processos em que é réu por corrupção. A Lava Jato e operações congêneres não passam de instrumentos de perseguição do PT e seus dirigentes. E esta é apenas uma das manifestações da ampla conspiração do capital financeiro internacional para acabar com as lideranças “progressistas” do País e se apossar do mercado interno e de nossas riquezas naturais.
É claro ademais que, uma vez não sendo mais o Brasil uma democracia, fica fácil compreender como e por que a “nova matriz econômica” dos governos petistas foi sabotada pelo mercado; como é que alguém como Eduardo Cunha conseguiu se tornar presidente da Câmara depois da vitória de Dilma no pleito presidencial de 2014; como é que “a maior base parlamentar da História da República” se dissolveu num piscar de olhos e todas as propostas progressistas de Dilma passaram a ser rejeitadas; como é que, de uma hora para outra, o partido mais popular do País foi massacrado nas urnas municipais. É óbvio que tudo isso só aconteceu porque os inimigos do povo acabaram com a democracia no Brasil. Com o apoio da esquerda internacional, é preciso “restaurar a democracia” entre nós, como espertamente defende Lula da Silva. Sobre os desmandos administrativos, o desmanche da economia e a corrupção patrocinados pelo lulopetismo, nenhuma palavra.
O aceno à esquerda internacional tem a intenção de explorar o que resta do prestígio do ex-presidente no exterior e capitalizá-lo na forma de manifestações de solidariedade que criem um clima favorável para que, em caso de condenação, Lula obtenha asilo político em algum país amigo. Há quem defenda a ideia de que seriam politicamente proveitosas a condenação e a prisão de Lula, pois, sob protestos dos progressistas do mundo inteiro, criariam um grande mártir cuja imagem atrás das grades motivaria uma reação perfeita para reconquistar apoio popular.
Essa ideia, porém, só pode passar pela cabeça de quem não conhece o apego que Lula e sua família sempre tiveram às conquistas do alpinismo social e econômico. Lula até topa virar mártir, desde que confortavelmente instalado em algum aprazível recanto do mundo, do qual possa se deslocar para atender, a bom preço, a governos e instituições que se interessem por detalhes de como acabou com a fome e a pobreza no Brasil. Quem quiser que acredite. Porque o que Lula está armando mesmo é um golpe para chamar de seu.
Há quem defenda a ideia de que seriam politicamente proveitosas a condenação e a prisão de Lula, pois, sob protestos dos progressistas do mundo inteiro, criariam um grande mártir cuja imagem atrás das grades motivaria uma reação perfeita para reconquistar apoio popular
O Estado brasileiro é ilegítimo, está a serviço de interesses estrangeiros e por isso não tem moral nem autoridade para julgar e botar na cadeia Luiz Inácio Lula da Silva. Essa é a tese implicitamente defendida há dias pelo antigo ídolo do ABC paulista, em encontro de partidos e movimentos de esquerda: “Estamos na hora de costurar uma coisa maior, mais sólida. Não é um partido, não é uma frente, é um movimento para restaurar a democracia”. Ora, se algo precisa ser restaurado é porque foi desfigurado, deturpado. Sendo assim, as instituições brasileiras não têm legitimidade para julgar e condenar quem quer que seja, muito menos um campeão das causas populares que ensinou ao mundo como combater a fome e acabou com a miséria.
O palco para o grande “evento democrático” em solidariedade ao Movimento dos Sem-Terra (MST) em Guararema (SP) foi armado na Escola Nacional Florestan Fernandes, criada pelo MST para formar militantes políticos. A escola havia sido vítima da “truculência policial”. Participaram do encontro representantes do PT, PCdoB, PSOL e PSTU, além de movimentos sociais e organizações sindicais. Animado por manifestações de devotado apoio – que só tem visto em ambientes selecionados –, Lula sugeriu a existência de influências externas para o fato de os partidos e candidatos esquerdistas terem sido repudiados nas urnas no mês passado: “Tem muita coisa que está acontecendo que não é da cabeça do Temer nem do Eduardo Cunha. Tem muito mais cabeças se metendo, como se meteram na Argentina, Uruguai, Bolívia”.
Está clara, pois, a estratégia de Lula na tentativa de afastar o risco cada vez mais próximo de ser condenado em um dos processos em que é réu por corrupção. A Lava Jato e operações congêneres não passam de instrumentos de perseguição do PT e seus dirigentes. E esta é apenas uma das manifestações da ampla conspiração do capital financeiro internacional para acabar com as lideranças “progressistas” do País e se apossar do mercado interno e de nossas riquezas naturais.
É claro ademais que, uma vez não sendo mais o Brasil uma democracia, fica fácil compreender como e por que a “nova matriz econômica” dos governos petistas foi sabotada pelo mercado; como é que alguém como Eduardo Cunha conseguiu se tornar presidente da Câmara depois da vitória de Dilma no pleito presidencial de 2014; como é que “a maior base parlamentar da História da República” se dissolveu num piscar de olhos e todas as propostas progressistas de Dilma passaram a ser rejeitadas; como é que, de uma hora para outra, o partido mais popular do País foi massacrado nas urnas municipais. É óbvio que tudo isso só aconteceu porque os inimigos do povo acabaram com a democracia no Brasil. Com o apoio da esquerda internacional, é preciso “restaurar a democracia” entre nós, como espertamente defende Lula da Silva. Sobre os desmandos administrativos, o desmanche da economia e a corrupção patrocinados pelo lulopetismo, nenhuma palavra.
O aceno à esquerda internacional tem a intenção de explorar o que resta do prestígio do ex-presidente no exterior e capitalizá-lo na forma de manifestações de solidariedade que criem um clima favorável para que, em caso de condenação, Lula obtenha asilo político em algum país amigo. Há quem defenda a ideia de que seriam politicamente proveitosas a condenação e a prisão de Lula, pois, sob protestos dos progressistas do mundo inteiro, criariam um grande mártir cuja imagem atrás das grades motivaria uma reação perfeita para reconquistar apoio popular.
Essa ideia, porém, só pode passar pela cabeça de quem não conhece o apego que Lula e sua família sempre tiveram às conquistas do alpinismo social e econômico. Lula até topa virar mártir, desde que confortavelmente instalado em algum aprazível recanto do mundo, do qual possa se deslocar para atender, a bom preço, a governos e instituições que se interessem por detalhes de como acabou com a fome e a pobreza no Brasil. Quem quiser que acredite. Porque o que Lula está armando mesmo é um golpe para chamar de seu.
Na hora errada - DORA KRAMER
ESTADÃO - 16/11
Temer confunde conciliação com permissividade ao defender anistia prévia a Lula
Ainda bem que Michel Temer só preside o Poder Executivo. Não manda no Judiciário nem dispõe de prerrogativas que lhe permitam interferir diretamente nas investigações do Ministério Público.
Fosse ele juiz das demandas na Polícia Federal e do Ministério Público em relação à Operação Lava Jato haveria motivos para preocupação em decorrência de sua assertiva de que uma possível (e provável) ordem de prisão contra o ex-presidente Luiz Inácio da Silva traria instabilidade política ao País.
Estivesse Temer no lugar de Sérgio Moro, talvez levasse em conta essa avaliação supostamente caridosa para decidir se seria justificada ou não a detenção de Lula. Aí vista pela ótica política. Como as instituições são independentes e o presidente pode muito, mas não pode tudo, trata-se apenas de uma opinião dada em hora errada.
Lamentável, porém, que como professor de direito constitucional e político para lá de experiente, considere que a eventualidade da punição a quem quer que seja represente um “problema” para o País.
A declaração, dada em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, revela, talvez, menos a convicção real de Michel Temer e mais uma dúvida oculta sobre a própria legitimidade. Receio de ser classificado como golpista. No fundo, insegurança a respeito dos próprios atos. No raso, dúvida sobre o funcionamento das instituições, o trabalho do Ministério Público, da Justiça e da Polícia Federal.
Quando afirma que uma prisão de Lula poderia ser um fator de risco institucional, o presidente da República sinaliza posição de enfraquecimento das instituições. Movimento contrário seria o de dizer que a questão a outras instâncias pertence. E a elas cabe decidir livremente de acordo com a lei.
Se assim for, de maneira legal, a possível (e provável) decretação de prisão de Lula ou de qualquer outra figura da República, que seja. Se não for, melhor para os envolvidos, entre os quais não pode se incluir o presidente da República.
A menos que tenha contas a ajustar e, nesse caso, advogue em causa própria.
Presta atenção. No Congresso há várias frentes de “trabalho” montadas no intuito de restringir investigações a respeito de parlamentares e seus efeitos sobre a opinião pública. A mais recente e sorrateira por não ter tido grande destaque no noticiário. É a tentativa de proibir as transmissões ao vivo das sessões dos tribunais superiores em julgamentos de ações cíveis e penais.
O projeto foi aprovado na Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara e, em seguida, irá para exame na Comissão de Constituição e Justiça, cuja decisão terá caráter terminativo. Se for aprovado na CCJ, o tema não precisará ir a plenário.
Dizer sobre o cerceamento do direito do cidadão à informação é pouco, mas é o suficiente para explicar a razão desse tipo de proposta aqui e agora.
Dedicação exclusiva. O ex-senador Delcídio Amaral colocou um ponto final em seu período de muda, até imposto pelas circunstâncias da delação premiada. Começou com uma entrevista ali, outra acolá, dizendo o que não podia (ou não queria) dizer quando líder do governo no Senado: que Lula acompanhava de perto o desenrolar dos negócios na Petrobrás e que Dilma sabia de tudo sobre a compra e venda da refinaria de Pasadena, no Texas.
Além de um dos porta-vozes dos governos petistas no Parlamento, Delcídio foi diretor da petrolífera onde manteve influência e ligações. Sabe de tudo e não é inocente. Anuncia volta à política e, pelo jeito, na condição de detonador dos ex-presidentes.
Temer confunde conciliação com permissividade ao defender anistia prévia a Lula
Ainda bem que Michel Temer só preside o Poder Executivo. Não manda no Judiciário nem dispõe de prerrogativas que lhe permitam interferir diretamente nas investigações do Ministério Público.
Fosse ele juiz das demandas na Polícia Federal e do Ministério Público em relação à Operação Lava Jato haveria motivos para preocupação em decorrência de sua assertiva de que uma possível (e provável) ordem de prisão contra o ex-presidente Luiz Inácio da Silva traria instabilidade política ao País.
Estivesse Temer no lugar de Sérgio Moro, talvez levasse em conta essa avaliação supostamente caridosa para decidir se seria justificada ou não a detenção de Lula. Aí vista pela ótica política. Como as instituições são independentes e o presidente pode muito, mas não pode tudo, trata-se apenas de uma opinião dada em hora errada.
Lamentável, porém, que como professor de direito constitucional e político para lá de experiente, considere que a eventualidade da punição a quem quer que seja represente um “problema” para o País.
A declaração, dada em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, revela, talvez, menos a convicção real de Michel Temer e mais uma dúvida oculta sobre a própria legitimidade. Receio de ser classificado como golpista. No fundo, insegurança a respeito dos próprios atos. No raso, dúvida sobre o funcionamento das instituições, o trabalho do Ministério Público, da Justiça e da Polícia Federal.
Quando afirma que uma prisão de Lula poderia ser um fator de risco institucional, o presidente da República sinaliza posição de enfraquecimento das instituições. Movimento contrário seria o de dizer que a questão a outras instâncias pertence. E a elas cabe decidir livremente de acordo com a lei.
Se assim for, de maneira legal, a possível (e provável) decretação de prisão de Lula ou de qualquer outra figura da República, que seja. Se não for, melhor para os envolvidos, entre os quais não pode se incluir o presidente da República.
A menos que tenha contas a ajustar e, nesse caso, advogue em causa própria.
Presta atenção. No Congresso há várias frentes de “trabalho” montadas no intuito de restringir investigações a respeito de parlamentares e seus efeitos sobre a opinião pública. A mais recente e sorrateira por não ter tido grande destaque no noticiário. É a tentativa de proibir as transmissões ao vivo das sessões dos tribunais superiores em julgamentos de ações cíveis e penais.
O projeto foi aprovado na Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara e, em seguida, irá para exame na Comissão de Constituição e Justiça, cuja decisão terá caráter terminativo. Se for aprovado na CCJ, o tema não precisará ir a plenário.
Dizer sobre o cerceamento do direito do cidadão à informação é pouco, mas é o suficiente para explicar a razão desse tipo de proposta aqui e agora.
Dedicação exclusiva. O ex-senador Delcídio Amaral colocou um ponto final em seu período de muda, até imposto pelas circunstâncias da delação premiada. Começou com uma entrevista ali, outra acolá, dizendo o que não podia (ou não queria) dizer quando líder do governo no Senado: que Lula acompanhava de perto o desenrolar dos negócios na Petrobrás e que Dilma sabia de tudo sobre a compra e venda da refinaria de Pasadena, no Texas.
Além de um dos porta-vozes dos governos petistas no Parlamento, Delcídio foi diretor da petrolífera onde manteve influência e ligações. Sabe de tudo e não é inocente. Anuncia volta à política e, pelo jeito, na condição de detonador dos ex-presidentes.
Trump e os marajás brasileiros - ELIO GASPARI
O GLOBO - 16/11
Ele vai trabalhar por US$ 1, seus similares nacionais poderiam pelo menos respeitar os tetos constitucionais
Donald Trump fixou em um dólar o seu salário anual. Perderá US$ 1,6 milhão, uma mixaria para quem tem um patrimônio estimado em US$ 3,7 bilhões. Pode-se dizer que isso é coisa de demagogo. Ou de vigarista. Esse foi o adjetivo que lhe dedicou Michael Bloomberg, outro bilionário. Como prefeito de Nova York de 2002 a 2013, ele assumiu o mesmo compromisso e recebeu exatos US$ 12.
Bloomberg foi um grande prefeito, e Trump é uma grande ameaça. Ambos emitiram um sinal. Se alguém lhes contasse que no Brasil os governos da União e dos estados têm tetos constitucionais para os salários de seus servidores, mas eles são sistematicamente descumpridos, veriam nisso uma oportunidade para mostrar aos eleitores por que entraram na política.
Quem estoura os tetos não são os servidores que tomarão ferro com a reforma da Previdência ou os que estão sendo chamados a pagar a conta da farra do Rio de Janeiro. Estourar teto é coisa para maganos, grandes burocratas, magistrados e até mesmo professores universitários. Ninguém faz nada ilegal, e aí é que está o problema. Dentro da legalidade, fabricam-se mimos que, livres da dentada do Imposto de Renda, custam à Viúva algo como R$ 10 bilhões anuais. Esse dinheiro seria suficiente para salvar as finanças do Rio por um ano e ainda sobraria alguma coisa.
Quando aparecem os mimos da magistratura e dos procuradores, vem a grita de que se pretende mutilar a independência do Judiciário. Se alguém divulga a lista de premiados do magistério, vê-se uma ameaça à autonomia universitária. Quem pede para ver o preço dos auxílios e vantagens do Legislativo é um perigoso cerceador das liberdades públicas. Ministros da caravana de Temer, muito bem aposentados antes de completar 60 anos, informam que o Brasil precisa reformar sua Previdência e continuam acumulando os contracheques que produzem a ruína fiscal.
Cada corporação beneficiada embolsa em silêncio, deixando a defesa de seus interesses a cargo de vagas associações de classe. A dos magistrados chegou a criticar os ministros do Supremo que condenaram “gambiarras” e “puxadinhos” que levam os salários de desembargadores a R$ 56 mil (MG), R$ 52 mil (SP) e R$ 39 mil (RJ), quando o teto salarial dos servidores é de R$ 33,7 mil. Um levantamento dos repórteres Eduardo Bresciani e André de Souza mostrou que a Justiça tem pelo menos 13.790 servidores ganhando acima do teto.
Chega a ser uma malvadeza acreditar que o Judiciário é o pai da farra salarial dos marajás. Ele é apenas o mais astuto e, muitas vezes, o mais prepotente. Podendo ser parte da solução, decidiu se transformar em paladino do problema.
Trump e Bloomberg toparam trabalhar por um dólar, mas são bilionários. A magistratura brasileira poderia limpar esse trilho, decidindo que nenhum servidor, a qualquer título, pode levar para casa mais de R$ 33,7 mil mensais. Ninguém passará fome.
Infelizmente, em junho passado o juiz mineiro Luiz Guilherme Marques pediu para ficar sem o seu reajuste enquanto durar a crise da economia nacional. Dentro da lei, ele ganha R$ 41 mil líquidos. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais indeferiu seu pedido, pois salário é coisa “irrenunciável”.
Ele vai trabalhar por US$ 1, seus similares nacionais poderiam pelo menos respeitar os tetos constitucionais
Donald Trump fixou em um dólar o seu salário anual. Perderá US$ 1,6 milhão, uma mixaria para quem tem um patrimônio estimado em US$ 3,7 bilhões. Pode-se dizer que isso é coisa de demagogo. Ou de vigarista. Esse foi o adjetivo que lhe dedicou Michael Bloomberg, outro bilionário. Como prefeito de Nova York de 2002 a 2013, ele assumiu o mesmo compromisso e recebeu exatos US$ 12.
Bloomberg foi um grande prefeito, e Trump é uma grande ameaça. Ambos emitiram um sinal. Se alguém lhes contasse que no Brasil os governos da União e dos estados têm tetos constitucionais para os salários de seus servidores, mas eles são sistematicamente descumpridos, veriam nisso uma oportunidade para mostrar aos eleitores por que entraram na política.
Quem estoura os tetos não são os servidores que tomarão ferro com a reforma da Previdência ou os que estão sendo chamados a pagar a conta da farra do Rio de Janeiro. Estourar teto é coisa para maganos, grandes burocratas, magistrados e até mesmo professores universitários. Ninguém faz nada ilegal, e aí é que está o problema. Dentro da legalidade, fabricam-se mimos que, livres da dentada do Imposto de Renda, custam à Viúva algo como R$ 10 bilhões anuais. Esse dinheiro seria suficiente para salvar as finanças do Rio por um ano e ainda sobraria alguma coisa.
Quando aparecem os mimos da magistratura e dos procuradores, vem a grita de que se pretende mutilar a independência do Judiciário. Se alguém divulga a lista de premiados do magistério, vê-se uma ameaça à autonomia universitária. Quem pede para ver o preço dos auxílios e vantagens do Legislativo é um perigoso cerceador das liberdades públicas. Ministros da caravana de Temer, muito bem aposentados antes de completar 60 anos, informam que o Brasil precisa reformar sua Previdência e continuam acumulando os contracheques que produzem a ruína fiscal.
Cada corporação beneficiada embolsa em silêncio, deixando a defesa de seus interesses a cargo de vagas associações de classe. A dos magistrados chegou a criticar os ministros do Supremo que condenaram “gambiarras” e “puxadinhos” que levam os salários de desembargadores a R$ 56 mil (MG), R$ 52 mil (SP) e R$ 39 mil (RJ), quando o teto salarial dos servidores é de R$ 33,7 mil. Um levantamento dos repórteres Eduardo Bresciani e André de Souza mostrou que a Justiça tem pelo menos 13.790 servidores ganhando acima do teto.
Chega a ser uma malvadeza acreditar que o Judiciário é o pai da farra salarial dos marajás. Ele é apenas o mais astuto e, muitas vezes, o mais prepotente. Podendo ser parte da solução, decidiu se transformar em paladino do problema.
Trump e Bloomberg toparam trabalhar por um dólar, mas são bilionários. A magistratura brasileira poderia limpar esse trilho, decidindo que nenhum servidor, a qualquer título, pode levar para casa mais de R$ 33,7 mil mensais. Ninguém passará fome.
Infelizmente, em junho passado o juiz mineiro Luiz Guilherme Marques pediu para ficar sem o seu reajuste enquanto durar a crise da economia nacional. Dentro da lei, ele ganha R$ 41 mil líquidos. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais indeferiu seu pedido, pois salário é coisa “irrenunciável”.
terça-feira, novembro 15, 2016
Alguém deveria informar Brennan que a democracia evoluiu desde Platão - JOÃO PEREIRA COUTINHO
FOLHA DE SP - 15/11
Li com interesse a entrevista de Jason Brennan nesta Folha. Motivo duplo. Primeiro, porque escrevi sobre o seu "Against Democracy" (contra a democracia) menos de dois meses atrás. E, segundo, porque não é todos os dias que encontramos um cientista político sério a questionar os méritos do regime democrático.
Brennan acredita que a democracia premia a ignorância do eleitorado. Donde, a conclusão: epistocracia. Só deveria votar quem entende do assunto.
No livro, Brennan faz uma analogia –para mim, absurda– entre votar e dirigir um carro. Só podemos dirigir se tivermos licença. Em política, e uma vez cumprida a maioridade, todos podem votar. Faz sentido? Não faz, diz ele. Más escolhas democráticas provocam mais danos na vida de todos do que a incompetência rodoviária de alguns.
Não compro a tese. A política não é uma "ciência", ao contrário do que pensam os "cientistas políticos" (ridícula expressão); e pessoas politicamente analfabetas podem saber com lucidez aquilo que desejam para as suas vidas, mesmo que desconheçam macroeconomia ou sistemas eleitorais.
Além disso, e para retomarmos a metáfora do autor, pessoas com licença para dirigir continuam a provocar acidentes. Os sábios também falham. Quando o assunto é política, os sábios falham ainda mais.
E um desses sábios é Platão, o "pai espiritual" de Brennan (como Hélio Schwartsman escreveu com razão).
Depois de Atenas ter condenado à morte o seu mestre Sócrates; e depois da derrota traumática dos atenienses face a Esparta, Platão jogou a democracia no cesto dos regimes degenerados. Como é possível entregar os destinos da Cidade às paixões irracionais do povo?
A democracia só poderia ser corrigida pela emergência de um tirano que, após educação "epistocrática", talvez pudesse chegar ao trono do Rei-filósofo.
"A República" é um dos textos centrais da filosofia. Mas foi Aristóteles, discípulo de Platão, quem inaugurou as críticas à sua utopia.
Para dizer algo que, sem exagero, nunca mais foi esquecido na tradição democrática ocidental: a "pólis" precisa de saber equilibrar as paixões do povo com os interesses da elite.
Esse "regime misto", tão apreciado pelos romanos, encontrava-se no próprio funcionamento da República: os cônsules, os senadores e as assembleias populares, reunindo os elementos monárquico, aristocrático e democrático, permitiam que todas essas instituições se controlassem mutuamente.
Os "checks and balances" não nasceram com os Pais Fundadores dos Estados Unidos. Eles apenas aprenderam a lição com Políbio, Cícero e todos os seus herdeiros.
Hoje, as nossas democracias não são, ao contrário do que Jason Brennan acredita, regimes de "vontade geral" (para usar a sinistra expressão de Rousseau), em que as escolhas do povo são totais –e totalitárias.
Em qualquer democracia liberal civilizada, existem "elementos aristocráticos" (e epistocráticos) que complementam (e, claro, limitam) a mera vontade popular. Para ficarmos nos Estados Unidos, a existência de um Congresso bicameral ou de uma Suprema Corte são os melhores exemplos.
E, para lembrar Tocqueville, a existência de uma sociedade civil forte ou de uma mídia vigilante e livre também se assumem como "ilhas" independentes no meio da ignorância das massas.
Jason Brennan, para defender a sua proposta "epistocrática", apresenta uma versão de "democracia" que é uma caricatura das democracias liberais em que vivemos.
Alguém deveria informar esse "cientista político" que a democracia evoluiu muito desde Platão.
P.S. - Com as eleições americanas, a minha caixa de e-mail rebentou: havia leitores "conservadores" que se sentiam menos sós por eu não defender Trump; e havia leitores "conservadores" que me insultavam com vigor por eu não apoiar Trump.
O cenário divertiu-me porque revela um certo primitivismo no debate intelectual: para os fanáticos, a política não é uma conversa pluralista; é uma inquisição ideológica.
Na minha qualidade de herege, agradeço todos os insultos.
Eles são medalhas na lapela da minha liberdade.
Li com interesse a entrevista de Jason Brennan nesta Folha. Motivo duplo. Primeiro, porque escrevi sobre o seu "Against Democracy" (contra a democracia) menos de dois meses atrás. E, segundo, porque não é todos os dias que encontramos um cientista político sério a questionar os méritos do regime democrático.
Brennan acredita que a democracia premia a ignorância do eleitorado. Donde, a conclusão: epistocracia. Só deveria votar quem entende do assunto.
No livro, Brennan faz uma analogia –para mim, absurda– entre votar e dirigir um carro. Só podemos dirigir se tivermos licença. Em política, e uma vez cumprida a maioridade, todos podem votar. Faz sentido? Não faz, diz ele. Más escolhas democráticas provocam mais danos na vida de todos do que a incompetência rodoviária de alguns.
Não compro a tese. A política não é uma "ciência", ao contrário do que pensam os "cientistas políticos" (ridícula expressão); e pessoas politicamente analfabetas podem saber com lucidez aquilo que desejam para as suas vidas, mesmo que desconheçam macroeconomia ou sistemas eleitorais.
Além disso, e para retomarmos a metáfora do autor, pessoas com licença para dirigir continuam a provocar acidentes. Os sábios também falham. Quando o assunto é política, os sábios falham ainda mais.
E um desses sábios é Platão, o "pai espiritual" de Brennan (como Hélio Schwartsman escreveu com razão).
Depois de Atenas ter condenado à morte o seu mestre Sócrates; e depois da derrota traumática dos atenienses face a Esparta, Platão jogou a democracia no cesto dos regimes degenerados. Como é possível entregar os destinos da Cidade às paixões irracionais do povo?
A democracia só poderia ser corrigida pela emergência de um tirano que, após educação "epistocrática", talvez pudesse chegar ao trono do Rei-filósofo.
"A República" é um dos textos centrais da filosofia. Mas foi Aristóteles, discípulo de Platão, quem inaugurou as críticas à sua utopia.
Para dizer algo que, sem exagero, nunca mais foi esquecido na tradição democrática ocidental: a "pólis" precisa de saber equilibrar as paixões do povo com os interesses da elite.
Esse "regime misto", tão apreciado pelos romanos, encontrava-se no próprio funcionamento da República: os cônsules, os senadores e as assembleias populares, reunindo os elementos monárquico, aristocrático e democrático, permitiam que todas essas instituições se controlassem mutuamente.
Os "checks and balances" não nasceram com os Pais Fundadores dos Estados Unidos. Eles apenas aprenderam a lição com Políbio, Cícero e todos os seus herdeiros.
Hoje, as nossas democracias não são, ao contrário do que Jason Brennan acredita, regimes de "vontade geral" (para usar a sinistra expressão de Rousseau), em que as escolhas do povo são totais –e totalitárias.
Em qualquer democracia liberal civilizada, existem "elementos aristocráticos" (e epistocráticos) que complementam (e, claro, limitam) a mera vontade popular. Para ficarmos nos Estados Unidos, a existência de um Congresso bicameral ou de uma Suprema Corte são os melhores exemplos.
E, para lembrar Tocqueville, a existência de uma sociedade civil forte ou de uma mídia vigilante e livre também se assumem como "ilhas" independentes no meio da ignorância das massas.
Jason Brennan, para defender a sua proposta "epistocrática", apresenta uma versão de "democracia" que é uma caricatura das democracias liberais em que vivemos.
Alguém deveria informar esse "cientista político" que a democracia evoluiu muito desde Platão.
P.S. - Com as eleições americanas, a minha caixa de e-mail rebentou: havia leitores "conservadores" que se sentiam menos sós por eu não defender Trump; e havia leitores "conservadores" que me insultavam com vigor por eu não apoiar Trump.
O cenário divertiu-me porque revela um certo primitivismo no debate intelectual: para os fanáticos, a política não é uma conversa pluralista; é uma inquisição ideológica.
Na minha qualidade de herege, agradeço todos os insultos.
Eles são medalhas na lapela da minha liberdade.
Legislativo e Judiciário são corresponsáveis pela crise - EDITORIAL O GLOBO
O GLOBO - 15/11
Líderes dos três Poderes têm o dever de unir esforços para construir, juntos, uma saída emergencial para o estado. Cortar na própria carne é bom começo
Reportagem do GLOBO, no domingo, mostrou que Assembleia e o Tribunal de Justiça do Estado do Rio já custam ao bolso dos fluminenses até 70% mais do que o Legislativo e o Judiciário de São Paulo e de Minas Gerais.
Cada habitante do Estado do Rio desembolsou R$ 76,88 no ano passado para pagar os gastos dos 70 deputados estaduais com sua estrutura de organismos, mordomias (de carros de luxo aos selos postais) e séquitos de assessores bem remunerados.
Em São Paulo e em Minas, o custo do Legislativo por habitante foi bem menor: R$ 29,40 para os paulistas e R$ 55,64 para os mineiros.
O custo do Judiciário estadual também é muito significativo no Estado do Rio. Ano passado, cada habitante do território fluminense entregou R$ 126,07 para sustentar a máquina da Justiça estadual, também adepta de mordomias e vantagens multiplicadoras dos salários básicos. Pagou-se bem menos em Minas (R$ 72,62) e em São Paulo (R$ 75,87).
Paga-se muito pelo Legislativo e Judiciário fluminenses. São caros porque resultam em serviços legislativos e judiciários deficientes à comunidade. Basta acompanhar a rotina da atividade legislativa, ou verificar os indicadores sobre a morosidade das decisões judiciais no estado.
O custo alto e os padrões de ineficiência compõem parte do retrato da desorganização das contas públicas estaduais. O descontrole nas despesas desses dois Poderes é evidente e tem causa objetiva — o abuso na autonomia orçamentária, que precisa ser contido, revisto e revertido em médio prazo.
O peso do Legislativo e do Judiciário nas contas do Rio vem crescendo. A Assembleia e seu organismo de contas consumiram 1,61% do orçamento estadual em 2014. Em um ano, sua despesa aumentou para 1,93% do gasto público total. O custo do Tribunal de Justiça subiu de 4,61% em 2014 para 6%.
Gostem ou não os representantes desses Poderes, o fato é que eles são corresponsáveis pela crise de governança em que se esvaiu o erário estadual, deixando o estado em calamidade, com ameaça real aos serviços essenciais.
A crise não é obra exclusiva do Executivo. Um exemplo: 60% dos incentivos fiscais concedidos nos últimos anos, e hoje questionados, nasceram nos gabinetes e no plenário da Assembleia Legislativa, lembra o governador Luiz Fernando Pezão.
Os custos são eloquentes e absolutamente incompatíveis com a realidade de penúria. Não é mais possível sustentar um Legislativo de R$ 1,4 bilhão por ano, um Ministério Público de R$ 1,2 bilhão e um Judiciário de R$ 4,2 bilhões anuais.
Os líderes dos três Poderes têm o dever de unir esforços para construir, juntos, uma saída emergencial para o estado. Cortar na própria carne é bom começo.
Reportagem do GLOBO, no domingo, mostrou que Assembleia e o Tribunal de Justiça do Estado do Rio já custam ao bolso dos fluminenses até 70% mais do que o Legislativo e o Judiciário de São Paulo e de Minas Gerais.
Cada habitante do Estado do Rio desembolsou R$ 76,88 no ano passado para pagar os gastos dos 70 deputados estaduais com sua estrutura de organismos, mordomias (de carros de luxo aos selos postais) e séquitos de assessores bem remunerados.
Em São Paulo e em Minas, o custo do Legislativo por habitante foi bem menor: R$ 29,40 para os paulistas e R$ 55,64 para os mineiros.
O custo do Judiciário estadual também é muito significativo no Estado do Rio. Ano passado, cada habitante do território fluminense entregou R$ 126,07 para sustentar a máquina da Justiça estadual, também adepta de mordomias e vantagens multiplicadoras dos salários básicos. Pagou-se bem menos em Minas (R$ 72,62) e em São Paulo (R$ 75,87).
Paga-se muito pelo Legislativo e Judiciário fluminenses. São caros porque resultam em serviços legislativos e judiciários deficientes à comunidade. Basta acompanhar a rotina da atividade legislativa, ou verificar os indicadores sobre a morosidade das decisões judiciais no estado.
O custo alto e os padrões de ineficiência compõem parte do retrato da desorganização das contas públicas estaduais. O descontrole nas despesas desses dois Poderes é evidente e tem causa objetiva — o abuso na autonomia orçamentária, que precisa ser contido, revisto e revertido em médio prazo.
O peso do Legislativo e do Judiciário nas contas do Rio vem crescendo. A Assembleia e seu organismo de contas consumiram 1,61% do orçamento estadual em 2014. Em um ano, sua despesa aumentou para 1,93% do gasto público total. O custo do Tribunal de Justiça subiu de 4,61% em 2014 para 6%.
Gostem ou não os representantes desses Poderes, o fato é que eles são corresponsáveis pela crise de governança em que se esvaiu o erário estadual, deixando o estado em calamidade, com ameaça real aos serviços essenciais.
A crise não é obra exclusiva do Executivo. Um exemplo: 60% dos incentivos fiscais concedidos nos últimos anos, e hoje questionados, nasceram nos gabinetes e no plenário da Assembleia Legislativa, lembra o governador Luiz Fernando Pezão.
Os custos são eloquentes e absolutamente incompatíveis com a realidade de penúria. Não é mais possível sustentar um Legislativo de R$ 1,4 bilhão por ano, um Ministério Público de R$ 1,2 bilhão e um Judiciário de R$ 4,2 bilhões anuais.
Os líderes dos três Poderes têm o dever de unir esforços para construir, juntos, uma saída emergencial para o estado. Cortar na própria carne é bom começo.
Retrato do populismo petista - EDITORIAL ESTADÃO
ESTADÃO - 15/11
As eleições municipais demonstraram que os brasileiros estão desiludidos com esse populismo de esquerda campeão na promessa de “distribuição” da riqueza, mas absolutamente incompetente na tarefa de criá-la
A constatação da existência de irregularidades no pagamento do Bolsa Família a cerca de 1,1 milhão de famílias – o equivalente a 8% dos quase 14 milhões de famílias inscritas no programa – levou o governo a cancelar 469 mil benefícios e bloquear – até que as objeções levantadas sejam esclarecidas, num prazo de três meses – o saque de outras 654 mil contas em todo o País. Explicou o ministro Osmar Terra, do Desenvolvimento Social e Agrário, que não se trata de “corte ou economia de recursos, mas do necessário controle de gastos”. E acrescentou: “O objetivo é separar o joio do trigo. Quem realmente precisa vai continuar recebendo o benefício”.
Um pente-fino no Bolsa Família era indispensável diante das evidências de que os governos petistas, por criminosa negligência ou simples incompetência, haviam perdido o controle do programa. Há cerca de dois meses, no início de setembro, o governo Temer anunciara a decisão de fazer uma ampla varredura no cadastro do Bolsa Família, com a intenção de garantir que, depurado dos pagamentos que vinham sendo indevidamente feitos, o programa passasse a beneficiar um número maior de famílias realmente necessitadas de ajuda.
As irregularidades que agora começam a ser corrigidas foram apuradas mediante o cruzamento de informações de 6 bases distintas de dados: o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, o Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas, o Instituto Nacional do Seguro Social, o Sistema Integrado de Administração de Recursos Humanos, o Sistema de Controle de Óbitos e a Relação Anual de Informações Sociais.
A existência de mais de 1 milhão de benefícios suspeitos de estarem sendo concedidos indevidamente não é surpresa ao cabo de mais de uma década em que o Bolsa Família foi manipulado pelo lulopetismo como poderoso instrumento para a consolidação de seu projeto de poder. A história é conhecida, revelada anos atrás pelo ex-petista Hélio Bicudo, e remonta ao início do primeiro mandato de Lula, no momento em que o comando político do governo promovia a transformação do projeto original, Fome Zero, em Bolsa Família.
O Fome Zero era, mais do que um programa de transferência de renda, um amplo, complexo e dispendioso projeto de inclusão social que demandaria tempo para ser implantado e para produzir efeitos políticos. Em reunião no Palácio do Planalto, os responsáveis pelo Fome Zero, entre eles Hélio Bicudo, questionaram o então ministro José Dirceu, chefe da Casa Civil de Lula, a respeito da troca de um programa socialmente reestruturante que ambicionava promover uma transformação social, por outro que atingiria desde logo uma quantidade muito maior de beneficiários, mas praticamente se limitaria àquilo que o Fome Zero também previa: a transferência direta e mensal de uma “renda mínima”. A explicação do chefe da quadrilha do mensalão foi curta e grossa: “O Bolsa Família representa 40 milhões de votos”.
O Bolsa Família, de qualquer modo, cumpre o papel de prover minimamente necessidades materiais básicas, como a de ter o que comer, de uma população carente de outras fontes suficientes de recursos. Nem se trata de questionar, como ocorreu no passado dentro do próprio governo petista, a capacidade desse programa de abrir de fato a possibilidade de futura inclusão dos desvalidos na vida econômica do País. Mas é claro que, tendo sido o Bolsa Família concebido primordialmente para garantir ao lulopetismo um curral eleitoral de “40 milhões de votos”, durante os governos Lula e Dilma ninguém se preocupou para valer com o controle rigoroso dos cadastros. Daí aberrações como as reveladas agora, de que pelo menos 3 mil famílias beneficiárias do programa fizeram doações a campanhas eleitorais no pleito municipal.
A oposição sem voto já acusa o governo de promover “cortes” no Bolsa Família como prova de sua intenção de reduzir os investimentos sociais e, conforme o que está proposto na PEC do Teto de Gastos, “congelar” gastos na educação e na saúde. É um discurso fácil e mentiroso que tem, de qualquer modo, apelo emocional. Mas as eleições municipais demonstraram que os brasileiros estão desiludidos com esse populismo de esquerda campeão na promessa de “distribuição” da riqueza, mas absolutamente incompetente na tarefa de criá-la.
As eleições municipais demonstraram que os brasileiros estão desiludidos com esse populismo de esquerda campeão na promessa de “distribuição” da riqueza, mas absolutamente incompetente na tarefa de criá-la
A constatação da existência de irregularidades no pagamento do Bolsa Família a cerca de 1,1 milhão de famílias – o equivalente a 8% dos quase 14 milhões de famílias inscritas no programa – levou o governo a cancelar 469 mil benefícios e bloquear – até que as objeções levantadas sejam esclarecidas, num prazo de três meses – o saque de outras 654 mil contas em todo o País. Explicou o ministro Osmar Terra, do Desenvolvimento Social e Agrário, que não se trata de “corte ou economia de recursos, mas do necessário controle de gastos”. E acrescentou: “O objetivo é separar o joio do trigo. Quem realmente precisa vai continuar recebendo o benefício”.
Um pente-fino no Bolsa Família era indispensável diante das evidências de que os governos petistas, por criminosa negligência ou simples incompetência, haviam perdido o controle do programa. Há cerca de dois meses, no início de setembro, o governo Temer anunciara a decisão de fazer uma ampla varredura no cadastro do Bolsa Família, com a intenção de garantir que, depurado dos pagamentos que vinham sendo indevidamente feitos, o programa passasse a beneficiar um número maior de famílias realmente necessitadas de ajuda.
As irregularidades que agora começam a ser corrigidas foram apuradas mediante o cruzamento de informações de 6 bases distintas de dados: o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, o Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas, o Instituto Nacional do Seguro Social, o Sistema Integrado de Administração de Recursos Humanos, o Sistema de Controle de Óbitos e a Relação Anual de Informações Sociais.
A existência de mais de 1 milhão de benefícios suspeitos de estarem sendo concedidos indevidamente não é surpresa ao cabo de mais de uma década em que o Bolsa Família foi manipulado pelo lulopetismo como poderoso instrumento para a consolidação de seu projeto de poder. A história é conhecida, revelada anos atrás pelo ex-petista Hélio Bicudo, e remonta ao início do primeiro mandato de Lula, no momento em que o comando político do governo promovia a transformação do projeto original, Fome Zero, em Bolsa Família.
O Fome Zero era, mais do que um programa de transferência de renda, um amplo, complexo e dispendioso projeto de inclusão social que demandaria tempo para ser implantado e para produzir efeitos políticos. Em reunião no Palácio do Planalto, os responsáveis pelo Fome Zero, entre eles Hélio Bicudo, questionaram o então ministro José Dirceu, chefe da Casa Civil de Lula, a respeito da troca de um programa socialmente reestruturante que ambicionava promover uma transformação social, por outro que atingiria desde logo uma quantidade muito maior de beneficiários, mas praticamente se limitaria àquilo que o Fome Zero também previa: a transferência direta e mensal de uma “renda mínima”. A explicação do chefe da quadrilha do mensalão foi curta e grossa: “O Bolsa Família representa 40 milhões de votos”.
O Bolsa Família, de qualquer modo, cumpre o papel de prover minimamente necessidades materiais básicas, como a de ter o que comer, de uma população carente de outras fontes suficientes de recursos. Nem se trata de questionar, como ocorreu no passado dentro do próprio governo petista, a capacidade desse programa de abrir de fato a possibilidade de futura inclusão dos desvalidos na vida econômica do País. Mas é claro que, tendo sido o Bolsa Família concebido primordialmente para garantir ao lulopetismo um curral eleitoral de “40 milhões de votos”, durante os governos Lula e Dilma ninguém se preocupou para valer com o controle rigoroso dos cadastros. Daí aberrações como as reveladas agora, de que pelo menos 3 mil famílias beneficiárias do programa fizeram doações a campanhas eleitorais no pleito municipal.
A oposição sem voto já acusa o governo de promover “cortes” no Bolsa Família como prova de sua intenção de reduzir os investimentos sociais e, conforme o que está proposto na PEC do Teto de Gastos, “congelar” gastos na educação e na saúde. É um discurso fácil e mentiroso que tem, de qualquer modo, apelo emocional. Mas as eleições municipais demonstraram que os brasileiros estão desiludidos com esse populismo de esquerda campeão na promessa de “distribuição” da riqueza, mas absolutamente incompetente na tarefa de criá-la.
Remédio inevitável - EDITORIAL O GLOBO
O GLOBO - 14/11
O insolvente sistema previdenciário está no centro da crise do Rio de Janeiro — de resto, do Brasil —, como um dos fatores que conduzem à ingovernabilidade sugerida pelo governador Luiz Fernando Pezão. Mas o estado padece, ainda, de circunstâncias adicionais, que se somam para produzir o assustador quadro que hoje faz mergulhar poder público, população e instituições em agônica incerteza quanto aos desdobramentos que estão por vir.
Algumas particularidades extras são de origem, de certo modo, exógena, como recessão, desemprego, falência do setor público, derivados do continuado equívoco lulopetista na condução da política econômica do país. Adicione-se a isso uma tendência crônica de pressões sobre o Tesouro, ecoando no estado ações em permanente curso em nível federal, por corporações que buscam assegurar ou ampliar privilégios salariais incompatíveis com a realidade.
Outras, no entanto, foram fabricadas internamente, a mais grave delas, à exceção da Previdência, a caução de despesas fixas, em grande parte indexadas, em receitas extraordinárias, portanto não renováveis, ou voláteis (que não se realizaram, como as provenientes do pagamento de royalties do petróleo). Juntos, esses fatores formaram uma bomba-relógio, cujo ponteiro se aproxima perigosamente do ponto de explosão. É crucial desarmá-la, ao inevitável preço, vê-se agora, de medidas amargas.
Misturar nesse paiol a questão dos incentivos é um equívoco que não contribui para resolver a crise. Ao contrário, desfoca a discussão. A alegada renúncia fiscal do estado em favor de empresas é um benefício que visa a estimular a economia, via criação de empregos e aumento da produção, uma contrapartida exigida pelo poder público que se traduz positivamente em crescimento da renda e incremento do consumo em geral, devidamente tributado. Incentivos fiscais, portanto, ajudam na arrecadação. De resto, essa é uma demanda a ser enfrentada no âmbito das negociações sobre a guerra fiscal entre estados, por meio de uma ampla reforma tributária.
Da mesma forma, a equação da Previdência tem elementos comuns não só a todo o país, mas a praticamente todo o mundo, que enfrenta o dilema de ter uma população cuja expectativa de vida (felizmente) aumenta de forma quase exponencial, enquanto encolhem as fontes de financiamento que alimentam a seguridade.
O Rio está diante da inevitabilidade de ter de cortar gastos, reformar o sistema previdenciário, mexer com privilégios de corporações — enfim, de fazer, sob a sombra da bomba-relógio, a lição de casa que devia ter feito há muito tempo. A diferença é que, agora, não dá mais para estender o prazo, diante de uma questão imponderável: não há mais dinheiro para manter a folha de salários, cumprir obrigações financeiras e preservar ativos ao menos seus serviços essenciais. O remédio do pacote de contenção enviado pelo governador Pezão ao Legislativo pode ser amargo, mas sem ele o colapso do estado será inevitável, o que seria o pior dos mundos.
O insolvente sistema previdenciário está no centro da crise do Rio de Janeiro — de resto, do Brasil —, como um dos fatores que conduzem à ingovernabilidade sugerida pelo governador Luiz Fernando Pezão. Mas o estado padece, ainda, de circunstâncias adicionais, que se somam para produzir o assustador quadro que hoje faz mergulhar poder público, população e instituições em agônica incerteza quanto aos desdobramentos que estão por vir.
Algumas particularidades extras são de origem, de certo modo, exógena, como recessão, desemprego, falência do setor público, derivados do continuado equívoco lulopetista na condução da política econômica do país. Adicione-se a isso uma tendência crônica de pressões sobre o Tesouro, ecoando no estado ações em permanente curso em nível federal, por corporações que buscam assegurar ou ampliar privilégios salariais incompatíveis com a realidade.
Outras, no entanto, foram fabricadas internamente, a mais grave delas, à exceção da Previdência, a caução de despesas fixas, em grande parte indexadas, em receitas extraordinárias, portanto não renováveis, ou voláteis (que não se realizaram, como as provenientes do pagamento de royalties do petróleo). Juntos, esses fatores formaram uma bomba-relógio, cujo ponteiro se aproxima perigosamente do ponto de explosão. É crucial desarmá-la, ao inevitável preço, vê-se agora, de medidas amargas.
Misturar nesse paiol a questão dos incentivos é um equívoco que não contribui para resolver a crise. Ao contrário, desfoca a discussão. A alegada renúncia fiscal do estado em favor de empresas é um benefício que visa a estimular a economia, via criação de empregos e aumento da produção, uma contrapartida exigida pelo poder público que se traduz positivamente em crescimento da renda e incremento do consumo em geral, devidamente tributado. Incentivos fiscais, portanto, ajudam na arrecadação. De resto, essa é uma demanda a ser enfrentada no âmbito das negociações sobre a guerra fiscal entre estados, por meio de uma ampla reforma tributária.
Da mesma forma, a equação da Previdência tem elementos comuns não só a todo o país, mas a praticamente todo o mundo, que enfrenta o dilema de ter uma população cuja expectativa de vida (felizmente) aumenta de forma quase exponencial, enquanto encolhem as fontes de financiamento que alimentam a seguridade.
O Rio está diante da inevitabilidade de ter de cortar gastos, reformar o sistema previdenciário, mexer com privilégios de corporações — enfim, de fazer, sob a sombra da bomba-relógio, a lição de casa que devia ter feito há muito tempo. A diferença é que, agora, não dá mais para estender o prazo, diante de uma questão imponderável: não há mais dinheiro para manter a folha de salários, cumprir obrigações financeiras e preservar ativos ao menos seus serviços essenciais. O remédio do pacote de contenção enviado pelo governador Pezão ao Legislativo pode ser amargo, mas sem ele o colapso do estado será inevitável, o que seria o pior dos mundos.
Judiciário e Ministério Público formam nobreza da República - KIM KATAGUIRI
FOLHA DE SP - 15/11
15 de novembro. Proclamamos a República. Ainda assim, os brasileiros são obrigados a sustentar os luxos da nobreza composta pelo Judiciário e pelo Ministério Público.
Apesar dos mais de 11 milhões de desempregados e da dificuldade para pagar o salário de servidores públicos de Estados como o Rio Grande do Sul e o Rio de Janeiro, há magistrados inativos por aí que chegam a receber mais de R$ 200 mil de remuneração líquida em um mês, valor absurdamente maior do que o teto de R$ 33,7 mil. Somado a isso, temos um ex-presidente do STF, Ricardo Lewandowski, pregando em discursos dignos de verdadeiros líderes sindicais que juízes não devem ter vergonha de pedir aumento.
O pior é que os supersalários são regra, não exceção. Levantamento recente feito pelo portal "Gazeta Online" sobre os salários do Ministério Público do Espírito Santo mostrou que 99% – isso mesmo, 99% – dos procuradores de Justiça, promotores e promotores substitutos do órgão receberam salários acima do teto entre os meses de janeiro e setembro.
Por mais estarrecedor que isso seja, juízes e membros do MP argumentam que esses pagamentos extras não são ilegais por se trataram de "indenizações" e, portanto, não incidirem sobre o teto. A questão é que a Constituição –que está acima de todas as leis–, no artigo 37, incisivo XI, é clara ao dizer que a remuneração e o subsídio de servidores públicos "incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza (...) não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos ministros do Supremo Tribunal Federal".
Esse tipo de privilégio tem de acabar, especialmente em tempos de teto de gastos. Vale lembrar que todos esses supersalários são pagos com dinheiro de impostos e quem mais paga imposto no Brasil são os mais pobres. Trata-se da institucionalização da desigualdade social.
Nesse sentido, concordo –e isso raramente acontece– com a análise feita pelo ministro Roberto Barroso em entrevista para esta Folha. Juízes exercem, sim, um papel fundamental na democracia e devem ser bem pagos. Mas esse pagamento, como ele bem disse, deve ser transparente e sem privilégios. "Menos Estado, mais República".
Concordo, também, com a comissão criada por Renan Calheiros para analisar os supersalários de servidores de todos os três Poderes. Acredito que o nobre presidente do Congresso tenha motivações republicanas? É claro que não. O senador representa o que há de pior na política brasileira, o exato oposto daquilo que o Movimento Brasil Livre defende. Ainda assim, nessa atitude específica, é inegável que ele esteja fazendo a coisa certa. Ou alguém acha que se Calheiros defendesse a Lei da Gravidade, todas as coisas começariam a flutuar?
Uma República pressupõe Poderes justos, independentes e harmônicos. Quando uma elite privilegiada é sustentada pelos mais pobres, não há justiça, mas exploração.
O Judiciário tem de entender que, devido a mais de uma década de corrupção e incompetência, estamos numa crise. Não é justo que apenas os mais pobres paguem por ela.
domingo, novembro 13, 2016
Trump e a curva do Rio - FERNANDO GABEIRA
O Globo - 13/11
EUA e Rio mostram como o mundo pirou. O mundo não acabou, apenas ficou mais louco. Esta frase, de um dirigente alemão, é precisamente o que penso depois da vitória de Donald Trump. Mas, às vezes, sou tentado a revê-la quando olho o Rio de Janeiro, lugar onde moro, ameaçado pelo caos e pela anarquia. Todos se lembram do Brexit, o rompimento da Inglaterra com a comunidade europeia. Também ali, imprensa e pesquisa foram traídos pelas circunstâncias. Esperavam um resultado que não veio.
O que há de comum nas surpresas de Trump e do Brexit é a confiança na racionalidade inevitável da globalização. O filósofo John Gray escreveu muitas vezes sobre o tema. Para ele, o comunismo internacional e a expansão planetária do livre comércio são duas utopias nascidas do Iluminismo. Discordo apenas num detalhe: o livre comércio não se impõe à força, ninguém é obrigado a tomar Coca-Cola ou comprar tênis Nike.
Mas a verdade é que a globalização produziu perdedores nos países mais ricos e contribuiu para que alguns estados mais frágeis se dissolvessem em guerras fratricidas. As ondas de imigração levaram medo e inquietude. Na Inglaterra, temia-se pelo emprego e também pelos leitos de hospital e assistência médica.
Nos Estados Unidos, Trump denunciou acordos importantes como o Nafta e prometeu construir um muro na fronteira com o México. No seu discurso, um outro fator também aparece: o medo da desordem, da presença de criminosos que possam perturbar a paz americana, igualando o país a outros lugares caóticos do mundo.
Walt Whitman, num poema de 1855, dizia que os Estados Unidos é um país que não se representa por deputados, senadores, escritores ou mesmo inventores, e sim pelo homem comum. Durante quase toda a campanha, observando as entrevistas dos eleitores de Trump, não havia neles apenas o medo dos efeitos da globalização, mas também uma repulsa pelos políticos tradicionais. Alguns, mesmo discordando das bobagens que ele dizia, afirmavam: pelo menos é sincero, ao contrário dos profissionais. Outros mais exaltados gritavam abertamente para as câmeras: foda-se o politicamente correto.
A suposição de que o progresso triunfa sempre é um contrabando religioso na teoria política. A história não é linear. E talvez os formadores de opinião e pesquisadores tenham perdido o pé por acharem, equivocadamente, que o triunfo sempre estará ao lado do que consideramos certo. É preciso mais humildade, mais presença na vida das pessoas para compreender que a globalização produz ressentimentos e que muitos anseiam pelos “velhos e bons tempos” de sua experiência nacional.
O caso do Rio deveria ser tratado à parte. Mas é um estado falido, algo que também não é estranho à história mundial. O Haiti é aqui, já dizia, profeticamente, a canção de Caetano e Gil. Falavam da Bahia, mas o verso inicial é válido para todos: pensem no Haiti.
Uma grande contradição na falência do Rio é o fato de que os mesmos políticos que arrasaram o estado são os responsáveis para liderar sua reconstrução. A falta de legitimidade torna a tarefa quase impossível. Depois de tanta incompetência e corrupção, grande parte das pessoas gostariam de vêlos na cadeia, e não no comando do estado.
Eles não vão renunciar. Será preciso que a sociedade se movimente, sem quebradeiras, sem gritos, para que as coisas voltem à normalidade. Ela também se deixou levar pela febre do petróleo. Em 2010, quando disputei com Cabral, já era evidente o colapso do sistema de saúde, a corrupção assustadora. Naquele momento, percebi que muitos intelectuais, alguns amigos queridos, continuavam seduzidos por um governo que mascarava a incompetência e corrupção com os abundantes recursos do petróleo. A sedução não envolveu apenas intelectuais críticos, mas todo o establishment. Hoje, os manifestantes gritam Bolsonaro, quando invadem a Assembleia. Como são policiais, e a família Bolsonaro sempre apoiou a corporação, não significa ainda um sentimento mais amplo na sociedade carioca, embora Bolsonaro, pai e filho, já sejam campeões de voto.
Será preciso humildade para compreender o que se passa, independentemente de nossas projeções teóricas sobre futuros luminosos. A cidade maravilhosa, cosmopolita etc. já está nas mãos de um grupo cristão que tende, ao contrário do Velho Testamento, a defender não uma ética particular, mas um caminho que deva ser universalmente aceito.
A gravidade da crise no Rio, caso sobreviva à quadrilha que o governou, e caso a sociedade não se esforce para buscar soluções, pode nos levar a um tipo de dissolução que encha as ruas de fantasmas perambulando com suas cestas de pequeno comércio, gangues dominando amplos setores da cidade e, sobretudo, saída em massa para o interior, para outros estados, para fora do país.
Pensem no Haiti, diz a canção. Precisamos mais do que isso: pensar no Haiti e fazer algo para evitar o mesmo destino.
EUA e Rio mostram como o mundo pirou. O mundo não acabou, apenas ficou mais louco. Esta frase, de um dirigente alemão, é precisamente o que penso depois da vitória de Donald Trump. Mas, às vezes, sou tentado a revê-la quando olho o Rio de Janeiro, lugar onde moro, ameaçado pelo caos e pela anarquia. Todos se lembram do Brexit, o rompimento da Inglaterra com a comunidade europeia. Também ali, imprensa e pesquisa foram traídos pelas circunstâncias. Esperavam um resultado que não veio.
O que há de comum nas surpresas de Trump e do Brexit é a confiança na racionalidade inevitável da globalização. O filósofo John Gray escreveu muitas vezes sobre o tema. Para ele, o comunismo internacional e a expansão planetária do livre comércio são duas utopias nascidas do Iluminismo. Discordo apenas num detalhe: o livre comércio não se impõe à força, ninguém é obrigado a tomar Coca-Cola ou comprar tênis Nike.
Mas a verdade é que a globalização produziu perdedores nos países mais ricos e contribuiu para que alguns estados mais frágeis se dissolvessem em guerras fratricidas. As ondas de imigração levaram medo e inquietude. Na Inglaterra, temia-se pelo emprego e também pelos leitos de hospital e assistência médica.
Nos Estados Unidos, Trump denunciou acordos importantes como o Nafta e prometeu construir um muro na fronteira com o México. No seu discurso, um outro fator também aparece: o medo da desordem, da presença de criminosos que possam perturbar a paz americana, igualando o país a outros lugares caóticos do mundo.
Walt Whitman, num poema de 1855, dizia que os Estados Unidos é um país que não se representa por deputados, senadores, escritores ou mesmo inventores, e sim pelo homem comum. Durante quase toda a campanha, observando as entrevistas dos eleitores de Trump, não havia neles apenas o medo dos efeitos da globalização, mas também uma repulsa pelos políticos tradicionais. Alguns, mesmo discordando das bobagens que ele dizia, afirmavam: pelo menos é sincero, ao contrário dos profissionais. Outros mais exaltados gritavam abertamente para as câmeras: foda-se o politicamente correto.
A suposição de que o progresso triunfa sempre é um contrabando religioso na teoria política. A história não é linear. E talvez os formadores de opinião e pesquisadores tenham perdido o pé por acharem, equivocadamente, que o triunfo sempre estará ao lado do que consideramos certo. É preciso mais humildade, mais presença na vida das pessoas para compreender que a globalização produz ressentimentos e que muitos anseiam pelos “velhos e bons tempos” de sua experiência nacional.
O caso do Rio deveria ser tratado à parte. Mas é um estado falido, algo que também não é estranho à história mundial. O Haiti é aqui, já dizia, profeticamente, a canção de Caetano e Gil. Falavam da Bahia, mas o verso inicial é válido para todos: pensem no Haiti.
Uma grande contradição na falência do Rio é o fato de que os mesmos políticos que arrasaram o estado são os responsáveis para liderar sua reconstrução. A falta de legitimidade torna a tarefa quase impossível. Depois de tanta incompetência e corrupção, grande parte das pessoas gostariam de vêlos na cadeia, e não no comando do estado.
Eles não vão renunciar. Será preciso que a sociedade se movimente, sem quebradeiras, sem gritos, para que as coisas voltem à normalidade. Ela também se deixou levar pela febre do petróleo. Em 2010, quando disputei com Cabral, já era evidente o colapso do sistema de saúde, a corrupção assustadora. Naquele momento, percebi que muitos intelectuais, alguns amigos queridos, continuavam seduzidos por um governo que mascarava a incompetência e corrupção com os abundantes recursos do petróleo. A sedução não envolveu apenas intelectuais críticos, mas todo o establishment. Hoje, os manifestantes gritam Bolsonaro, quando invadem a Assembleia. Como são policiais, e a família Bolsonaro sempre apoiou a corporação, não significa ainda um sentimento mais amplo na sociedade carioca, embora Bolsonaro, pai e filho, já sejam campeões de voto.
Será preciso humildade para compreender o que se passa, independentemente de nossas projeções teóricas sobre futuros luminosos. A cidade maravilhosa, cosmopolita etc. já está nas mãos de um grupo cristão que tende, ao contrário do Velho Testamento, a defender não uma ética particular, mas um caminho que deva ser universalmente aceito.
A gravidade da crise no Rio, caso sobreviva à quadrilha que o governou, e caso a sociedade não se esforce para buscar soluções, pode nos levar a um tipo de dissolução que encha as ruas de fantasmas perambulando com suas cestas de pequeno comércio, gangues dominando amplos setores da cidade e, sobretudo, saída em massa para o interior, para outros estados, para fora do país.
Pensem no Haiti, diz a canção. Precisamos mais do que isso: pensar no Haiti e fazer algo para evitar o mesmo destino.
Problemas internos são muito piores que Trump - ROLF KUNTZ
O Estado de São Paulo -13/11
A primeira disputa entre o governo brasileiro e a administração do recém-eleito Donald Trump já está armada. Brasília começou na semana passada uma ação contra a nova barreira erguida nos Estados Unidos contra o aço fabricado no Brasil. A iniciativa foi do presidente Barack Obama, em mais uma tentativa de socorrer a enfraquecida siderurgia americana. O assunto ficará para o republicano, um autoproclamado protecionista. Se ele for fiel às promessas de campanha, poderá ir muito além de seu antecessor na criação de entraves ao comércio. Como candidato, anunciou até a disposição de rever acordos e de confrontar o sistema internacional de regras comerciais. Todos têm motivos para preocupação, mas no caso brasileiro é necessária uma ressalva. Barreiras no exterior são sempre ruins, ninguém pode negar, mas os principais obstáculos ao sucesso comercial das empresas brasileiras estão mesmo dentro do País.
Embora inquietante, o populismo protecionista do presidente eleito dos Estados Unidos é menos perigoso que as causas internas da baixa competitividade brasileira. Enfrentá-las deve ser prioridade do atual governo, com apenas mais dois anos de mandato, e de seu sucessor. Mesmo os setores e empresas mais competitivos do Brasil são prejudicados por um número enorme de problemas sistêmicos. A lista é fácil. Inclui pelo menos a infraestrutura deficiente, a tributação irracional, a burocracia excessiva, a insegurança jurídica, o peso de governo caro e improdutivo e, é claro, um dos piores sistemas educacionais do mundo emergente.
Não adianta confrontar as taxas nacionais de alfabetização de hoje com as de dez ou vinte anos atrás. As taxas podem ter melhorado, mas o analfabetismo funcional continua muito elevado. Pelos dados oficiais, deve estar pouco abaixo de 20% da população com idade a partir de 15 anos, mas os fatos observados no dia a dia parecem mostrar um quadro bem pior.
A formação oferecida até o curso médio é desastrosa, como comprovam, em primeiro lugar, as provas de redação zeradas no Enem. A mera perspectiva de provas com nota zero na redação é assustadora, mas esse é um dado rotineiro.
A catástrofe da educação fundamental é confirmada periodicamente nos testes internacionais. No mais famoso, o Pisa, mantido pela OCDE, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, os estudantes brasileiros têm ficado regularmente entre os dez últimos, num conjunto de 65. Quem ainda tiver dúvidas sobre o assunto poderá eliminálas consultando as associações industriais, como a CNI e a Fiesp, acerca da qualidade média da mão de obra encontrada no mercado.
No item educação primária, o Brasil ficou em 120.º lugar, pela qualidade, numa lista de 138 países, no último relatório de competitividade do Fórum Econômico Mundial, publicado em setembro. No quesito formação superior, o País ficou na 84.ª posição, no mesmo conjunto. Sempre no terço inferior, portanto, embora ainda seja uma das dez maiores economias, pelo tamanho do produto interno bruto (PIB).
Na classificação geral, o País caiu seis posições em um ano, passando ao 81.º lugar. A melhor colocação foi alcançada em 2012, quando o Brasil ocu- pou o 48.º posto. O recuo ocorreu muito rapidamente no primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff e ainda se acelerou na fase de recessão. As condições conjunturais pesaram na avaliação, mas os quesitos de longo prazo continuaram muito ruins. A educação é um exemplo importante, quando se trata de medir as desvantagens competitivas.
Mas a qualidade da administração, a inflação, o desarranjo fiscal, a segurança pública deficiente e as dificuldades para fazer negócios têm permanecido, ano após ano, como fatores de grande relevância. A lista de entraves aos negócios inclui tanto fatores institucionais, como a complicada regulação tributária, quanto – digamos – in- formais, como a corrupção. O combate à corrupção é elogiado, mas o problema permaneceu com destaque na lista dos entraves mencionados nas entrevistas da pesquisa.
A administração pública deficiente e o estado precário das finanças oficiais aparecem de forma recorrente nas pesquisas de competitividade, assim como os impostos pesados e de baixa qualidade e a complicada regulamentação tributária. O ajuste contábil das contas públicas é, portanto, apenas uma das tarefas necessárias, na área fiscal, para tornar a economia brasileira um pouco mais eficiente.
É preciso levar em conta, nesse tópico, uma agenda muito mais ambiciosa e politicamente complicada. Uma reforma tributária razoável deverá envolver o ICMS, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços, cobrado pelos governos estaduais. Não bastará eliminar a guerra fiscal entre Estados. Será preciso, também, livrar totalmente as exportações e os investimentos produtivos do peso dos tributos. Será preciso negociar o assunto com 27 governadores.
No dia a dia, fala-se muito do câmbio quando se trata de competitividade, mas pouco se discutem os fatores estruturais, como sistema tributário, educação, pesquisa e tecnologia, eficiência do governo, inflação controlada e estabilidade fiscal. São fatores como esses as principais vantagens das economias mais competitivas e com maior potencial de geração de empregos.
Políticas industriais voluntaristas, baseadas no protecionismo e na distribuição de benefícios a grupos e setores, tendem a fracassar e – pior – produzir desastres. A Organização Mundial do Comércio (OMC) acaba de condenar políticas desse tipo, exploradas amplamente pelo governo anterior. A condenação nem é o pior detalhe dessa história. Pior foi o fracasso, acompanhado de custos fiscais e financeiros enormes e de uma recessão com 12 milhões de desempregados. Trump pode ser um perigo, mas nem de longe comparável com os problemas made in Brazil.
Mesmo sem barreiras no exterior o Brasil já tem um poder de competição muito baixo
A primeira disputa entre o governo brasileiro e a administração do recém-eleito Donald Trump já está armada. Brasília começou na semana passada uma ação contra a nova barreira erguida nos Estados Unidos contra o aço fabricado no Brasil. A iniciativa foi do presidente Barack Obama, em mais uma tentativa de socorrer a enfraquecida siderurgia americana. O assunto ficará para o republicano, um autoproclamado protecionista. Se ele for fiel às promessas de campanha, poderá ir muito além de seu antecessor na criação de entraves ao comércio. Como candidato, anunciou até a disposição de rever acordos e de confrontar o sistema internacional de regras comerciais. Todos têm motivos para preocupação, mas no caso brasileiro é necessária uma ressalva. Barreiras no exterior são sempre ruins, ninguém pode negar, mas os principais obstáculos ao sucesso comercial das empresas brasileiras estão mesmo dentro do País.
Embora inquietante, o populismo protecionista do presidente eleito dos Estados Unidos é menos perigoso que as causas internas da baixa competitividade brasileira. Enfrentá-las deve ser prioridade do atual governo, com apenas mais dois anos de mandato, e de seu sucessor. Mesmo os setores e empresas mais competitivos do Brasil são prejudicados por um número enorme de problemas sistêmicos. A lista é fácil. Inclui pelo menos a infraestrutura deficiente, a tributação irracional, a burocracia excessiva, a insegurança jurídica, o peso de governo caro e improdutivo e, é claro, um dos piores sistemas educacionais do mundo emergente.
Não adianta confrontar as taxas nacionais de alfabetização de hoje com as de dez ou vinte anos atrás. As taxas podem ter melhorado, mas o analfabetismo funcional continua muito elevado. Pelos dados oficiais, deve estar pouco abaixo de 20% da população com idade a partir de 15 anos, mas os fatos observados no dia a dia parecem mostrar um quadro bem pior.
A formação oferecida até o curso médio é desastrosa, como comprovam, em primeiro lugar, as provas de redação zeradas no Enem. A mera perspectiva de provas com nota zero na redação é assustadora, mas esse é um dado rotineiro.
A catástrofe da educação fundamental é confirmada periodicamente nos testes internacionais. No mais famoso, o Pisa, mantido pela OCDE, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, os estudantes brasileiros têm ficado regularmente entre os dez últimos, num conjunto de 65. Quem ainda tiver dúvidas sobre o assunto poderá eliminálas consultando as associações industriais, como a CNI e a Fiesp, acerca da qualidade média da mão de obra encontrada no mercado.
No item educação primária, o Brasil ficou em 120.º lugar, pela qualidade, numa lista de 138 países, no último relatório de competitividade do Fórum Econômico Mundial, publicado em setembro. No quesito formação superior, o País ficou na 84.ª posição, no mesmo conjunto. Sempre no terço inferior, portanto, embora ainda seja uma das dez maiores economias, pelo tamanho do produto interno bruto (PIB).
Na classificação geral, o País caiu seis posições em um ano, passando ao 81.º lugar. A melhor colocação foi alcançada em 2012, quando o Brasil ocu- pou o 48.º posto. O recuo ocorreu muito rapidamente no primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff e ainda se acelerou na fase de recessão. As condições conjunturais pesaram na avaliação, mas os quesitos de longo prazo continuaram muito ruins. A educação é um exemplo importante, quando se trata de medir as desvantagens competitivas.
Mas a qualidade da administração, a inflação, o desarranjo fiscal, a segurança pública deficiente e as dificuldades para fazer negócios têm permanecido, ano após ano, como fatores de grande relevância. A lista de entraves aos negócios inclui tanto fatores institucionais, como a complicada regulação tributária, quanto – digamos – in- formais, como a corrupção. O combate à corrupção é elogiado, mas o problema permaneceu com destaque na lista dos entraves mencionados nas entrevistas da pesquisa.
A administração pública deficiente e o estado precário das finanças oficiais aparecem de forma recorrente nas pesquisas de competitividade, assim como os impostos pesados e de baixa qualidade e a complicada regulamentação tributária. O ajuste contábil das contas públicas é, portanto, apenas uma das tarefas necessárias, na área fiscal, para tornar a economia brasileira um pouco mais eficiente.
É preciso levar em conta, nesse tópico, uma agenda muito mais ambiciosa e politicamente complicada. Uma reforma tributária razoável deverá envolver o ICMS, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços, cobrado pelos governos estaduais. Não bastará eliminar a guerra fiscal entre Estados. Será preciso, também, livrar totalmente as exportações e os investimentos produtivos do peso dos tributos. Será preciso negociar o assunto com 27 governadores.
No dia a dia, fala-se muito do câmbio quando se trata de competitividade, mas pouco se discutem os fatores estruturais, como sistema tributário, educação, pesquisa e tecnologia, eficiência do governo, inflação controlada e estabilidade fiscal. São fatores como esses as principais vantagens das economias mais competitivas e com maior potencial de geração de empregos.
Políticas industriais voluntaristas, baseadas no protecionismo e na distribuição de benefícios a grupos e setores, tendem a fracassar e – pior – produzir desastres. A Organização Mundial do Comércio (OMC) acaba de condenar políticas desse tipo, exploradas amplamente pelo governo anterior. A condenação nem é o pior detalhe dessa história. Pior foi o fracasso, acompanhado de custos fiscais e financeiros enormes e de uma recessão com 12 milhões de desempregados. Trump pode ser um perigo, mas nem de longe comparável com os problemas made in Brazil.
Mesmo sem barreiras no exterior o Brasil já tem um poder de competição muito baixo
Responsabilidade é premissa - EDITORIAL ESTADÃO
ESTADÃO - 13/11
Há quem propague a equivocada ideia de que a responsabilidade fiscal seria uma opção ideológica de direita
Em recente palestra, proferida em Brasília, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso fez uma importante defesa da responsabilidade fiscal. “Eu considero que responsabilidade fiscal é uma premissa das economias saudáveis”, afirmou Barroso.
“A Lei de Responsabilidade Fiscal é um avanço porque diz o óbvio: não se pode gastar mais do que se arrecada e se endividar sem limites”, continuou o ministro. Certamente, um governo gastar mais do que arrecada é incompatível com um desenvolvimento econômico minimamente sustentável - e isso é um dado óbvio da vida econômica de qualquer país. No entanto, nos tempos que correm, com alguns partidos políticos insistindo em não ver os deletérios efeitos da irresponsabilidade fiscal e ainda posando de defensores do povo e dos avanços sociais, é muito bem-vinda a enfática defesa da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Infelizmente, ainda há quem queira tirar proveito político da ignorância de parte da população e propague a equivocada ideia de que a responsabilidade fiscal seria uma opção ideológica de direita, para defender supostos interesses da elite econômica, como parte do “projeto neoliberal”. Como lembrou o ministro Barroso na mencionada palestra, não há responsabilidade fiscal de esquerda ou de direita.
As opções ideológicas podem e devem orientar as prioridades orçamentárias de cada governo, mas os gastos - sejam eles quais forem - devem necessariamente se sujeitar às receitas obtidas. É simplesmente inviável um governo contratar gastos públicos ignorando se há ou não recursos disponíveis. Em outras palavras, a responsabilidade fiscal não é - não deve ser - uma opção política. Ela é - deve ser - a premissa de toda e qualquer política econômica.
Promovem um grande mal ao País as pessoas e grupos políticos que difundem, por exemplo, a equivocada ideia de que é possível - e não causa efeitos colaterais - gastar mais do que se arrecada, ou ainda que a responsabilidade fiscal é um tema de interesse apenas dos ricos. Esse tipo de mensagem desinforma a população.
Na prática, constitui mentira com alto custo social. Basta ver a realidade econômica do País depois de anos de irresponsabilidade lulopetista: o desequilíbrio fiscal gerou perversos efeitos para a população, especialmente para as classes mais pobres, justamente aquelas que o discurso populista da irresponsabilidade fiscal prometia defender.
É fácil difundir que a PEC do Teto dos Gastos - que tenta colocar um mínimo de racionalidade nas finanças públicas, limitando o crescimento das despesas da União à variação da inflação do ano anterior - é a “PEC da Maldade, que prejudica os mais pobres”. Não é nada fácil, porém, desbastar a inflação que corrói a renda do trabalhador. Não é nada fácil trazer os juros para patamares civilizados sem provocar danos ainda mais sérios à economia. E todas essas distorções se devem ao descontrole dos gastos.
Se alguma serventia teve a passagem de Dilma Rousseff pela Presidência da República, foi a de colocar em evidência - sem qualquer margem para dúvida - o fato de que a realidade, também a econômica, tem suas regras e desprezá-las importa em enorme custo, também social. Quando um governo gasta mais do que tem, como insistiu teimosamente em fazer Dilma Rousseff, ele arruína a economia e, consequentemente, a vida social de todo o País.
Só faltava que, depois de toda a crise vivenciada pelos brasileiros, ainda houvesse quem defendesse a irresponsabilidade fiscal. Mas há. Por isso, é muito conveniente a célere aprovação pelo Senado da PEC do Teto.
Adequar os gastos públicos às receitas não é uma questão ideológica, e a irresponsabilidade não é uma opção. A política é território livre para o debate de ideias, mas isso não a transforma, como alguns desejam, em campo para a irresponsabilidade. Afinal, também faz parte da democracia assumir as consequências de suas posições. A isso se dá o nome de responsabilidade.
Há quem propague a equivocada ideia de que a responsabilidade fiscal seria uma opção ideológica de direita
Em recente palestra, proferida em Brasília, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso fez uma importante defesa da responsabilidade fiscal. “Eu considero que responsabilidade fiscal é uma premissa das economias saudáveis”, afirmou Barroso.
“A Lei de Responsabilidade Fiscal é um avanço porque diz o óbvio: não se pode gastar mais do que se arrecada e se endividar sem limites”, continuou o ministro. Certamente, um governo gastar mais do que arrecada é incompatível com um desenvolvimento econômico minimamente sustentável - e isso é um dado óbvio da vida econômica de qualquer país. No entanto, nos tempos que correm, com alguns partidos políticos insistindo em não ver os deletérios efeitos da irresponsabilidade fiscal e ainda posando de defensores do povo e dos avanços sociais, é muito bem-vinda a enfática defesa da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Infelizmente, ainda há quem queira tirar proveito político da ignorância de parte da população e propague a equivocada ideia de que a responsabilidade fiscal seria uma opção ideológica de direita, para defender supostos interesses da elite econômica, como parte do “projeto neoliberal”. Como lembrou o ministro Barroso na mencionada palestra, não há responsabilidade fiscal de esquerda ou de direita.
As opções ideológicas podem e devem orientar as prioridades orçamentárias de cada governo, mas os gastos - sejam eles quais forem - devem necessariamente se sujeitar às receitas obtidas. É simplesmente inviável um governo contratar gastos públicos ignorando se há ou não recursos disponíveis. Em outras palavras, a responsabilidade fiscal não é - não deve ser - uma opção política. Ela é - deve ser - a premissa de toda e qualquer política econômica.
Promovem um grande mal ao País as pessoas e grupos políticos que difundem, por exemplo, a equivocada ideia de que é possível - e não causa efeitos colaterais - gastar mais do que se arrecada, ou ainda que a responsabilidade fiscal é um tema de interesse apenas dos ricos. Esse tipo de mensagem desinforma a população.
Na prática, constitui mentira com alto custo social. Basta ver a realidade econômica do País depois de anos de irresponsabilidade lulopetista: o desequilíbrio fiscal gerou perversos efeitos para a população, especialmente para as classes mais pobres, justamente aquelas que o discurso populista da irresponsabilidade fiscal prometia defender.
É fácil difundir que a PEC do Teto dos Gastos - que tenta colocar um mínimo de racionalidade nas finanças públicas, limitando o crescimento das despesas da União à variação da inflação do ano anterior - é a “PEC da Maldade, que prejudica os mais pobres”. Não é nada fácil, porém, desbastar a inflação que corrói a renda do trabalhador. Não é nada fácil trazer os juros para patamares civilizados sem provocar danos ainda mais sérios à economia. E todas essas distorções se devem ao descontrole dos gastos.
Se alguma serventia teve a passagem de Dilma Rousseff pela Presidência da República, foi a de colocar em evidência - sem qualquer margem para dúvida - o fato de que a realidade, também a econômica, tem suas regras e desprezá-las importa em enorme custo, também social. Quando um governo gasta mais do que tem, como insistiu teimosamente em fazer Dilma Rousseff, ele arruína a economia e, consequentemente, a vida social de todo o País.
Só faltava que, depois de toda a crise vivenciada pelos brasileiros, ainda houvesse quem defendesse a irresponsabilidade fiscal. Mas há. Por isso, é muito conveniente a célere aprovação pelo Senado da PEC do Teto.
Adequar os gastos públicos às receitas não é uma questão ideológica, e a irresponsabilidade não é uma opção. A política é território livre para o debate de ideias, mas isso não a transforma, como alguns desejam, em campo para a irresponsabilidade. Afinal, também faz parte da democracia assumir as consequências de suas posições. A isso se dá o nome de responsabilidade.
Como na Grécia - MERVAL PEREIRA
O Globo - 13/11
Estamos chegando a um ponto crítico que nos aproxima da Grécia A ressalva do governador do Rio de que a União só poderá ajudar os governos em dificuldades financeiras se fizer ele mesmo seu ajuste fiscal, iniciado com o pacote de teto de gastos, é uma demonstração de que estamos chegando num ponto crítico que nos aproxima mais da Grécia, que quebrou antes de iniciar seu programa de ajustes para continuar na União Europeia, do que dos poucos países que já conseguiram sair da crise que o mundo enfrenta desde 2008.
A“marolinha” prevista pelo ex-presidente Lula transformou-se em um tsunami, e não apenas pelos efeitos da crise internacional. Ao contrário, nós conseguimos piorar as coisas com nossas mazelas internas, potencializando uma crise que originalmente já era muito difícil de enfrentar.
A escolha dos últimos 13 anos foi fazer um governo popular, em vez de corrigir os defeitos que vinham se acumulando ao longo do tempo. Controlar a inflação foi um grande feito com o Plano Real, mas necessitávamos de uma série de reformas estruturais para recolocar o país nos trilhos, que começaram com a reforma da Previdência, incompleta nos oito anos do governo Fernando Henrique.
A fixação da idade mínima para a aposentadoria já poderia ter sido aprovada, mas por um desses azares da sorte o governo perdeu por um voto, e justamente o de um aliado. O ex-ministro Antonio Kandir se absteve, depois alegou que se enganara e não conseguiu retificar o voto. Podíamos ter resolvido essa questão em 1998, há quase 20 anos.
O ex-presidente Lula assumiu o governo na sucessão de Fernando Henrique desejando seguir a política reformista, e começou pela Previdência. Teve tantas dificuldades para aprovar um sistema de fundos de previdência para os servidores públicos, teve que enfrentar os sindicatos, e preferiu ficar com suas corporações a levar adiante as reformas, que incluíam até mesmo a trabalhista.
Não regulamentou a medida, deixando-a guardada no fundo de sua gaveta presidencial. Somente em 2012 a presidente Dilma Rousseff regulamentou a criação da Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal do Poder Executivo (Funpresp-Exe), o regime de previdência complementar de servidores públicos civis.
A Funpresp tem a participação apenas de novos funcionários que ingressaram no serviço público depois de sua regulamentação, os funcionários públicos da época continuaram a ter direito de se aposentar com salário integral. Já os novos estão sujeitos a um teto e, para complementarem o valor, contribuem com a Funpresp.
Hoje estamos de volta ao passado, tentando mais uma vez aprovar um limite de idade para a aposentadoria, e unificar o sistema para que tenha um mínimo de racionalidade. A situação econômica está encaminhada com a disposição do governo Temer de aprovar as reformas, mas a teoria tem que se tornar realidade para que a recuperação aconteça de fato.
Com as idas e vindas no Congresso, e a espada da Operação Lava-Jato sobre a cabeça de grande parte dos políticos, inclusive vários no núcleo duro do Palácio do Planalto, a incerteza provoca oscilações na economia, e a previsão de crescimento do PIB já está recuando mais uma vez.
É preciso que os estados e municípios, na maioria quebrados, entendam que não poderão contar com a ajuda federal se não houver perspectiva de melhoria, e é essa a mensagem que o governador Pezão transmitiu, depois de falar com o presidente Temer: se as bancadas estaduais no Congresso não ajudarem a aprovar o limite de gastos e a reforma da Previdência, não há como o governo federal ajudar os estados.
Simples assim. Ou viramos uma Grécia, que só começou a fazer as reformas exigidas pela União Européia depois de literalmente quebrar. E mesmo assim continua em convulsão, com parte da população e dos políticos tentando barrar as mudanças previdenciárias.
Estamos chegando a um ponto crítico que nos aproxima da Grécia A ressalva do governador do Rio de que a União só poderá ajudar os governos em dificuldades financeiras se fizer ele mesmo seu ajuste fiscal, iniciado com o pacote de teto de gastos, é uma demonstração de que estamos chegando num ponto crítico que nos aproxima mais da Grécia, que quebrou antes de iniciar seu programa de ajustes para continuar na União Europeia, do que dos poucos países que já conseguiram sair da crise que o mundo enfrenta desde 2008.
A“marolinha” prevista pelo ex-presidente Lula transformou-se em um tsunami, e não apenas pelos efeitos da crise internacional. Ao contrário, nós conseguimos piorar as coisas com nossas mazelas internas, potencializando uma crise que originalmente já era muito difícil de enfrentar.
A escolha dos últimos 13 anos foi fazer um governo popular, em vez de corrigir os defeitos que vinham se acumulando ao longo do tempo. Controlar a inflação foi um grande feito com o Plano Real, mas necessitávamos de uma série de reformas estruturais para recolocar o país nos trilhos, que começaram com a reforma da Previdência, incompleta nos oito anos do governo Fernando Henrique.
A fixação da idade mínima para a aposentadoria já poderia ter sido aprovada, mas por um desses azares da sorte o governo perdeu por um voto, e justamente o de um aliado. O ex-ministro Antonio Kandir se absteve, depois alegou que se enganara e não conseguiu retificar o voto. Podíamos ter resolvido essa questão em 1998, há quase 20 anos.
O ex-presidente Lula assumiu o governo na sucessão de Fernando Henrique desejando seguir a política reformista, e começou pela Previdência. Teve tantas dificuldades para aprovar um sistema de fundos de previdência para os servidores públicos, teve que enfrentar os sindicatos, e preferiu ficar com suas corporações a levar adiante as reformas, que incluíam até mesmo a trabalhista.
Não regulamentou a medida, deixando-a guardada no fundo de sua gaveta presidencial. Somente em 2012 a presidente Dilma Rousseff regulamentou a criação da Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal do Poder Executivo (Funpresp-Exe), o regime de previdência complementar de servidores públicos civis.
A Funpresp tem a participação apenas de novos funcionários que ingressaram no serviço público depois de sua regulamentação, os funcionários públicos da época continuaram a ter direito de se aposentar com salário integral. Já os novos estão sujeitos a um teto e, para complementarem o valor, contribuem com a Funpresp.
Hoje estamos de volta ao passado, tentando mais uma vez aprovar um limite de idade para a aposentadoria, e unificar o sistema para que tenha um mínimo de racionalidade. A situação econômica está encaminhada com a disposição do governo Temer de aprovar as reformas, mas a teoria tem que se tornar realidade para que a recuperação aconteça de fato.
Com as idas e vindas no Congresso, e a espada da Operação Lava-Jato sobre a cabeça de grande parte dos políticos, inclusive vários no núcleo duro do Palácio do Planalto, a incerteza provoca oscilações na economia, e a previsão de crescimento do PIB já está recuando mais uma vez.
É preciso que os estados e municípios, na maioria quebrados, entendam que não poderão contar com a ajuda federal se não houver perspectiva de melhoria, e é essa a mensagem que o governador Pezão transmitiu, depois de falar com o presidente Temer: se as bancadas estaduais no Congresso não ajudarem a aprovar o limite de gastos e a reforma da Previdência, não há como o governo federal ajudar os estados.
Simples assim. Ou viramos uma Grécia, que só começou a fazer as reformas exigidas pela União Européia depois de literalmente quebrar. E mesmo assim continua em convulsão, com parte da população e dos políticos tentando barrar as mudanças previdenciárias.
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