sábado, janeiro 22, 2022

A última dança - GUSTAVO POLI

O GLOBO - 22/01

Desde 2019, Arrascaeta, Everton Ribeiro, Bruno Henrique e Gabigol são sinônimo do melhor futebol praticado no país


Arrascaeta, Everton Ribeiro, Bruno Henrique e Gabigol Foto: Alexandre Vidal / Flamengo


O fantástico “Get Back”, documentário de Peter Jackson sobre os Beatles, termina com o famoso show do quarteto no terraço da gravadora Apple. No asfalto da Londres de 1969, pedestres e transeuntes olham pra cima em busca de um rock and roll que não sabem de onde vem. Ninguém sabe direito o que está acontecendo. O que acontecia era apenas a última apresentação dos Fab Four de Liverpool. John, Paul, George e Ringo jamais tocariam juntos ao vivo de novo.

A apreciação do momento histórico é um prazer de difícil fruição. Raramente temos a percepção de viver o instante espetacular. Em geral, só percebemos ter vivido algo atemporal anos depois. Faço esse preâmbulo todo porque — com o perdão da heresia — me lembrei de um quarteto que corre o risco de fazer sua última turnê em 2022.

Desde 2019, quando Jorge Jesus ajeitou a partitura, Arrascaeta, Everton Ribeiro, Bruno Henrique e Gabigol são sinônimo do melhor futebol praticado no país. Tudo bem que 2021 terminou mal. Problemas físicos, convocações e desacertos levaram o Flamengo a perder Brasileirão, Libertadores e Copa do Brasil. E hoje já há quem diga que Paulo Sousa, o novo treinador luso, curte Pedro e pode querer encaixá-lo no onze titular.

Será? É possível — Pedro é ótimo jogador. E, se for assim, talvez a era já tenha terminado. E daqui a 20, 30 anos... streamers farão reacts, vídeos ou hologramas sólidos no metaverso para lembrar dos quatro do Urubu. Faz parte — bandas se separam, o futebol é dinâmico. Mas a torcida aqui é para que Giorgian, Gabriel, Bruno e Everton tenham uma última dança. Afinal, o que eles fizeram nos últimos três anos, especialmente em 2019 e 2020, merece toda sorte de aplauso.

Foi com eles, e por causa deles, que Jesus conseguiu encaixar a pressão ofensiva pós-perda que revolucionou o ludopédio tupi. Foi com eles, e por causa deles, que o Flamengo se transformou no melhor time da década brasileira. Arrascaeta é um gênio de pequenos espaços, que prestidigita mais do que joga. Everton é um cruzamento de formiga com cigarra, um operário criativo. Bruno Henrique, um furacão de intuição impressionante. Gabigol, artilheiro frio e ao mesmo tempo passional, une carisma a uma rara percepção de jogo (repare o leitor como ele raramente fica impedido). Individualmente são ótimos — mas juntos entram no proverbial outro patamar do filósofo BH.

Os Beatles continuaram produzindo beleza quando separados, mas não chegaram perto do que fizeram em grupo. O mesmo vale para os quatro rubro-negros que, em vidas separadas, chegaram a brilhar entre Cruzeiro e Santos, mas nada parecido com os discos de ouro que ganharam no Flamengo: três estaduais, dois brasileiros, uma Recopa, uma Supercopa e uma Libertadores.

Toda analogia que envolva o quarteto de Liverpool carrega um misto de heresia com hipérbole. Claro, a genialidade no campo de futebol é de outra natureza — e se fossemos pensar em hierarquia os Beatles só seriam comparáveis a algo como a Laranja de Cruyff ou à Seleção de 70. Mas não importa se Arrasca, Gabigol, BH e Everton são Beatles, Paralamas, Oasis ou Nação Zumbi. Importa a chance de apreciar talento histórico em tempo real.

Até porque um dia, adaptando as palavras de um certo beatle, o sonho vai acabar.

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