Sob Jair Bolsonaro, o Palácio do Planalto especializou-se na produção de crises. Mas o presidente enxergou na pandemia uma oportunidade para diversificar as atividades do seu governo. Instalou ao lado do departamento de crises uma seção de maquiagem. Ideia de gênio. Num setor, magnifica-se o flagelo sanitário. Noutro, ajeitam-se as estatísticas para sumir com um pedaço da pilha de mais de 35 mil cadáveres.
Estava entendido que, no Brasil, um país onde o sujeito "mergulha no esgoto e não pega nada", a crise do coronavírus não passaria de uma "gripezinha". Quando parecia que estava tudo bem —a PF dominada, um engavetador na PGR, o centrão na retaguarda, a pandemia no colo dos governadores, o Weintraub cuidando do circo, a boiada do Salles passando—, surgiram os cadáveres.
Num cenário em que a crise sanitária era "histeria" da imprensa, não havia espaço para mortos. Mas eles passaram a existir. Se existissem em pequena quantidade, seriam toleráveis. O problema é que começaram a existir em grande número, um acinte. A coisa foi longe demais.
Num claro desafio à autoridade presidencial, os cadáveres saltaram das planilhas eletrônicas de secretarias de Saúde dos estados para os formulários padronizados do governo federal. Dezenas de milhares de mortos invadiram as estatísticas compiladas pelo Ministério da Saúde. Em muitos casos, a invasão ocorria de tocaia, antes das 19h.
Finalmente, os mortos deixaram de lado qualquer escrúpulo. Cometeram um crime imperdoável: viraram notícia. Foram pendurados em tempo real nos portais da internet. O Jornal Nacional despejou-os no tapete da sala. Surgiram na mesa do café da manhã, pendurados de ponta-cabeça nas manchetes. Eles estão em toda parte —no celular, no rádio, na TV, nos jornais, defronte da janela.
A conjuntura cobrava uma reação. Até o amigo Donald Trump passou a achincalhar o Brasil. A criação do departamento de maquiagem tornou-se algo imperativo. A iniciativa é tão extraordinária que não pode ficar restrita à área da Saúde. Já imaginou que país maravilhoso seria o Brasil se um surto de camuflagem se abatesse sobre as estatísticas nacionais?
Não se pode limitar os retoques à contagem dos cadáveres incômodos. A experiência deve ser estendida a todos os setores. É preciso restaurar o direito do brasileiro ao otimismo. A pandemia trouxe à luz problemas que todos fingiam não existir. A desigualdade social, por exemplo. De resto, o vírus agravou a ruína econômica.
Com um bom programa de camuflagem, miseráveis e desempregados podem ser reintegrados à paisagem, deixando de saltar aos olhos. Pode-se estudar —atenção, general Braga Netto, um grupo de trabalho, rápido— a criação de um programa inovador, o Bolsa Maquiagem.
Todos os brasileiros receberiam um kit de maquiagem. Conteria base branca para tingir o rosto, batom para a pintar uma boca engraçada e uma bola vermelha para realçar o nariz. Por último, o Gabinete do Ódio se encarregaria de difundir nas suas redes antissociais uma hashtag: #somostodospalhacos.
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