quarta-feira, maio 13, 2020

Que Mello divulgue vídeo inteiro. Há algo mais sério do que eventual crime - REINALDO AZEVEDO

UOL - 13/05


O ministro Celso de Mello, relator do inquérito que investiga se o presidente Jair Bolsonaro mudou o comando da Polícia Federal em razão de interesses políticos e pessoais, deu 48 horas para que a Procuradoria Geral da República, a Advocacia Geral da União e a defesa de Sergio Moro se manifestem sobre a divulgação total ou parcial do vídeo com a reunião ministerial do dia 22 de abril. Que seja liberado. Há lá algo até mais importante do que o eventual crime cometido pelo presidente.

A defesa de Moro e o próprio ex-juiz já se manifestaram. Querem a divulgação na íntegra. Para Rodrigo Sánchez Rios, que representa o ex-juiz, a gravação confirma as declarações de seu cliente no pronunciamento público e no depoimento prestado à PF. Assim, o vídeo deixaria claro, então, que foi pressionado a fazer as mudanças na Polícia Federal.

Bem, isso o próprio Bolsonaro admitiu no dia mesmo da demissão de Moro. O xis da questão é outro: Bolsonaro explicitou ou não que a pressão se deveria a assuntos de seu interesse pessoal, como proteger a sua família? O presidente e os militares ouvidos dizem que não. O vazamento sustenta que sim...

A Advocacia Geral da União já havia pedido autorização para entregar só a parte da reunião que trata do entrevero com Moro. Desistiu da ideia. O vídeo foi repassado na íntegra. Mello pediu a sua transcrição. Augusto Aras ainda não se manifestou.

O advogado de Moro nega que haja ali o chamado "material sensível", como alerta o governo. Vamos ver o que vai dizer Aras. O procurador-geral está numa situação nada invejável. É chapa e parça de Jair. Por outro lado, depois de tudo o que já se vazou sobre o vídeo, como defender que sejam mantidos em sigilo mesmo os trechos que não dizem respeito diretamente ao caso?

SIGILO E LEIS

A questão é espinhosa, sim -- lembrando sempre que Celso de Mello já havia decidido pela publicidade do inquérito. O governo não é obrigado a gravar as reuniões. Aliás, eis aí um procedimento a ser adotado. Que se grave tudo para a história, impondo um tempo de sigilo. Não há legislação para esses casos. Como a gravação existe, como há a suspeita ou indício -- vamos ver -- de que um crime foi cometido; como a fala de Bolsonaro, no que respeita a Moro, não se descola do clima geral da reunião, criou-se uma óbvia demanda pública em favor da transparência.

Se Mello opta pelo sigilo, resta a suspeita de que o ministro está tentando esconder um malfeito do governo. Como o princípio que a Constituição consagra é o da publicidade e como o caso remete a um dos pilares da República e do estado de direito, não vejo como isso possa ficar escondido.

Para o caso, o que interessa é mesmo a fala que Bolsonaro teria dirigido a (ou contra) Moro. O resto constitui o ambiente em que os outrora chamados "interesses mais elevados da nação" são debatidos. É mesmo verdade que um ministro da educação defende a prisão de todos os integrantes do Supremo? É do interesse público. Trata-se de um bolsonarista-raiz e tem sob seu controle a segunda verba do Orçamento.

Damares Alves, por usa vez, teria pregado a prisão de prefeitos e governadores, o que ela confirma no Twitter, embora tentando emprestar uma motivação nobre para o seu comentário:
"Quem me acompanha sabe que os pedidos de punição a gestores violadores de direitos ou que desviam verba pública (corruptos) não são novidade. Se em nome de quarentena alguém agredir idoso, mulher ou qualquer outro na rua, vou pedir justiça, sim. E se houve crime, que seja preso".

A ministra poderia ao menos ter escrito: "Se houve crime, que seja julgado e punido". Mas não consta que o contexto tenha sido esse.

E A CHINA?

"Ah, mas e a China? E se Bolsonaro e Ernesto Araújo falaram mal da China, o maior parceiro comercial do Brasil? Bem, meus caros, não deve ser coisa muito pior do que aquilo que o chanceler escreveu em seu blog, quando chamou o coronavírus de "comunavírus", numa alusão aos supostos benefícios que o país asiático teria com a pandemia, associando o distanciamento social a campo de concentração.

Mello há de compreender que ninguém está querendo dar uma espiadinha nas entranhas putrefatas do governo. Se há o vídeo e se inexiste dispositivo legal que o torne sigiloso, a eventual gravidade da coisa está em ter acontecido, não na sua publicidade. "Ah, mas a reunião não foi feita para que todos soubessem". Sim, é verdade. Mas o fato é que pessoas púbicas se reuniram num espaço também público para tratar de assuntos do público. Tivessem todos seguido a lei e as regras do decoro, nada de ruim teria acontecido por lá, e ninguém estaria interessado em acompanhar minudências de um encontro como esse.

O MAIS IMPORTANTE

Acontece que não foi assim que seu deu, não é? Não havendo lei que vete ou que imponha o sigilo, prevalece o princípio da publicidade, consagrado no Artigo 37 da Constituição. Trata-se, ademais, de providência didática. Será mesmo aceitável, então, que "material sensível" para o país, a ponto de merecer sigilo, deve ser tratado em meio a palavrões que podem ficar bem em boteco ou em vestiário, mas nunca num ambiente em que, então, os altos interesses da nação deveriam estar sendo debatidos? A resposta parece óbvia.

Que Mello pense bem. Já há delinquentes acampados em Brasília fazendo "treinamento", como dizem, com o intuito de desmoralizar as autoridades. Entre eles, há pessoas que foram ou são assessores de parlamentares que dão suporte ao governo. O endereço é secreto, e uma das lideranças admite que há pessoas armadas — só para a autodefesa, claro!

Acontece, meus caros, que esse clima de baderna fascistoide, como se pode ver, está indo parar nos salões em que os Varões e as Varoas de Plutarco se reúnem.

Parlamentares se mobilizam cobrando acesso ao vídeo. Espero que Mello contribua para a elucidação de um tempo. Talvez Bolsonaro tenha cometido um crime, vamos ver. Mas me ocorre agora que, para o longo prazo, ainda mais importante do que isso, é termos clareza do modo como o país é governado. Os brasileiros merecem isso. Inclusive as famílias dos mais de 12 mil mortos. Inclusive os vivos que estão na fila dos cadáveres a haver. Inclusive os que restarmos.

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