UOL - 02/04
O presidente Jair Bolsonaro não gostou de terem apontado uma mudança de inflexão em seu pronunciamento. Na terça-feira, depois de um dia agitado, em que insuflou apoiadores contra a imprensa e inverteu o sentido de uma declaração de Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, o presidente falou em rede nacional de rádio e televisão. Deixou de lado, por oito minutos ao menos, a postura negacionista, reconheceu a gravidade da crise provocada pelo coronavírus e pregou a união nacional. Jornalistas e analistas políticos apontaram o óbvio: era outro discurso na comparação com aquele que vinha fazendo até então.
Mais: os que foram escarafunchar as razões da mudança ouviram o eco das vozes da caserna. Militares da ativa e mesmo os da reserva estão profundamente descontentes com o comportamento do presidente, que se tornou referência negativa no mundo inteiro. Pior: estamos só nos primeiros dias da devastação que o coronavírus provoca na vida das pessoas, no sistema de saúde e na economia, e os números não são nada animadores. Há, ademais, a lentidão da máquina pública e do próprio governo para fazer o dinheiro chegar às pessoas.
O pensamento já é um clichê, mas se aplica ao caso. O país precisa de alguém que ao menos se comporte como um estadista e que consiga dizer palavras que unam a nação. Que sentido faz provocar adversários políticos num cenário assim? A pergunta pode ser ainda pior: que sentido faz hostilizar aliados e transformar em alvo o ministro da Saúde, que vem fazendo um trabalho ancorado no que informa a epidemiologia, a Organização Mundial da Saúde e o consenso científico e político mundial para este momento da crise?
Sim, é verdade! Os militares conversaram com Bolsonaro e o alertaram para as arapucas que estava criando para si mesmo. Ora, se um ministro do Supremo, como fez Roberto Barroso, concede uma liminar impedindo a veiculação de uma campanha publicitária que incentiva o fim da quarentena, evidenciando que ela viola a Constituição, o que dizer, então, da pregação de um presidente com o mesmo conteúdo? Mais: ficou evidente ao presidente que os militares não endossarão aventura de nenhuma natureza se o seu comportamento tresloucado na crise resultar numa deposição, segundo as regras constitucionais, por crime comum ou crime de responsabilidade. Afinal, para tanto, a Constituição aponta uma saída: a posse do vice. E seu nome é Hamilton Mourão, um general.
Já escrevi aqui que invariavelmente perderam suas fichas todos aqueles que apostaram numa mudança de comportamento de Bolsonaro e na sua adequação à institucionalidade e ao decoro que exige o cargo. Eu também apontei a mudança de conteúdo do seu pronunciamento, revelei as razões, mas não desperdicei ficha nenhuma. Nunca vi a adesão do presidente a um parâmetro ao menos razoável durar 24 horas.
Não foi diferente desta vez. Bolsonaro se irritou com a tal "mídia" porque, segundo a sua perspectiva, não houve mudança nenhuma no discurso. Parece ofendê-lo a constatação da imprensa, de analistas e de especialistas de que sua fala foi, no geral, correta. E, afinal, lá está, vigilante, o tal Gabinete do Ódio.
Menos de 12 horas depois daquele discurso, postou em suas redes sociais um vídeo em que um homem aparece na Ceasa de Belo Horizonte relatando caos e desabastecimento. Era mentira. Uma nota oficial informava: "A CeasaMinas esclarece que não há qualquer desabastecimento em seus entrepostos em razão do coronavírus (Covid-19). A empresa reafirma que têm sido mantidas todas as atividades necessárias à comercialização das mercadorias nas suas seis unidades do Estado (Contagem, Uberlândia, Juiz de Fora, Governador Valadares, Caratinga e Barbacena)".
Em conversa com José Luiz Datena, Bolsonaro admitiu, fazendo o mesmo em suas redes sociais: "Quero me desculpar, não houve a devida checagem do evento. Pelo o que parece aquela central de abastecimento estava em manutenção. Quero me desculpar publicamente, foi retirado o vídeo rapidamente. Acontece, a gente erra na notícia. Eu tenho a humildade de me desculpar sobre isso". Destaque-se: não era uma notícia, mas uma falsa notícia. Um presidente não pode se dar a tal prática.
Adicionalmente, Bolsonaro recebeu um grupo de médicos — entre eles estava o ex-ministro Osmar Terra, um adversário da quarentena — para debater a crise do coronavírus. Luiz Henrique Mandetta, ministro da Saúde, não foi convidado para o encontro. Bolsonaro estica a corda para ver se ele pede demissão. O titular da pasta resiste porque, por enquanto, o gabinete de crise, comandado por Braga Netto, chefe da Casa Civil, dá respaldo a suas ações. Tomara que não mude de ideia.
Imaginem se o presidente decidisse se encontrar com um grupo de economistas para debater a atuação do Ministério da Economia nessa fase turbulenta — e olhem que isso, sim, seria necessário —, mas sem convidar Paulo Guedes... Que Mandetta passe a encarar a tarefa como uma questão de vida ou morte de brasileiros — e é mesmo — e uma tarefa civilizatória.
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