Desta vez, o lobo existe mesmo e as pessoas têm razão em temer o coronavírus
Aqui de longe, na Europa, acompanhando o cenário de medo e morte que corre por estas bandas, confesso um certo fascínio com a irresponsabilidade de Jair Messias Bolsonaro. De onde vem essa “hubris” que leva o presidente a desprezar um vírus potencialmente letal?
De onde vem a atitude guerreira de desconfiar do confinamento, o único método comprovadamente eficaz para evitar o crescimento exponencial de casos e o colapso do sistema de saúde?
Itália, convém lembrar, tem um bom sistema de saúde, com um número razoável de unidades de cuidados intensivos. Já enterrou 14 mil mortos. Espanha, aqui ao meu lado, mais de 10 mil.
A ignorância não é explicação: há momentos em que o ignorante, assoberbado pela violência das circunstâncias, procura ajuda competente.
A preocupação com a economia seria uma atitude compreensível porque sem dinheiro não haverá saúde para ninguém –razão pela qual a Alemanha pondera criar “certificados de imunidade”, documentos que atestam a recuperação total de alguns cidadãos que poderiam, assim, voltar ao trabalho.
Mas a imprudência de Bolsonaro se alimenta de outras águas: um ressentimento antigo, quase instintivo, contra a “tirania dos especialistas”. A grande diferença, dessa vez, é que o lobo existe mesmo e os especialistas, os verdadeiros especialistas, têm razão em temer o bicho.
Uma boa forma de compreender o impasse do momento é ler um autor singular com um ensaio ao mesmo nível. O nome é Martim Vasques da Cunha, que concedeu uma entrevista importante à Folha a propósito do seu livro “A Tirania dos Especialistas – Da Revolta das Elites do PT à Revolta do Subsolo de Olavo de Carvalho”.
É um ensaio notável e denso, onde o Brasil é apresentado como vítima de duas tenazes.
De um lado, existe o que Vasques da Cunha designa por “revolta das elites”, uma expressão cara a Christopher Lasch, e que significa a adesão do intelectual orgânico à velha tentação demiúrgica de transformar a realidade à luz dos seus princípios iluminados.
As elites das universidades, da cultura, da mídia, gravitando em torno desse planeta imenso chamado PT, foram construindo, ao longo dos anos, uma narrativa que não apenas ignorava a realidade como a procurava suplantar.
E quando essa mesma realidade dava sinais de vida, procurando romper as muralhas fechadas do castelo, a função do intelectual nunca passou por escutar ou compreender o rumor que ascendia do solo e do subsolo. Faz parte do “racionalismo em política” reduzir qualquer dissonância, e, sobretudo, qualquer dissonância de natureza prática, a uma mera questão técnica, que a razão facilmente classifica e resolve.
O que a razão, por si só, não é capaz de classificar e resolver, não demonstra, “ipso facto”, as limitações epistemológicas do sujeito. Mostra, isso sim, as limitações das massas que devem ser simplesmente ignoradas como primitivas que são.
O grande problema, esclarece Vasques da Cunha, é que as massas do subsolo não desparecem. Elas vão se constituindo como um exército vitimário e ressentido, pronto para a sua revolta.
Se juntarmos a esse exército faminto um líder de seita que fez do “curto-circuito de paralogismo” a sua igreja –a transformação do auto-exílio e da auto-marginalidade em fonte de autoridade e poder incorruptível– temos os condimentos para o grande enfrentamento entre as elites do PT e o subsolo de Olavo de Carvalho.
O livro de Martim Vasques da Cunha é precioso para entendermos a constituição desses dois exércitos no século 21 brasileiro. Mas seria um erro olhar para ambos como planetas distantes. Na verdade, são espelhos um do outro no mesmo desejo de poder e na mesma ambição de criar ou recriar o mundo à luz das suas ideias.
Cumprindo o calvário clássico do neurótico, eles se veem como vítimas e como deuses, o que os excluir do círculo da dúvida e da responsabilidade. São perigosos e nem sabem como o são.
“Se nem toda a gente sente o que digo, a falta é minha”, escreveu Montaigne. Mas os especialistas tirânicos, de esquerda ou de direita, do PT ou de Olavo, não têm qualquer falta. Se nem toda a gente sente o que eles dizem, o problema é dos outros e os outros que se danem.
Em condições normais, essa mistura de alienação e “pleonexia” seria cómica –apenas um espetáculo grotesco para divertir os intelectos civilizados.
Em tempos de peste, deixar aos comandos um ressentido do subsolo é uma forma cruel que o destino encontrou para punir esses pequenos deuses.
João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.
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