Cavalo de Calígula, até onde se sabe, não estava preparado
Uma das explicações mais convincentes para a renitência de Jair Bolsonaro em defender o que é radical e estapafúrdio - mesmo depois de assumir o cargo de presidente - é o fato de nunca ter perdido uma eleição. A falta de derrotas - como aconteceu com Lula, por exemplo - teria preservado o temperamento. Conquistas sucessivas cultivaram a soberba com que, entre outros desatinos, o leva a querer indicar o próprio filho a embaixador em Washington. Caberá aos senadores decidir se alimentam ou não, no chefe do Executivo, o sentimento de soberania ilimitada, reforçado ao longo do tempo.
Bolsonaro ganhou a primeira eleição a vereador do Rio em 1988 e as sete seguintes (1990, 94, 98, 2002, 06, 10 e 14) para deputado federal. Em sua carreira, sempre foi um vitorioso nas urnas, apesar de ter perambulado pela Câmara, como um lobo solitário, à margem das representações partidárias. Abaixo da média do baixo clero, nunca influenciou o debate público em questões amplas ou profundas. Mas colheu muitos votos graças ao papel de sindicalista dos militares. Na tipologia de quadros políticos - que inclui o pragmático e o ideólogo - Bolsonaro é o lobista. O ocupante do Planalto foi um jogo de palavras: um lobo solitário lobista. Mas solitário em termos. Pois tem a prole.
O sucesso de Bolsonaro é maior quando se considera que sempre amealhou triunfos ao utilizar o capital político para emplacar os filhos no Legislativo. O mais velho, Flávio, ganhou cinco eleições: quatro a deputado estadual (2002, 06, 10 e 14) e uma a senador pelo Rio (18). Carlos, o Zero Dois, também venceu cinco disputas a vereador (2000, 04, 08, 12 e 16). O terceiro filho, Eduardo, elegeuse deputado federal em 2014, por São Paulo, e sua reeleição bateu recorde, em 2018, na esteira da candidatura do pai à Presidência.
O único revés do clã Bolsonaro foi há três anos, quando Flávio concorreu à Prefeitura do Rio, à revelia do patriarca e dos irmãos. Vem daí a animosidade entre o senador e Carlos, que não o ajudou na campanha municipal e com quem mal fala, desde então. De olho na eleição presidencial, Bolsonaro temia que a derrota do filho à prefeitura pudesse lhe prejudicar - o que não se confirmou. Em 30 anos, o quarteto ganhou nada menos do que 21 de 22 eleições. Já seria uma façanha o desempenho até o ano passado (18 em 19). Mas a vitória ao Planalto - a despeito dos escassos recursos e de tempo de TV - somada à explosão do bolsonarismo elevou a sensação de invencibilidade do clã num outro patamar.
O pai, depois de uma facada, ganhou contornos de guerreiro imortal ao vencer o petismo. Flávio conquistou a primeira vaga ao Senado. Eduardo tornou-se o deputado federal mais votado da história. Catapultado pelo ex-capitão do Exército, o PSL, de legenda nanica, virou a segunda maior bancada na Câmara e a maior nas Assembleias Legislativas de quase todo o Sudeste (São Paulo, Rio e Espírito Santo) e do Paraná.
O atual ocupante do Planalto liderou, mas também é resultado, do maior fenômeno eleitoral já visto no país. Um acontecimento raro, surgido num ambiente de anomia, com escândalos de corrupção, descrédito da classe política, antipetismo ferrenho e a maior crise econômica da história brasileira. Incapaz de perceber os elementos estruturais da ascensão de um movimento que leva o seu nome, Bolsonaro dá demonstrações cotidianas de egolatria - ainda que contrarie o que dizia em campanha.
O homem que bradava "A mamata vai acabar!", elogiava a meritocracia e criticava o Estado aparelhado pelos adversários políticos é o mesmo que defende a indicação de Eduardo a embaixador, sem as credenciais para o cargo, exceto a de ser filho de quem é e por ter "fritado hambúrguer" nos Estados Unidos. O salário - quase R$ 70 mil - passaria a ser o dobro do que recebe o deputado. E na embaixada, como destacou, o filho seria garantia de que "ninguém com estrelinha vermelha vai entrar".
Para Bolsonaro, basta um ato de vontade para que o imoral, o ilegítimo, o inconstitucional ou o improvável se concretize. Da corrida de Fórmula 1 no Rio ao decreto sobre armas. O presidente se vê acima do bem, do mal, das instituições e da opinião alheia: "Se estão criticando é porque está certo". As atualizações do "LÉtat cest moi" foram realizadas com sucesso.
Bolsonaro tem um quê de Luís XIV mas também de Calígula. O imperador romano nomeou senador seu cavalo preferido, Incitatus, que, até onde se sabe, não estava preparado para exercer a função. Um cavalo investido de poderes é uma bizarrice. Mas pode ser menos ofensivo e imprudente do que um filho no lugar errado.
A indicação do Zero Três à embaixada em Washington pode ser considerada a próxima batalha eleitoral da família Bolsonaro, desta vez pelo voto dos 81 senadores. É um teste de força para o rebento apontado como plano B, caso o presidente não concorra à reeleição. A fotografia de Eduardo entre o pai e o presidente americano Donald Trump - ambos apontando para ele - é daquelas peças de marketing já prontas para a entrega.
Se desse importância para os assuntos internos, Bolsonaro escalaria o filho como articulador do governo no Congresso, onde, porém, tal como o pai era, só não pode ser chamado de zero à esquerda por uma contradição ideológica. Na Câmara, Eduardo já disse que se vê "engessado, quase sendo mais um entre os 513 deputados".
Foi a resposta que deu, há dois dias, pelo Instagram, a um simpatizante que lhe pedia que fique no Brasil, para avançar "os projetos contra o Foro de São Paulo". O deputado argumentou que no posto em Washington seria um "porta-voz" ideológico "não só para os EUA mas para boa parte da mídia internacional". "Hoje os
únicos que fazem essa conexão são da extrema esquerda", escreveu, sem citar nome influente do PSTU ou do PCO que faça a cabeça da imprensa estrangeira.
Uma derrota de Eduardo no Senado representaria importante choque de realidade a Bolsonaro, cujos seguidores menos radicais se mostram silenciosos ou até contrários à indicação, dado o nepotismo flagrante. Referendar a escolha é reforçar a imagem de uma república que o presidente teima em construir: de hambúrguer, bananas e laranjas.
Uma das explicações mais convincentes para a renitência de Jair Bolsonaro em defender o que é radical e estapafúrdio - mesmo depois de assumir o cargo de presidente - é o fato de nunca ter perdido uma eleição. A falta de derrotas - como aconteceu com Lula, por exemplo - teria preservado o temperamento. Conquistas sucessivas cultivaram a soberba com que, entre outros desatinos, o leva a querer indicar o próprio filho a embaixador em Washington. Caberá aos senadores decidir se alimentam ou não, no chefe do Executivo, o sentimento de soberania ilimitada, reforçado ao longo do tempo.
Bolsonaro ganhou a primeira eleição a vereador do Rio em 1988 e as sete seguintes (1990, 94, 98, 2002, 06, 10 e 14) para deputado federal. Em sua carreira, sempre foi um vitorioso nas urnas, apesar de ter perambulado pela Câmara, como um lobo solitário, à margem das representações partidárias. Abaixo da média do baixo clero, nunca influenciou o debate público em questões amplas ou profundas. Mas colheu muitos votos graças ao papel de sindicalista dos militares. Na tipologia de quadros políticos - que inclui o pragmático e o ideólogo - Bolsonaro é o lobista. O ocupante do Planalto foi um jogo de palavras: um lobo solitário lobista. Mas solitário em termos. Pois tem a prole.
O sucesso de Bolsonaro é maior quando se considera que sempre amealhou triunfos ao utilizar o capital político para emplacar os filhos no Legislativo. O mais velho, Flávio, ganhou cinco eleições: quatro a deputado estadual (2002, 06, 10 e 14) e uma a senador pelo Rio (18). Carlos, o Zero Dois, também venceu cinco disputas a vereador (2000, 04, 08, 12 e 16). O terceiro filho, Eduardo, elegeuse deputado federal em 2014, por São Paulo, e sua reeleição bateu recorde, em 2018, na esteira da candidatura do pai à Presidência.
O único revés do clã Bolsonaro foi há três anos, quando Flávio concorreu à Prefeitura do Rio, à revelia do patriarca e dos irmãos. Vem daí a animosidade entre o senador e Carlos, que não o ajudou na campanha municipal e com quem mal fala, desde então. De olho na eleição presidencial, Bolsonaro temia que a derrota do filho à prefeitura pudesse lhe prejudicar - o que não se confirmou. Em 30 anos, o quarteto ganhou nada menos do que 21 de 22 eleições. Já seria uma façanha o desempenho até o ano passado (18 em 19). Mas a vitória ao Planalto - a despeito dos escassos recursos e de tempo de TV - somada à explosão do bolsonarismo elevou a sensação de invencibilidade do clã num outro patamar.
O pai, depois de uma facada, ganhou contornos de guerreiro imortal ao vencer o petismo. Flávio conquistou a primeira vaga ao Senado. Eduardo tornou-se o deputado federal mais votado da história. Catapultado pelo ex-capitão do Exército, o PSL, de legenda nanica, virou a segunda maior bancada na Câmara e a maior nas Assembleias Legislativas de quase todo o Sudeste (São Paulo, Rio e Espírito Santo) e do Paraná.
O atual ocupante do Planalto liderou, mas também é resultado, do maior fenômeno eleitoral já visto no país. Um acontecimento raro, surgido num ambiente de anomia, com escândalos de corrupção, descrédito da classe política, antipetismo ferrenho e a maior crise econômica da história brasileira. Incapaz de perceber os elementos estruturais da ascensão de um movimento que leva o seu nome, Bolsonaro dá demonstrações cotidianas de egolatria - ainda que contrarie o que dizia em campanha.
O homem que bradava "A mamata vai acabar!", elogiava a meritocracia e criticava o Estado aparelhado pelos adversários políticos é o mesmo que defende a indicação de Eduardo a embaixador, sem as credenciais para o cargo, exceto a de ser filho de quem é e por ter "fritado hambúrguer" nos Estados Unidos. O salário - quase R$ 70 mil - passaria a ser o dobro do que recebe o deputado. E na embaixada, como destacou, o filho seria garantia de que "ninguém com estrelinha vermelha vai entrar".
Para Bolsonaro, basta um ato de vontade para que o imoral, o ilegítimo, o inconstitucional ou o improvável se concretize. Da corrida de Fórmula 1 no Rio ao decreto sobre armas. O presidente se vê acima do bem, do mal, das instituições e da opinião alheia: "Se estão criticando é porque está certo". As atualizações do "LÉtat cest moi" foram realizadas com sucesso.
Bolsonaro tem um quê de Luís XIV mas também de Calígula. O imperador romano nomeou senador seu cavalo preferido, Incitatus, que, até onde se sabe, não estava preparado para exercer a função. Um cavalo investido de poderes é uma bizarrice. Mas pode ser menos ofensivo e imprudente do que um filho no lugar errado.
A indicação do Zero Três à embaixada em Washington pode ser considerada a próxima batalha eleitoral da família Bolsonaro, desta vez pelo voto dos 81 senadores. É um teste de força para o rebento apontado como plano B, caso o presidente não concorra à reeleição. A fotografia de Eduardo entre o pai e o presidente americano Donald Trump - ambos apontando para ele - é daquelas peças de marketing já prontas para a entrega.
Se desse importância para os assuntos internos, Bolsonaro escalaria o filho como articulador do governo no Congresso, onde, porém, tal como o pai era, só não pode ser chamado de zero à esquerda por uma contradição ideológica. Na Câmara, Eduardo já disse que se vê "engessado, quase sendo mais um entre os 513 deputados".
Foi a resposta que deu, há dois dias, pelo Instagram, a um simpatizante que lhe pedia que fique no Brasil, para avançar "os projetos contra o Foro de São Paulo". O deputado argumentou que no posto em Washington seria um "porta-voz" ideológico "não só para os EUA mas para boa parte da mídia internacional". "Hoje os
únicos que fazem essa conexão são da extrema esquerda", escreveu, sem citar nome influente do PSTU ou do PCO que faça a cabeça da imprensa estrangeira.
Uma derrota de Eduardo no Senado representaria importante choque de realidade a Bolsonaro, cujos seguidores menos radicais se mostram silenciosos ou até contrários à indicação, dado o nepotismo flagrante. Referendar a escolha é reforçar a imagem de uma república que o presidente teima em construir: de hambúrguer, bananas e laranjas.
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