O GLOBO - 21/08
No regime idealizado pelos autores do livro, não há mais capitalistas no sentido corrente, de detentores de bens de capital
Está em curso um amplo debate sobre o futuro do capitalismo e da democracia em função da concentração de renda no topo da pirâmide social e dos avanços do autoritarismo e do populismo mundo afora. Pensadores de diversas áreas de conhecimento buscam alternativas que assegurem um sistema econômico e político mais equitativo e equilibrado do que o atual.
Livro recentemente lançado nos EUA, e que será publicado em português pela Cia. das Letras, é extremamente provocativo a esse respeito. Trata-se de “Uprooting Capitalism and Democracy for a Just Society” (“Desenraizando o capitalismo e a democracia para uma sociedade justa”). Seus autores são o economista da Microsoft e da Universidade de Yale Glen Weyl e o jurista da Universidade de Chicago Eric Posner.
Os autores explicam no prefácio que a motivação para o livro foi o contraste que eles constataram visualmente no Rio de Janeiro entre a riqueza do Leblon e a pobreza da Rocinha. Seu temor é que os países industriais caminhem para reproduzir esse mesmo padrão, numa espécie de Belíndia mundial.
Sua proposta para resolver esse problema é radical como diz o título do livro: trata-se de superar a propriedade privada tal como a conhecemos, por eles identificada com o monopólio.
Ao asseverarem que a propriedade é o monopólio, os autores fazem lembrar o socialista francês Proudhon, para quem a propriedade era o roubo. Mas Posner e Weyl não propõem substituir os capitalistas pelo Estado. Ao contrário, eles buscam dissociar a propriedade privada do mercado. Aí reside a grande novidade do livro, pois propriedade privada e mercado são normalmente tratados como se fossem irmãos siameses. Mas não para os autores, que buscam radicalizar o uso do mercado para lidar com as ineficiências e as desigualdades geradas pela propriedade privada.
Sua proposta é que os proprietários de bens de capital (terras, máquinas, estruturas etc.) tenham que declarar em registro público os preços desses bens, sendo esses preços de sua livre escolha. Mas com duas importantes restrições. Sobre os valores declarados, os proprietários pagam um imposto, semelhante ao atual IPTU, a uma taxa média que os autores estimam em 7% ao ano. Segundo eles, esse imposto sobre o capital geraria uma arrecadação de cerca de 20% do PIB, suficiente para garantir uma renda básica digna a todos cidadãos.
Ainda mais importante, aos preços declarados pelos proprietários, qualquer pessoa terá o direito de comprar os bens de capital. Assim, enquanto o imposto faria com que o proprietário tendesse a subestimar o preço do bem, a obrigação de vendê-lo, e ao preço declarado, faz com que ele tenda a declarar um preço honesto.
Esse mecanismo, uma espécie de leilão permanente dos bens de capital, garantiria que eles fossem possuídos por aqueles que deles possam fazer o uso mais produtivo a cada momento. O mecanismo garante equidade (via imposto) e eficiência (via leilão), sem prejudicar o investimento como arguem os autores.
No regime econômico idealizado pelos autores, não há mais capitalistas no sentido corrente, de detentores de bens de capital sobre os quais têm uso monopólico. Todo capitalista passa a ser uma espécie de posseiro. Eles retêm o direito ao uso do bem, mas têm que vendê-lo caso alguém ofereça um preço maior do que o seu por ele.
Trata-se de uma bela utopia. Se terá efeito prático, somente o tempo dirá. O fato é que já causa sensação entre os leitores do livro, que contém outras propostas, também radicais mas sempre baseadas no mercado, para lidar com as iniquidades dos sistemas eleitorais, o poder dos conglomerados financeiros, as restrições à imigração, o uso abusivo de dados pessoais por parte dos gigantes da internet.
“Radical Markets” é um livro cuja importância para repensar o capitalismo rivaliza com o best-seller de Thomas Piketty, “O capital no século XXI”.
Edmar Bacha é economista
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