Coordenador econômico do Partido Novo, o economista defende mensalidade em universidade pública e diz que virada liberal de Bolsonaro é "maquiagem"
Por João Pedro Caleiro
Gustavo Franco: o carioca de 62 anos coordena o programa econômico do Partido Novo (Germano Lüders/EXAME)
São Paulo – Em 1997, Gustavo Franco foi indicado como presidente do Banco Central e antes de ser sabatinado pelo Senado, recebeu um alerta do então presidente Fernando Henrique Cardoso:
“Ele me disse: ‘essas coisas que você fala aí de livre mercado, não fala nada disso lá senão você vai levar bola preta’. Todo mundo que ia fazer sabatina recebia a mesma advertência”, diz Franco, que se perguntou: “por que no Senado não existe ninguém com uma cabeça pró-mercado?”.
Membro da equipe de criação do Plano Real, uma história que virou filme recentemente, o economista decidiu sair do PSDB em 2017, após quase 20 anos, para ajudar a fundar o Partido Novo.
Hoje, ele coordena o programa econômico do candidato à Presidência pelo partido, o engenheiro João Amoêdo, além de continuar como estrategista-chefe da Rio Bravo Investimentos e consultor do Nubank.
Foi na sede da fintech em São Paulo que ele concedeu, na última sexta-feira (03), a seguinte entrevista:
EXAME – O seu partido é talvez o primeiro a defender abertamente um programa radicalmente liberal. Você diria que nossa tradição econômica é de esquerda? Quais as raízes disso?
Gustavo Franco – Me ocorre a crítica literária de Machado de Assis com a expressão de que “o liberalismo é uma ideia fora do lugar no Brasil”, porque não se admite que o Brasil possa ser liberal sendo escravista. Mas aí o que está errado? É o país ter demorado tanto para abolir essa abominação.
É curioso que essa tradição local e patrimonialista tenha se reproduzido e renovado ao longo de todo o século XX, sempre contra as ideias iluministas que vinham do resto do mundo e que não tem esse nome lá fora; nos EUA e na Inglaterra, “liberal” quer dizer outra coisa.
Aqui, é o que ameaça o personalismo das relações econômicas brasileiras. A ideia de uma economia horizontal, com direitos iguais e igualdade radical diante das regras do jogo, parece coisa de gringo. No Brasil a gente se reconhece pelo primeiro nome, “somos todos amigos“, até o governo e o setor privado são amigos. Errado!
Porque essas relações pessoais conduzem ao corporativismo, à corrupção, ao nepotismo e a todo tipo de distorção do que é um verdadeiro capitalismo e uma economia de mercado democrática. Essa tradição acaba no mundo dos partidos, fazendo com que nenhum seja pró-mercado.
Agora não sei se foi a internet, a tecnologia, a crise, a Dilma ou o petrolão, mas abriu-se uma janela para essas ideias, e a própria organização do Partido Novo com este sucesso na base são expressão disso.
Você usa a expressão livre mercado, mas os críticos a atacariam como Estado mínimo. É um conceito que você defende?
Isso é um fantasma criado pelos adversários da economia da mercado, como se nela não houvesse o Estado nas suas mínimas ofertas de proteção social, o que é uma tolice.
Na maior economia de mercado do planeta, que é os Estados Unidos, veja o que tem de proteções sociais e o tamanho do Estado lá – que a gente acha que é até muito grande (risos).
Não se trata do mínimo e nem sei o que é isso, o fato é que aqui estamos perto do máximo, um Estado claramente obeso e com colesterol estourado.
Esse tema do corporativismo é citado por várias campanhas, mas de forma genérica. Que corporações são essas e como elas atuam?
Pode ser um sindicato, patronal ou não, ou um grupo funcionando na defesa do seu próprio interesse em detrimento do conjunto da sociedade, que sequer nota isso acontecendo.
O gato na conta de luz é um tipo de corporativismo: uma pequena minoria com o direito de ter energia grátis paga pelo resto. Às vezes é algo justificado por ser alguém de baixa renda, mas as vezes não – como as filhas solteiras de militares aposentados, que ganham uma pensão igual a de um ministro.
Essas pessoas agem corporativamente, assim como os parlamentares quando defendem sua aposentadoria privilegiada, seus assessores e gastos de combustível e gabinete. Eles são uma corporação com poder de criar privilégios pra si.
Falando em privilégios, quem assumir o governo enfrentará uma crise fiscal com déficit anual na casa de R$ 150 bilhões. Em quanto tempo isso pode ser revertido e onde o Novo cortaria?
Devemos reverter o mais rápido possível. Vejo [o candidato Geraldo] Alckmin falando em zerar em dois anos, para chegar aonde estava antes da Nova Matriz Econômica, ou 3% do PIB de superávit primário. É factível e acho que dá para ser mais rápido.
Fiz parte de um governo em 1998 que fez um ajuste de -0,5% para 2% do PIB de primário em menos de um ano. A caneta do presidente é muito poderosa.
Um guia de onde cortar está no estudo do Banco Mundial encomendado pelo então ministro Joaquim Levy. Eles falam de um ajuste de 8,3% do PIB só pela despesa, 7% no governo federal e 1,3% em estados e municípios, em 10 anos – acho que não quiseram encurtar para não criar constrangimentos.
Algumas das propostas são polêmicas, como a cobrança de mensalidade em universidades públicas.
Nem são as maiores, mas tudo que tem ali eu gosto. Não tenho nenhuma dúvida sobre a mensalidade em universidade pública para quem pode pagar. É ridículo não cobrar. Por que filho de rico tem que estudar de graça em universidade pública? Não sei porque isso é polêmico.
E o fim do Simples, também sugerido?
Aí é mais complicado, por causa da mensagem. Gostaríamos que não só aquela faixa, mas toda a tributação fosse simples.
A gente sabe a dor de cabeça que é para uma empresa média cumprir suas obrigações tributárias, seja pelo custo ou pelo tempo dedicado. O que dá pena de mexer no Simples como renúncia fiscal é afetar a simplicidade das obrigações nessa faixa.
A simplificação dos tributos também é defendida por várias campanhas, no modelo de um novo Imposto de Valor Agregado (IVA) que unificaria alguns outros. Vocês concordam?
A gente gosta. A proposta do Bernard Appy consolida isso, é mais executar. Na Previdência é parecido e gostaríamos de agregar o mecanismo, que a gente adora, da reforma do Prof. Hélio Zylberstajn.
O dois primeiros pilares estavam na reforma que o governo Temer tentou fazer e não conseguiu: o primeiro da aposentadoria não contributiva, o BPC (Benefício de Prestação Continuada), e o segundo do INSS.
Além disso queremos trabalhar o terceiro pilar, que é o regime de capitalização obrigatório pelo FGTS, e o quarto, que é a previdência privada aberta. Eles ajudariam o brasileiro a ter uma ideia clara sobre a terceira idade considerando as possibilidades de poupança acumulada que é o FGTS, um dinheiro que já está lá e é usado para outra coisa – e mal, muito mal.
Será necessário aumentar impostos?
Eu acho que não precisa. Admitiríamos ver aumento de arrecadação decorrente do aumento da atividade, mas não aumento de alíquota e criação de novos impostos.
Nem a volta do imposto sobre dividendos, que outras campanhas defendem?
Não gosto. Já vi o Imposto de Renda sobre empresas aumentar em duas ocasiões no passado com isso de isentar dividendos, agora vão aumentar os dividendos e não mexer na tributação corporativa, ou mexer na corporativa para taxar dividendos? Não acho que deva fazer.
A única coisa que faz sentido mexer é juros sobre capital próprio, que vem de quanto havia um resíduo inflacionário relevante. Cobrar IR sobre lucros nominais era como cobrar imposto sobre correção monetária do lucro, mas hoje a inflação é mínima, não precisa mais.
O corte de gastos abriria espaço para mais investimentos públicos em infraestrutura, uma de nossas deficiências básicas? Ou a ideia é deixar para o setor privado?
Nas áreas de infraestrutura onde falta investimento o setor privado pode atender plenamente. Hoje em telecomunicações, por exemplo, praticamente tudo é setor privado, enquanto no saneamento é tudo setor público, porque o desenho torna difícil para o setor privado entrar.
Precisa mudar o desenho, ou privatizar companhias, ou criar outras formas de parceria sobretudo nesse setor, onde os governos, que são donos das concessões estaduais ou municipais, não tem dinheiro. Depender do governo federal usar recursos do FGTS para isso é ridículo; é praticamente um confisco da sua e da minha poupança pra fazer obra de saneamento.
Por que não o setor privado? Puro preconceito, e o resultado é sub-investimento numa área com profundo impacto ambiental e de saúde pública. Tem coisas que no Brasil são polêmicas e não entendo.
Qual deve ser o modelo de abertura comercial em meio a um cenário internacional desafiador?
Tem os factóides do Trump, mas o ambiente global é bastante liberal e o Brasil tem uma defasagem vexatória. Somos os últimos colocados em qualquer ranking sem Coreia do Norte e Cuba, e teria que correr muito pra deixar de ser o último.
É a mãe de todas as reformas microeconômicas e tem que ser rápido e unilateral. Problema não é só tarifa; é conteúdo nacional, padrões, tomadas de três pinos, adesão à OCDE. É ter um sistema diferente, não falar inglês e estar distante das melhores práticas mundiais, como se adotá-las fosse uma rendição neoliberal. Besteira.
Aí vem o argumento: as empresas brasileiras vão se expor à competição internacional, sobretudo na indústria? Mas nossa indústria é predominantemente estrangeira. Não são empresas nascentes nem adolescentes, são multinacionais acostumadas com uma zona de conforto que as faz viver duas ou três gerações tecnológicas atrasadas do resto do mundo e desconectadas das cadeias internacionais de valor. Por que essa demora toda? Não é normal, é uma vergonha.
O que você vê de positivo e negativo na reforma trabalhista aprovada pelo governo Temer?
Foi um sucesso que não estava nas prioridades do governo e foi crescendo no Congresso. Os relatores foram espetaculares, tanto na Câmara quanto no Senado, e o interessante é que foi uma lei ordinária. Mostrou que com maioria simples podia fazer uma reforma importante que surpreendeu muita gente.
O fim do imposto sindical foi um ataque frontal ao corporativismo. A gente fica com medo dos sindicatos e sua truculência, dos sindicatos patronais, a Fiesp… mas na hora do voto, é minoritário. Perderam e não vai voltar.
Às vezes os governos depositam a energia política em uma emenda como a do teto, que não sei se foi a melhor. Junto com a reforma da Previdência seria uma dupla poderosa, mas sem ela gerou uma pequena armadilha; talvez teria sido melhor começar com a Previdência, mas é fácil falar a posteriori.
O programa do governo que sai do impeachment não era ambicioso e sim oportunista; eles não tem nenhuma afinidade com a pauta pró-mercado. Trouxe uma equipe com essas ideias, mas deu poucas asas para eles voarem, e tomou decisões estratégicas que acabaram sendo ruins como a do teto, mas com sucessos como a trabalhista, a TLP (Taxa de Juros de Longo Prazo) e outras microeconômicas, além da atuação do Banco Central, também boa.
Fico com medo até deles terem estragado um pouco da popularidade da pauta de reformas que vai ter que voltar, muita gente vai dizer: “ah não, essa Reforma da Previdência é do Temer”. Ele virou um problema e tudo que ele botou a mão virou meio radioativo. Vamos ter que viver com isso.
Mas o que você acha que prevalece: um certo enraizamento dessa pauta mais liberal ou o efeito negativo de associação com um governo impopular?
A pauta tem duas vertentes, e uma é fiscal. A retomada do superávit primário é menos polêmica: de 1998 a 2012, o Brasil teve superávit primário de 3,5% do PIB em média, do segundo governo de Fernando Henrique Cardoso até a metade do primeiro mandato de Dilma, quando começou a estragar.
Todo o governo Lula, que as pessoas lembram com saudade, teve 3,5% do PIB de superávit primário. Está longe de ser uma austeridade recessiva e acho que voltar a isso terá muito pouca objeção política.
Todas as campanhas tratam do assunto fiscal: Ciro com aumento de impostos, e a esquerda sempre fala de tributar grandes fortunas, esse tipo de coisa, mas todos tem que ter sua receita.
A outra parte da pauta é mais pró-mercado e ideológica mesmo, como a de privatizações e abertura, que aí sim diferenciam a esquerda dos outros.
O Novo faz uma defesa ampla das privatizações. Há alguma exceção?
Talvez alguns pedaços da Petrobras. Acho que é o caso de, tal como na Telebras, pensar em fazer 3 ou 4 empresas do que a Petrobras é hoje para enfrentar a competição em produção, refino e distribuição.
A ideia do monopólio pelo monopólio está obsoleta, e já foi quebrada com empresas estrangeiras operando com a Petrobras. Competição só faz bem, mas jamais começaria pela mais complexa, porque tem coisas mais prontas e de tamanho relevante: como Eletrobras, que deve ficar pro próximo governo.
Banco do Brasil pode ser via uma diluição em bolsa do governo para um grupo controlador sem Itaú, Bradesco e Santander e que torne o BB, do dia para a noite, um banco privado que vai competir de verdade e fazer os spreads irem pra baixo. Todo mundo tem uma experiência pessoal com banco que é ruim, e isso só vai se resolver com competição.
O candidato em primeiro lugar nas pesquisas tem um histórico estatizante mas se associou com um liberal, o que parece ter convencido muita gente. Esse aceno é sincero e se sustenta na prática?
Tão sincero quanto foi Michel Temer. A primeira resposta do Bolsonaro no Roda Viva, sobre como ele gostaria de ser lembrado – “tornar o Brasil mais liberal” – foi pra mim uma surpresa inacreditável porque não tem nada a ver com a história dele, como não tinha de Temer.
Nenhum desses personagens tem nenhuma afinidade com essas pautas e é impossível saber como (e se) será efetivamente executado.
Eu estou em um projeto que talvez é o único mais organicamente pró-mercado, muito diferente de quem abraça essas pautas por puro oportunismo. É maquiagem, e eu não acredito em maquiagem.