terça-feira, outubro 24, 2017

U2 é passado; Trump é futuro - JOEL PINHEIRO DA FONSECA

FOLHA DE SP - 24/10

O U2, cujo show da turnê "The Joshua Tree" (álbum que completa 30 anos) tive o privilégio de assistir neste domingo, é mais do que uma banda de rock: é um manifesto por um mundo melhor. O líder Bono Vox é um missionário de todas as boas causas: a paz mundial, o empoderamento feminino, o fim da pobreza; todas devidamente afirmadas no show. O espírito do John Lennon estava no ar e o som era de primeira. Mas a catarse musical trouxe uma lembrança inquietante: aquilo era a bolha de um passado que não volta mais.

A banda chegou ao estrelato em meados dos anos 80. Era um mundo cansado do ódio e sedento de união. Com o fim da URSS, a paz mundial e o fim das fronteiras pareciam tão próximos. O que restava de guerra e intolerância nas periferias do mundo poderia ser superado com um valor fundamental: "love", o amor.

Pelo amor, as diferenças são atenuadas, a riqueza é distribuída, o poder é exercido em favor dos mais fracos. Faltava muito pouco para chegar lá: bastava os EUA deixarem de se impor pelo planeta e os países ricos fazerem mais filantropia —liderados por estrelas como o próprio Bono. Os povos do terceiro mundo —do qual a Irlanda deixava de fazer parte graças ao velho capitalismo— estavam prontos para coexistir. Era o mundo do U2, que fez sentido até inícios dos anos 2000, último auge da banda, com o álbum "How to Dismantle an Atomic Bomb".

Os tempos mudaram. O conflito está de volta e as bombas atômicas ficam. Nada de união global no caldo multiculturalista. Agora as identidades se afirmam. Cada um pensa primeiro em si: o meu país, o meu povo, a minha fé, a minha raça. Se não nos colocarmos em primeiro, quem o fará? Todos exigem o que é seu de direito. E quem, se não nós, definirá a extensão desse direito? Altruísmo é coisa de iludidos e ilusionistas.

Até o feminismo da banda parece deslocado: um grupo de homens prestando homenagem às nossas mães, filhas e esposas; a mulher como "the best thing about me". No telão, mulheres notáveis: Frida Kahlo, Rosa Parks, Michelle Bachelet, Angela Merkel, Hillary, Irmã Dulce, Taís Araújo. E a Dilma? E a Thatcher? E a Hebe?

Trump e sua muralha —os grandes inimigos— são nomeados. Infelizmente, apenas "amor" e o sentimento de superioridade moral não vencerão essa batalha. Trump hoje é visto como sincero, mais sincero do que o politicamente correto de Bono. O discurso da união global parece hipócrita. Mais do que ajudar os marginalizados da terra, ele serve para envaidecer e "empoderar" uma elite já inimaginavelmente poderosa e esmagar o povo —financeira e espiritualmente. Será?

Talvez seja por isso que essa banda tão igualitária tocou a primeira parte do show num pequeno palco dentro da "red zone", setor exclusivo da pista com ingressos a mais de R$ 1.000 (mas parte da renda vai para a fome na África!). Os telões estavam desligados, de modo que os reles mortais da pista comum não puderam vê-los tocar hits como "Pride (In the Name of Love)". Começaram os murmúrios. Nós também temos direito! Quem eles pensam que são? Durou pouco. Logo o U2 subiu ao palco principal, os telões mais incríveis que já se viu foram ligados e, por duas horas, fomos todos um só, acreditamos que o amor era o caminho e que roqueiros podiam salvar o mundo. Pena que acabou.

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