O Globo - 27/06
O país está de pernas para o ar. A combinação da mais grave recessão desde 1929 com o maior escândalo de nossa história, desvendado pela Lava-Jato, e seus desdobramentos políticos tem efeito devastador e decreta a falência do atual sistema político.
Não se troca presidente da República como se troca de camisa. Um impeachment é sempre traumático, deixa feridas e cicatrizes. Mas não há nenhum golpe em curso. Crimes fiscais, eleitorais, morais e de obstrução da Justiça foram cometidos. E a lei é para todos. O processo é absolutamente constitucional, e o país saberá construir seu futuro sem retrocessos.
Hoje, a distância abissal que existe nas sociedades contemporâneas entre as pessoas e sua representação política é agravada, no Brasil, pela corrupção sistêmica e institucionalizada e por um sistema político disfuncional e irracional. Há visível esgotamento e uma inviabilização clara do chamado “presidencialismo de coalizão”, transformado em “presidencialismo de cooptação”, onde a dinâmica movida a chantagens, concessões e cooptação dita o ritmo da República.
Isto, somado a um sistema de financiamento da atividade política vulnerável e ao império da demagogia, do populismo e do corporativismo, impede a aprovação das reformas necessárias e inadiáveis para que o Brasil saia da crise.
Embora seja falso afirmar que a corrupção e a crise são culpas do sistema, em grande parte nossas mazelas se devem a regras políticas muito ruins, que norteiam nosso processo decisório coletivo.
Como abordar temas complexos e polêmicos num plenário da Câmara com inacreditáveis 27 partidos políticos? Como obter a confiança da sociedade quando até as doações legais foram demonizadas e criminalizadas? Como estabelecer controles sociais sobre os mandatos se, segundo as pesquisas, 70% dos brasileiros não sabem sequer citar o nome de seu deputado?
A atual crise repõe a necessidade urgente de retomar a discussão sobre a reforma política. Após a Lava-Jato, o financiamento público exclusivo é quase uma imposição no Brasil. Mas ele só é viável se tivermos a mudança do sistema eleitoral, só é possível com a introdução do voto distrital como nos EUA e no Reino Unido, ou da lista partidária, como na Itália, Espanha e Portugal. Ou do modelo misto da Alemanha ou Coreia do Sul. Com a cláusula de desempenho para assegurar representação parlamentar, na Alemanha a exigência é de 5% dos votos nacionais.
Mas aí nos vemos no espelho diante de nossa armadilha existencial. A vida e a sociedade, cansadas de escândalos e ansiosas por mudanças, reclamam alterações radicais. Mas o sistema apegado ao status quo não se autorreformará. E dizem juristas conceituados que Constituinte exclusiva não faz sentido em plena vigência de uma Constituição democrática.
Ou seja, estamos diante de um verdadeiro enigma da esfinge: decifra-me ou devoro-te. A democracia brasileira, duramente conquistada, não pode se render a este impasse.
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