domingo, abril 24, 2016

Feio, mas necessário - FERNANDO GABEIRA

O Globo - 24/04
Se fosse catapultado a essa longa sessão da Câmara, sem saber o que estava sendo votado, eu diria com tristeza: eles estão vencendo, os velhos adversários. E se o cansaço da longa sessão me valesse um cochilo, acordar com o voto de Jair Bolsonaro me faria sentir num templo satânico. Sabia muito bem onde estava. Quatro mandatos e 16 anos naquele mundo subterrâneo me fizeram prever na semana anterior, no programa da CBN, a enxurrada de votos pela família, por filhos, netos, a avó que está doente.

Não era o primeiro impeachment que via. Foi assim na queda de Collor. Na verdade, o nível naquela época era um pouco mais alto. Enrolados em bandeiras, detonando bombas de papel picado, os deputados de hoje estão mais inseridos no espetáculo. Falam com imagens. É como se colocassem uma letra retrógrada na canção do impeachment, vitória da sociedade, de algumas instituições e da própria transparência.

A cabeça dos deputados passou por um raio X diante de 100 milhões de espectadores. Cerca de 90 deles são investigados no Supremo. Agora que todos sabem o que temos, certamente vão compreender a urgência de mudanças.

Com tanta coisa acontecendo, naquelas longas horas, procurei não me esquecer das tarefas principais: a reconstrução econômica e ampla transparência sobre o gigantesco processo de corrupção que devastou nosso país.

Os generais da esquerda levaram suas tropas para um combate que sabiam perdido. Refugiaram-se na tese do golpe, para mascarar as graves acusações que pesam contra eles. O que para os líderes era apenas uma boia no oceano, para muitos foi uma ilusão de que havia um golpe em marcha, e ele seria detido.

A insensatez se prolonga com a viagem de Dilma Rousseff ao exterior onde foi se dizer, para a mídia, vítima de um golpe aplicado pelo Congresso e pelo Supremo. Minha senhora, no seu país não há Constituição? Quem dá a palavra final quando ela não está sendo cumprida?

Os jornalistas internacionais não são tão ingênuos. Sabem que, quando se apela para eles, é porque já se perdeu a batalha no seu próprio território. Só uma presidente enlouquecida poderia sonhar em transferir a guarda da Constituição brasileira do Supremo Federal para a ONU. Ainda bem que não o fez.

Esse espetáculo decadente me entristece, apenas isso. Um jovem senador do PT disse que não dará sossego ao novo governo. O país terá de trabalhar muito para sair da crise e deve se concentrar nisso. Mesmo porque a própria Lava-Jato vai se encarregar de não dar sossego aos petistas, inclusive ao jovem senador.

Dilma foi cassada por crime de responsabilidade fiscal, decretos secretos para financiar um rombo de milhões, criar uma ilusão de prosperidade e vencer as eleições. Repetiu o erro em 2015. Se não fosse cassada por isso, seria pelos fatos de Curitiba: campanha com dinheiro do Petrolão, tentativa de obstruir a Justiça. O que vem de Curitiba não resulta apenas em impeachment, mas possivelmente em anos de cadeia. E cadeia, jovem senador, é um lugar que sintetizo numa frase que vi em várias celas onde estive preso e dezenas que visitei: “aqui, o filho chora, e mãe não ouve”.

Se olhamos para o futuro, pela ótica da transparência, a derrota de domingo será difícil de explicar para milhares de pessoas que acreditaram mesmo que havia um golpe em curso. Elas vão perceber que foram usadas como um álibi porque seus líderes tratavam mesmo de escapar da polícia, como aliás já ficou provado no áudio Lula-Dilma.

Essa tática do PT serve apenas para deixar mais arrasado o lado esquerdo do espectro político. As forças conservadoras que já eram fortes tornaramse mais articuladas, milhares de jovens foram confrontados com a ideia de uma esquerda cínica, corrupta, autoritária.

De uma certa maneira, os discursos contra o PT foram um bálsamo para o partido. Olhem quem está nos derrubando. Mas todos sabemos que não foram derrubados pela Câmara, e sim pela sociedade. Nas ruas, era o discurso de Brasil moderno, contra a corrupção, pela transparência, por serviços públicos decentes, a rejeição do populismo bolivariano. Na rua, havia famílias sonhando com um projeto mais amplo; na Câmara, os deputados reduziram os destinos do país às suas próprias famílias. Isso marca uma distância, mas no essencial cumpriu-se o desejo da maioria.

Era o instrumento legal que a sociedade tinha para se defender, por mais repugnantes que sejam algumas ideias que circulam ali. Tenho repetido isso, como um privilégio da idade. Os impeachments ocorrem num período de cerca de 20 anos. Se a frequência for mantida, este foi o último a que assisti na Câmara. Reste o do Senado, onde se toma muito chá, e espero uma elevação do nível. Se vierem com essa história de Deus, família, filhos e netos, saco da arma que uso sempre que me entediam: um bom livro.

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