Dizem que o problema do Brasil é a incapacidade política de levar a cabo o inevitável ajuste fiscal. Contudo é igualmente possível dizer que o nó brasileiro reside no imenso desafio de convencer a classe política e a sociedade de que o modelo nacional de Estado de bem-estar promulgado pela Constituição de 1988 e subsequentemente turbinado pelas políticas do PT faliu. E é essa falência, somada aos desdobramentos dos escândalos de corrupção, que travam a política e impedem o ajuste.
Documento, amplamente citado na imprensa, preparado pelo PMDB expõe claramente o que todos os economistas de bom senso do País já sabem: para retomar a solvência das contas públicas é preciso implementar pacote de ditas maldades, que a sociedade brasileira não parece preparada para aceitar. Trata-se de acabar com a estapafúrdia regra de indexação do salário mínimo, de eliminar os vínculos entre receitas e despesas orçamentárias que impedem a execução adequada da política fiscal, de quebrar as regras automáticas de reajustes dos benefícios mais diversos, de reformar a Previdência.
Todavia, apesar da óbvia constatação de que em qualquer país do mundo o povo jamais está preparado para abrir mão de conquistas que drenam o Estado quando este perdeu a capacidade de se sustentar financeiramente, economistas de renome preferem a saída pelo clichê. É mais fácil culpar o sistema político. E é mais fácil porque assim se justifica a ideia do momento: esperar para ver o que acontece. Não que se admitam de pronto as implicações perversas da paciência dilatada. No caso, trata-se não de exercer a serenidade, resguardar-se, ou de cerrar fileiras; trata-se, antes de tudo, de jogar a toalha. O Brasil não tem política fiscal porque o Congresso não deixa, ou não tem consenso político no Congresso porque a política fiscal que realmente é necessária não o permite? Eis o velho e inútil dilema do ovo e da galinha, aquele que ilustra o problema da endogeneidade. Não há política fiscal sem política. E se a política é a arte da redistribuição de recursos do Estado, tampouco há política sem política fiscal. Logo, afirmar que a dominância política prevalece sobre a dominância fiscal que paralisa a economia brasileira é não compreender a natureza do problema. Dominância política e dominância fiscal são, afinal, dois lados de uma só moeda – aquela cujo destino é perder valor ante a disfuncionalidade instaurada.
Toalha no chão não é ideia boa. Não há ajuste fiscal porque a política não deixa. Se a política não deixa que o ajuste seja feito, não pode haver mais nada, segue a lógica niilista daqueles que desqualificam o debate sobre a crise brasileira como punhado de ideias que por um dia de prazer trariam mais de ano de sofrer.
Economias que padecem de desajustes fiscais consideráveis, como é o caso do Brasil, não podem prescindir de algo que segure a inflação, a variável de ajuste por excelência quando nada mais restou. Portanto, a dita “espera” corresponde a uma escolha declarada por mais inflação enquanto se aguarda uma definição dos rumos que a política fiscal haverá de tomar. A enormidade dos desafios sugere que a paralisia política e da política macroeconômica haverá de ser duradoura.
Enquanto isso, muitos hão de padecer com a elevação dos preços, ao mesmo tempo que um punhado haverá de ganhar com a inflação ascendente. Esse é o resultado trágico de jogar a toalha, o enorme retrocesso dos ganhos sociais e da travessia para a estabilidade macroeconômica tão duramente conquistada. Será mesmo que passar por isso novamente é melhor do que pensar em formas de evitar a escalada inflacionária enquanto o ajuste não vem?
Recentemente, propus que o câmbio fosse utilizado como forma de impedir, temporariamente, o descontrole dos preços. A ideia não é original, tampouco heterodoxa, embora alguns tenham sido céleres em tratá-la como heresia. “As reservas internacionais do País devem ser preservadas a qualquer custo”, disseram uns. “Tal ideia nos levaria às crises cambiais dos anos 90”, argumentaram outros. “Quem sabe dá certo, e aí mesmo é que o governo não haverá de sentir-se pressionado a avançar nas propostas de ajuste das contas públicas”, retrucaram os poucos com quem tendo a concordar. Aos que se sentiram afrontados com a ideia, a constatação: não é preciso vender reservas para manter o câmbio em determinada faixa de variação. Afinal, países mundo afora, e o Brasil não é exceção, dispõem de formas de influenciar a taxa de câmbio que não passam pelo Banco Central. No Japão, por exemplo, é prática comum usar instituições do sistema financeiro local para ajudar o Banco Central a controlar bruscas flutuações pontuais da moeda.
A considerar o texto da última ata de política monetária do Copom, há quem julgue que a autoridade monetária brasileira tenha jogado a toalha, seguindo os que aconselham a paciência. Há, porém, algo de intrigante no reino dos mercados de câmbio brasileiros. Desde o dia 5 de outubro, uma semana após o dólar ter ultrapassado a marca dos R$ 4,20, a cotação da moeda americana tem oscilado entre cerca de R$ 3,70 e R$ 3,95, a despeito da crise política – e das inúmeras más notícias veiculadas pelos jornais todos os dias. Coincidência cósmica? Fruto da ideia de que o Brasil está barato, “em liquidação”? Talvez. Mas é difícil não enxergar algo silenciosamente sustentado por diversas instituições financeiras públicas numa tentativa de auxiliar os esforços do Banco Central no combate inflacionário sem juros.
Eis, portanto, que, apesar da retórica e do repúdio à ideia de que o câmbio seja ainda a linha de última defesa contra a imperatriz de todos os nossos males econômicos, opiniões revestidas de teses macroeconômicas chocam-se frontalmente com as imposições de natureza prática. Pelos santos, beijam-se os altares. Pelo controle da inflação, abençoa-se o câmbio.
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