sábado, julho 05, 2014

À sombra dos imortais - MIRIAM LEITÃO

O GLOBO - 05/07

Doeu em nós, em cada um de nós. E, ao fim do jogo contra a Colômbia, já nas quartas de final, o Brasil ainda não respirava aliviado com medo da dor que viu no rosto do garoto que, imprevisível, é capaz de tudo. Até mesmo de não fazer uma boa partida, como ontem. A notícia dos médicos foi a que temíamos: Neymar, vértebra fraturada, e fora da Copa.

Passei o dia visitando textos que estão longe do meu campo. O que diria de um jogo como o de ontem um cronista como Nelson Rodrigues? Jogo cuja notícia mais dramática veio após encerrada a partida e foi dada pelos médicos.

Que mistério têm certos cronistas esportivos brasileiros que deixaram obras imortais? Textos sobre um fato conjuntural viram peças literárias lidas com prazer, décadas depois. Revisitei poesias e crônicas do futebol para me espantar, de novo, com sua perenidade. Embalada pelos clássicos, apreciei o jogo dos zagueiros: o capitão Thiago Silva e David Luiz. Até o momento em que Neymar caiu em dores.

Meu hóspede, o jornalista finlandês, me surpreendeu dia desses pedindo para consultar meus livros de Nelson Rodrigues. Separados deles temporariamente - em hora errada, confesso - tive que me socorrer de amigos. Pergunto a uma sobrinha: “Cadê o seu ‘À sombra’?” Nem preciso dizer “das chuteiras imortais”. A pátria de chuteiras sabe de que livro estou falando. “Os jogadores já partiram e o Brasil vacila entre o pessimismo mais obtuso e a esperança mais frenética”, escreveu Nelson na última crônica antes da Copa de 1958. E 56 anos, e cinco títulos depois, ainda estamos assim flutuantes e polares em nosso humor e confiança na seleção.

Um amigo me empresta outros livros, do Nelson, Saldanha, Paulo Mendes Campos. Eles chegam lidos, usados, suados como jogadores ao fim da partida. Ficam mais lindos assim tão lidos.

"O Gol é Necessário" diz o título do livro de Paulo Mendes Campos que de tão bonito nem quero devolver mais ao seu legítimo dono. "A bola, rápida, cai/Passando/ Por entre braços erguidos/Do garboso jogador. Palmas, delírio–grandeza!?/Alguém atira uma rosa/Para os "onze" vencedores/ E ao longe o sol agoniza/ – Numa boêmia de cores". O título do poema de Paulo Mendes Campos é uma afirmação: "Poesia é necessária, mas foi frango". Não é preciso saber quando foi, que jogo era aquele, quem engoliu o frango. Basta saber o quanto o futebol, em seus pequenos detalhes, inspira os poetas. Que poema ele escreveria para o menino Neymar, nossa maior esperança, agora fora da Copa do Brasil?

Mas por que esta coluna joga a economia para escanteio e invoca os imortais das letras esportivas? Espero ter a compreensão dos leitores para o fato de que ontem foi uma sexta diferente. Após semanas de jogos memoráveis, dois enfrentamentos inesquecíveis. França e Alemanha, a terceira guerra mundial, felizmente travada nos pacíficos gramados do Maracanã. Melhor, para a Alemanha nesta guerra. E agora é ela que enfrentaremos em terras mineiras. Depois, vencemos o nosso jogo. “Eis a verdade: o Brasil estava devendo a todos nós uma vitória como a de ontem”, diz Nelson Rodrigues em 28 de junho de 1958. A vitória de ontem nos deixou em pânico. Não pelo jogo. Ele foi difícil mas vencemos. A derrota maior veio depois.

Alguém pode perguntar, como é que Nelson Rodrigues, nunca traduzido, chegou ao conhecimento de um jornalista finlandês? Ele me disse que precisa entender a cultura brasileira do futebol. Eis mais um mistério de certos cronistas esportivos. Seus textos ficam e são eles que nos explicam. Os imortais, o que diriam da vértebra quebrada que pesa sobre cada um de nós?

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