segunda-feira, março 25, 2013

A última palavra - LUÍS EDUARDO ASSIS

O ESTADO DE S. PAULO - 25/03

Disse uma vez Machado de Assis que sempre existe a maneira certa de começai" uma história com uma trivialidade. Pois aqui vai uma tentativa. Imaginemos um estádio de futebol, desses que possivelmente ficarão prontos para a Copa do Mundo, totalmente tomado por 65.536 pessoas (ficará claro, adiante, que facilita se o número for uma potência de 2). Digamos, agora com alguma concessão criativa, que todos estão lá para um campeonato de par ou impar. A cada rodada, acompanhada por dezenas de milhões de torcedores, metade dos participantes perde a disputa e deixa o estádio. Em 15 rodadas, supondo com boa vontade que a organização do evento funcione, teremos frente a frente dois contendores apenas. Mais uns poucos minutos de suspense e saberemos quem é o grande campeão.

Muitos verão nisso um grande feito: o vencedor terá derrotado implacavelmente dezenas de milhares de competidores, depois de cravar um palpite certo 16 vezes consecutivas. Entrevistado em rede nacional no fim da peleja, o que dirá o nosso súbito herói? Que é um homem de muita sorte? Dificilmente. E mais provável que o eufórico vencedor (que não gosta de ópera e não se lembra da letra de Fortuna Imperatrix Mundi, de Carl Orff) atribua sua incrível vitória a uma técnica que só o seu talento natural foi capaz de desenvolver. Lembrará o exaustivo treinamento e dedicará a vitória a alguém. Não será surpresa se fizer menção a uma suposta predestinação a que só os escolhidos têm direito.

Na política econômica esse tipo de falsa percepção também é frequente. Fatores externos às decisões do governo são muitas vezes relevados em favor de uma interpretação mais magnânima e autocomplacente. Seria demais esperar o contrário, obviamente. As pessoas em geral - e mais ainda aquelas que têm a política como vocação ou ofício - relutam em atribuir o próprio sucesso a algo fortuito e preferem acreditar que são capazes de reger garbosamente uma orquestra que escutam no rádio.

Mas o fato é que, em medida relevante, o Brasil foi nos últimos anos agraciado por fatores extemporâneos que em nada se relacionam com a nossa capacidade de tomar decisões corretas.

Tomemos o mercado de commodities, por exemplo. Ao contrário do que pensam alguns analistas internacionais, a economia brasileira não depende diretamente da exportação de commodities. Apesar de importante, o agronegócio de exportação não é suficiente para sustentar o crescimento do PIB. Mas, regra geral e simplificadamente, valorizações nas cotações internacionais dos produtos exportados tendem a provocar redução na taxa cambial, o que abre espaço para a aceleração do crescimento sem maiores pressões sobre a inflação (já que os produtos importados ficam mais baratos). Inversamente, queda nos preços internacionais pode pressionar o câmbio e estimular a inflação, o que induz à elevação de juros e queda do crescimento econômico.

A correlação entre a variação trimestral anualizada do PIB e a variação do índice de preços das commodities entre 1991 e 2012 é da ordem de 74,6%. Tendo em mente essa referência, são notáveis as diferentes trajetórias dos preços internacionais nos últimos anos. Ao longo do governo FHC, entre dezembro de 1994 e dezembro de 2002, o índice de preços das commodities desvalorizou 36,3%. O presidente Lula conviveu com outro cenário. Durante sua gestão, os preços das commodities valorizaram nada menos que 1814%. A gestão da presidente Dilma, para finalizar, coincide com uma queda de 15% entre dezembro de 2010 e dezembro de 2012.

É equívoco argumentar que o sucesso do governo Lula se deva apenas à roda da fortuna. Houve mérito, entre outros pontos, em romper com dogmas do programa econômico original do PT (providencialmente substituído pela sucinta Carta ao Povo Brasileiro em julho de 2002), em tirar proveito da baixa capacidade de endividamento para alavancar o consumo e em fortalecer um programa de distribuição direta de renda (o Bolsa-Família) que replica, ironicamente, uma ideia liberal há tempos defendida pela revista The Economist. Mas a bonança internacional foi um ingrediente fundamental para o crescimento da economia nesse período.

Deu certo enquanto durou. A capacidade de endividamento das famílias se esgotou, a economia gira em falso, movida pelo escasso dinamismo do setor de serviços, e a valorização cambial não pode seguir adiante, sob pena de solapar de vez o que restou da indústria de transformação (nos últimos dez anos os salários industriais em dólar subiram nada menos que 321%). Qualquer que tenha sido sua importância, a sorte virou.

O descaso com a concepção de um modelo de crescimento de longo prazo cobra agora seu preço. Comemos as sementes, e agora há pouco a plantar. O raio de manobra da política econômica se estreitou, as opções são poucas e o governo tateia freneticamente num labirinto escuro, vítima da hiperatividade. Vivemos uma soturna combinação entre baixo crescimento e inflação ainda alta.

Atende pelo esdrúxulo nome de apofenia a distorção cognitiva de perceber um padrão de comportamento ou uma deliberada estratégia em situações que são meramente aleatórias. Convém não cair na tentação de subestimar o fato importante de que a sorte muda e, com ela, mudam os destinos dos homens - e mulheres. O longo período pré-eleitoral será uma corrida contra o tempo, com o governo torcendo para que o baixo crescimento não contamine o mercado de trabalho e afete os humores do eleitorado. A presidente, manietada por uma coalização de interesses conflitantes, resta pouco mais do que dizer se vai dar par ou ímpar. Como já disse Simone de Beauvoir, o acaso tem sempre a última palavra.


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