quinta-feira, janeiro 03, 2013

Experiência para 2013 - CONTARDO CALLIGARIS

FOLHA DE SP - 03/01


A vida deixa marcas e feridas na roupa e na gente, escondê-las seria esconder nossa maior riqueza


Vinte anos atrás, fui ao casamento de uma amiga em Saratoga Springs, no norte do Estado de Nova York. Era o fim do inverno; a cidade ainda não recebera a turma das águas termais, que chega na primavera, e ainda menos a turma das corridas de cavalos, que acontecem no verão.

Na noite antes da festa, passeando pela rua principal (que, se não me engano, chama-se Broadway), entrei numa loja para fugir do vento. Num canto, estavam os restos dos restos das liquidações de inverno, descontados até não poder mais: as camisas custavam US$ 5 (R$ 10, mais ou menos). Adquiri duas camisas idênticas de sarja pesada, de um cinza escuro, quase preto. Eram as últimas duas no meu tamanho.

Desde então, com o uso, a sarja se tornou mais macia e a cor desbotou um pouco. Por sorte minha e das camisas, isso aconteceu ao longo de uma época que me parecia valorizar, digamos assim, as marcas da experiência. É dessa forma que sempre entendi a moda do brim desbotado, das bainhas desfeitas e desfiadas ou das calças jeans furadas e rasgadas: a vida deixa marcas e feridas na roupa e na gente, escondê-las (por exemplo, atrás de roupas novas) significaria esconder a maior riqueza que acumulamos, a dos percalços de nossa existência -que eles tenham sido bons ou ruins, tanto faz.

Um dia, 8 anos atrás, a manga de uma dessas camisas brigou com a maçaneta de uma porta, e o tecido foi rasgado, na forma de um sete -de cinco centímetros por oito.

Mandei consertar, sem dissimular o remendo. Afinal, o mundo me parecia maduro para isso: tanto eu quanto minha camisa (que se tornou a preferida das duas) podíamos mostrar sem vergonha as marcas dos anos e das batalhas.

Durante muito tempo, carreguei meu remendo na manga como o distintivo de uma honrada patente militar. Ou como uma declaração à la Neruda, feita por mim e por minha camisa: "confesso que eu vivi".

Como disse, minha confiança no espírito dos tempos era um pouco ingênua, e isso foi revelado nos últimos dias, quando, de repente, um menino de dez anos apontou o dedo para a manga de minha camisa e estranhou: "Mas este é um rasgo?".

Pensei que ele estivesse censurando o que talvez lhe aparecesse como desleixo: por que eu não compraria uma camisa nova e pararia de impor ao mundo a triste visão de um remendo? Mas logo percebi que ele estava usando uma calça jeans rasgada com afinco, de modo que era suficiente ele dobrar levemente as pernas para que seus joelhos estivessem ao ar livre.

Agora, a própria existência de calças rasgadas e desbotadas para crianças invalida meu entendimento de que os nossos tempos valorizariam a experiência. Pois, mesmo vivendo intensamente, uma criança não teria tempo para maltratar sua calça a ponto de lhe imprimir um "look" rasgado radical.

Conclusão: para o menino, meu rasgo e meu remendo eram ruins porque eram verdadeiros. Enquanto os rasgos da calça jeans dele eram bons porque eram de mentira. Ou seja, o que ele aprendera a valorizar não era a experiência real (pressuposto de eventuais acidentes com suas calças), mas os rasgos falsos, ou seja, a pura aparência da experiência.

Entendo que adolescentes e pré-adolescentes tentem aparentar "quilometragem". Alguns, aliás, fazem "besteiras" para acumular logo experiências que lhes permitam se comparar aos adultos. Outros (hoje mais numerosos, talvez?) fazem menos besteiras, porque escolhem um atalho (que os pais, em geral, adoram propor): eles descobrem que arriscar-se a viver é mais difícil e mais cansativo do que acumular e exibir as falsas aparências da experiência. Para eles, os rasgos falsos são propriamente melhores do que os verdadeiros. E brincar é sempre melhor do que viver.

Escrevo esta coluna no dia 31. Estou perto de Times Square. Ao longo da tarde, periodicamente, ouço uma "hola" das pessoas que já esperam para o fim do ano. A "hola" corresponde aos momentos em que as redes de televisão ligam as câmeras. Faz frio e ficar 12 ou 14 horas em Times Square é chato. À meia-noite, você dará um abraço e um beijo nos amigos que estão com você, mas isso você poderia ter feito em casa ou numa festa. A razão de estar em Times Square não é sua experiência, é a aparência de alegria que você talvez possa mostrar ao mundo, na televisão.

Para todos, os votos de um 2013 com rasgos e remendos reais, ou seja, de uma vida que não precise ser confundida com um reality show para convencer aos outros (e à gente) de que ela vale a pena.

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