segunda-feira, novembro 19, 2012

Capitão América - DORRIT HARAZIM


O GLOBO - 19/11


NOVA YORK. — É de se supor que o general David Petraeus, fosse ele francês, teria a vida bem menos encalacrada. Não é de hoje que os franceses olham com comiseração para alguns aspectos da vida americana. E a vigilância em torno da conduta amorosa de pessoas públicas nos Estados Unidos sempre despertou curiosidade quase antropológica do outro lado do Atlântico.

A França é o país de Dominique Strauss-Kahn, ou DSK, defenestrado da direção do Fundo Monetário Internacional no ano passado, acusado de ter atacado sexualmente uma camareira de hotel em Nova York. O episódio atrapalhou seus planos de disputar a presidência do país como candidato do partido socialista, mas não esfarelou de todo o seu poder. Sua estatura como eminência nacional só ruiu quando ficou claro que ele também integrava uma rede de prostituição de altíssimo calibre, coisa de 13 mil dólares por soirée, envolvendo juízes, jornalistas, advogados da elite.

A linha de defesa escolhida pelos advogados de DSK para o julgamento que entra numa fase decisiva no final deste mês não poderia ser mais francesa: as autoridades estariam “criminalizando o desejo”.

— Sempre pensei que pudesse conduzir minha vida como quisesse. E isso inclui um comportamento inteiramente livre e consensual entre adultos — declarou o acusado em seu primeiro pronunciamento público sobre as bacanais organizadas para seu desfrute.

Considera-se adepto legítimo, embora tardio, da Libertinage, a escola de comportamento que desde o século 17 encontra abrigo particularmente fértil na França e que, entre outros, elege como objetivo de vida o prazer pessoal, rompendo com a estrutura moral vigente. “Mas afastei-me demais das normas de nossa sociedade”, acrescentou o acusado. “Fui ingênuo”, concuiu.

Também só poderia ser francês o diplomata abordado no auge da Guerra Fria por um agente soviético disposto a aliciá-lo através de chantagem. A arma da KGB era um lote de fotos com cenas de sexo entre o diplomata e uma mulher que não era a titular. Segundo a versão embelezada que passa de geração em geração, o chantageado teria colocado os óculos para melhor apreciar as imagens e apontado para duas delas: “Fico com essa aqui e mais essa outra”, teria dito, satisfeito. Chantagear um francês por comportamento sexual rende pouco.

Na América de David H. Petraeus, 24 dos 50 estados consideram adultério um crime — inclusive a Virginia, estado de residência do general. E, pelo código militar de 1947, integrantes das Forças Armadas dos Estados Unidos envolvidos em relação extraconjugal devem responder a uma corte marcial. Já a tentacular Central Intelligence Agency (CIA), que Petraeus comandou até a semana passada, quando seuaffair com Paula Broadwell veio a público, é regida por normas que não seguem nem o código civil nem o militar do país. Como em todas as grandes agências de inteligência do mundo, essas normas seguem critérios de segurança nacional. E é por brecha nesse quesito que o caso todo foi parar na Casa Branca — ou pior, demorou para chegar lá.

Como general de quatro estrelas, David Petraeus tinha dois apelidos além do Peaches (Pêssegos) de seus tempos de adolescência: Rei David e Capitão América. Chegara aos 60 anos de idade como o militar mais admirado, condecorado, paparicado pela mídia e invejado pelos pares. O único, por sinal. Num país em constante busca de um herói, Capitão América lhe caía como uma luva. Ao encerrar a carreira militar para assumir o comando da CIA, catorze meses atrás, fora uniformemente saudado como brilhante, tanto na condução da retirada dos Estados Unidos do atoleiro iraquiano como no comando de uma saída para a guerra no Afeganistão. Não importa que as duas afirmações ainda haverão de merecer sérios reparos — a imagem do general era essa, ponto. Mesmo na chefia da CIA, já sem uniforme e de cabelo pintado, essa aura o acompanhou.

O problema do rumoroso caso Petraeus, que já foi comparado a uma cebola, tantas são as camadas que a cada dia revelam novas camadas cada vez menos edificantes, não está no comportamento do homem. Descontando-se as peculiaríssimas circunstâncias pelas quais o FBI é acionado para investigar um punhado de e-mails anônimos e acaba descobrindo que numa das pontas está Capitão América, resta uma questão grave. A única, por sinal, que seria levada a sério até mesmo na França. Como e por quê o presidente dos Estados Unidos e comandante e chefe das Forças Armadas do país foi o último a saber (depois, inclusive, da senhora Petraeus) que o chefe do maior serviço de inteligência do mundo estava sendo investigado há seis meses pelo FBI?

Supõe-se que o ocupante da Casa Branca soubesse manter sigilo, se achasse próprio, quando informado do romance extraconjugal de seu homem de confiança. Afinal, David Petraeus não era ministro da Pesca. Comandava o serviço de inteligência de um país em guerra e inúmeras frentes de alerta (o ressurgimento da al-Qaeda na Líbia, a insurgência islâmica no Iêmen, a guerra civil na Síria, a ameaça nuclear no Irã, os rumos da Primavera Árabe), sem falar na eclosão do conflito aberto entre Israel e palestinos que mobiliza todo o Oriente Médio desde sexta-feira.

Manter Barack Obama deliberadamente alheio ao caso Petraeus até 24 horas após sua reeleição, na terça feira 6 de novembro, alimenta várias teorias conspiratórias da direita derrotada. Nenhuma delas, contudo, tem mais força do que os fatos, e estes indicam uma falha grave na cadeia de comando da nação.

Nem o general Charles de Gaulle, que era monógamo por vocação, nem o presidente francês François Mitterrand, que foi bígamo por convicção, aprovariam.

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