segunda-feira, junho 04, 2012

O laranjal da Delta - REVISTA VEJA

REVISTA VEJA

Um relatório do Coaf flagra a empreiteira movimentando mais de 100 milhões de reais em "operações atípicas" com empresas-fantasma. A suspeita é que o dinheiro tenha sido usado para pagar propina e financiar

Rodrigo Rangel e Hugo Marques

O policial civil aposentado Alcino de Souza é dono de uma empresa que só existe no papel. Por emprestar o nome à firma, ele mesmo conta que recebia 1 500 reais mensais. O valor é quase nada perto do que passa, ou passava até pouco tempo atrás, pelas contas bancárias da GM Comércio de Pneus e Peças Ltda., que tem como sede um pequeno escritório de contabilidade em Goiânia. Em um período de apenas sete meses, entre novembro de 2009 e maio de 2010, a GM do policial Alcino recebeu depósitos superiores a 6 milhões de reais. O dinheiro foi remetido à empresa do policial pela empreiteira Delta, que está no epicentro do escândalo que deu origem à CPI do Cachoeira, sob suspeita de funcionar como uma central de pagamento de propina a políticos e funcionários públicos. A loja de pneus é aquilo que o dicionário da corrupção chama de empresa-fantasma. Alcino é o laranja, aquele que empresta o nome para esconder a verdadeira identidade do dono. Ambos são exemplos acabados do que a CPI do Cachoeira pode estar prestes a seguir: a trilha do dinheiro que abasteceu campanhas políticas e pagou propinas a servidores públicos. Um cofre que esconde segredos de mais de 100 milhões de reais.

VEJA teve acesso a um relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), órgão do governo federal encarregado de monitorar transações suspeitas de lavagem de dinheiro, em que a Delta aparece relacionada a movimentações atípicas entre 2006 e o ano passado. São operações que, pelas regras do sistema oficial de combate a ilícitos financeiros, fogem ao padrão – como foi o caso da GM Pneus. De uma hora para a outra, a empresinha goiana passou a registrar grandes movimentações em sua conta, o que chamou a atenção dos fiscais, que registraram isso no relatório. Na última quarta-feira, VEJA localizou o policial-laranja. Surpreso, Alcino contou que virara sócio da GM a pedido do patrão, o empresário Fábio Passaglia. Disse que, além de emprestar o nome, era uma espécie de office boy: tinha a incumbência de sacar os valores que entravam na conta da empresa, acondicionava os maços em sacolas e entregava-as ao chefe. "Quem ensacava o dinheiro era eu. Eu ensacava e entregava para ele", diz o policial.

Fábio Passaglia, o sujeito que deveria ficar oculto, o homem que recebia o dinheiro em espécie das mãos de Alcino, tem estreitas ligações com a política de Goiás. Mais especificamente, com o PMDB. Ele foi auxiliar dos ex-governadores Íris Rezende e Maguito Vilela, as duas maiores lideranças do partido no estado. Alcino jura que não sabia que o dinheiro vinha da Delta. Mas, como investigador que foi, demonstra ter plena consciência de que atuou como parte de um esquema poderoso – e criminoso. "Eu sei que tem gente grande envolvida nisso, mas não posso falar porque tenho medo de morrer", disse ele. O empresário assumiu o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Aparecida de Goiânia em 2009, na gestão Maguito Vilela, mas deixou o cargo no ano passado. O Ministério Público impetrou ação de improbidade administrativa contra Maguito por negócios irregulares com empresas, incluindo a Delta Construções. O policial disse que só descobriu que o dinheiro que entrava na companhia era oriundo da Delta quando estourou o escândalo envolvendo a empreiteira com o contraventor Carlos Cachoeira. A VEJA, Passaglia confirmou que a GM é fornecedora da Delta. O problema é que a empresa não tem um único pneu em estoque – aliás, nunca teve.

O caso da loja-fantasma de pneus é mais um em meio às dezenas de empresas, muitas de fachada, para as quais a Delta repassava parte dos 6 bilhões de reais faturados em contratos públicos nos últimos dez anos e ilustra bem o motivo da preocupação de muitos políticos com a iminente devassa nas contas da empreiteira. As investigações sobre a Delta – inclusive na CPI do Cachoeira, que na semana passada aprovou a quebra do sigilo das contas da empreiteira em todo o país – ainda têm muito que revelar. Algumas das transações listadas pelo Coaf são explicáveis, como pagamentos feitos pelo governo federal ou por governos estaduais que caíram na malha fina porque, provavelmente, os bancos não foram avisados a tempo de que a empreiteira receberia aqueles depósitos. Outras operações, porém, contribuem para tomar mais sombrias as suspeitas que recaem sobre os negócios da empresa. Uma parte significativa das transações relacionadas pelo Coaf confirma a suspeita de que o laranjal da Delta vai ale"m de Goiás – e revela um método para ocultar a movimentação de dinheiro.

Do total de operações suspeitas listadas no relatório envolvendo a Delta, há pelo menos 115 milhões de reais relacionados a empresas-fantasma, normalmente usadas para fornecer notas fiscais que são emitidas apenas para simular a prestação de serviços que nunca existiram. Um modelo, aliás, que é marca da atuação da Delta e que se encaixa à perfeição no padrão de atuação da empreiteira explicitado por seu dono, Fernando Cavendish, numa conversa gravada com dois ex-sócios. No diálogo, Cavendish escancarava a receita para conseguir bons contratos junto ao poder público: "Se eu botar 30 milhões de reais na mão de políticos, sou convidado para coisas para "c...". Pode ter certeza disso!". Não era bravata. Esses mesmos ex-sócios revelaram a VEJA, na ocasião, que Cavendish utilizava notas fiscais frias para justificar a saída de dinheiro que, na realidade, ia parar no bolso de políticos e funcionários que ajudavam a abrir portas e conseguir contratos milionários no serviço público. Foi por esse expediente, aliás, que Cavendish contratou os serviços de "consultoria" do mensaleiro José Dirceu em troca de maior presença da Delta entre os fornecedores da Petrobras.

Pois é exatamente esse expediente comum nos negócios da Delta, fechados majoritariamente com governos e empresas públicas, que deverá ser inevitavelmente exposto com o avanço das investigações sobre as contas da empreiteira. O laranjal é o mapa da mina que pode levar aos beneficiários finais do dinheiro que sai do caixa da empreiteira rumo às contas suspeitas. O relatório do Coaf lista oito empresas de fachada, situadas em São Paulo, Rio de Janeiro e Goiás e registradas em nome de laranjas, que aparecem como destinatárias, direta ou indiretamente, de recursos remetidos pela matriz da Delta nos últimos cinco anos. As operações seguem um padrão: todo o dinheiro que entra nas contas sai logo em seguida, na maioria das vezes na forma de saques diretos na boca do caixa e em valores próximos, mas sempre inferiores a 100000 reais, de modo a tentar evitar o controle dos órgãos de fiscalização. Outro dado comum, e que reforça as suspeitas de que por trás dos laranjas está a rede de corrupção da empresa, é que boa parte das transações que acenderam o sinal de alerta do Coaf se deu nos anos eleitorais de 2006, 2008 e 2010. Coincidência? Tudo indica que não.

Do total de 115 milhões de reais em transações suspeitas apontadas no relatório, 47,8 milhões foram remetidos pela Delta nacional para as empresas Legend Engenheiros Associados (23,2 milhões), Rock Star Marketing (3,9 milhões) e S.M. Terraplenagem (20,7 milhões), as três com endereço em São Paulo. E repete-se o enredo. Nos registros oficiais, a Legend tem como proprietário o técnico em refrigeração Jucilei Lima dos Santos, pai de três filhos, morador de um sobrado modesto no Carandiru, bairro da Zona Norte de São Paulo. Localizado por VEJA na semana passada, Jucilei disse desconhecer a existência da Legend. "Não sei nem que empresa é essa. Nunca nem ouvi falar", afirmou. A S.M. Terraplenagem e a Rock Star estão registradas em nome das irmãs Sandra e Sônia Branco. E foram criadas em 2005, quando a Delta se consolidava como uma das maiores fornecedoras de serviços para o governo. Em todos os casos, o Coaf chama atenção para a maneira como os saques eram efetuados, sempre na boca do caixa, de modo a despistar qualquer tipo de controle.

Por trás dessa trinca de empresas está o empresário Adir Assad, conhecido no mercado de artes e espetáculos de São Paulo como captador de patrocínio para shows. E a relação com a Delta? Assad não quis dar entrevista, mas confirmou ser o dono de fato das empresas e que presta serviços de "marketing, treinamento e locação de equipamentos para a Delta". Por meio de seu advogado, justificou os saques vultosos como argumento de que, como trabalha em eventos, necessita ter dinheiro em espécie – e que nunca teve nenhuma relação com políticos ou partidos. Em 2008, a Legend fez uma doação ao comitê do PT em Campo Grande, capital de Mato Grosso do Sul. Indagado a respeito, Assad disse que havia se esquecido.

As informações de que o Coaf dispõe podem servir como bússola para guiar a investigação que a CPI terá de fazer a partir da quebra de sigilo da Delta. Para além dos laranjas, as "operações atípicas" indicam que os saques de dinheiro feitos pela matriz da empreiteira sempre aumentavam nos períodos eleitorais. Em 2006, o Coaf registrou 59 saques sucessivos da Delta ao longo dos trinta dias que antecederam as eleições, somando 5 milhões de reais. O responsável pelos saques foi o gerente financeiro da empresa, Alexandre Wilson Pinto. Mais um dado revelador que deve chamar a atenção da CPI: algumas das empresas de fachada usadas pela Delta aparecem recebendo volumosas quantias de outras grandes empreiteiras detentoras de contratos com o poder público, como a EIT e a Triunfo, prestadoras de serviços para o Ministério dos Transportes, e a UTC, cliente da Petrobras. Em se tratando de CPI, o que era cachoeira virou tsunami. Que certeiro tiro no pé se deu o lulismo!

Uma construtora a deriva

Menos de um mês depois de anunciar sua intenção de assumir a Delta, o grupo J&F holding que controla o frigorífico JBS-Friboi, desistiu do negócio. O contrato que previa, além da gestão, uma opção de compra da Delta pela J&F será rescindido antes que qualquer relatório independente sobre a real situação da construtora tenha sido finalizado, como era esperado. Segundo Joesley Batista, presidente da J&F, gerir a Delta ficou inviável. A empresa não dispõe de credibilidade mínima para obter financiamentos no mercado financeiro. As perspectivas pioraram depois que os contratos entraram no centro das investigações da CPI do Cachoeira, inclusive com a quebra do sigilo bancário da empresa. Dois terços das administrações públicas que mantêm negócios com a Delta suspenderam o pagamento à construtora, que também não consegue mais tomar dinheiro emprestado. Em maio, ela gastou 200 milhões de reais com as obras, mas recebeu apenas 137 milhões de reais. A asfixia financeira prenuncia dias difíceis. Na quinta e na sexta feira, a construtora suspendeu o salário de parte dos seus 30000 funcionários. O próximo drama será a paralisação das obras de 100 de seus 150 clientes, entre municípios, estados e União, uma vez que ela deixou de receber pelos projetos. A Delta é a construtora com mais obras do Programa de Aceleração Crescimento (PAC). "Quando entramos na Delta, percebemos que havia uma brutal crise de confiança em relação à empresa", disse Joesley Batista a VEJA. "Acreditávamos que conseguiríamos reverter a situação, sobretudo se a construtora saísse do noticiário político. Mas não foi o que ocorreu". Segundo o empresário, existem dificuldades até para contrata trabalhadores temporários, porque eles estariam evitando se envolver com a construtora. O executivo nega, porém, ter desistido do negócio por sofrer pressões do Planalto. A Delta poderá ser considerada inidônea pelo governo federal, o que a deixaria de fora de obras públicas da União. Pedir à J&F que salvasse a Delta foi mais uma ideia de Lula que produziu um tiro no próprio pé.

MARCELO SAKATE

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