domingo, maio 13, 2012

Fatalidades e voluntarismos - PEDRO MALAN


O Estado de S.Paulo - 13/05/12


"A austeridade não é uma fatalidade", disse o novo presidente da França no dia de sua vitória, domingo passado. Os gregos, que votaram nesse mesmo dia, parecem estar de acordo, assim como muitos outros europeus. A frase de efeito de François Hollande não é incorreta, mas precisa ser situada no contexto do drama em que se debate a Europa desde 2007. Com particular intensidade desde que, há exatos dois anos, os ministros da Fazenda europeus viraram o segundo fim de semana de maio acertando a forma de evitar um então iminente calote grego, e o efeito contágio que isso teria sobre outros países da região - e sobre seus bancos.

Os gregos antigos entendiam de tragédias e as expressavam em seus poemas épicos por meio de belas metáforas, Na Ilíada, o herói atacava uma cidade que sabia que não conseguiria conquistar; e a cidade se defendia valorosamente, sabendo que ao final seria derrotada. Uma pessoa culta como Hollande talvez estivesse querendo dizer, metaforicamente, que as coisas não precisam acontecer porque os deuses dos gregos antigos assim haviam decidido. E que nossa vida e nosso futuro estão em nossas mãos - como sempre estiveram. Nesse sentido, é correto dizer que a austeridade, como muitas outras coisas na vida, não é uma fatalidade.

Mas a frase de Hollande, já como presidente eleito, expressou de forma sintética o sentimento de milhões de europeus. E deu renovado alento a um falso dilema, mais uma genérica dicotomia entre os defensores da "austeridade" e seus antípodas, os defensores do "crescimento", como se essa fosse a fundamental, óbvia - e fácil - opção europeia.

Afinal, por que alguém preferiria sofrer as agruras da "austeridade" quando poderia, livremente, escolher maior crescimento, renda e emprego, votando em quem se proponha a trazê-los de volta - pela força de sua vontade e capacidade para tal empreitada?

A propósito, Linhas de Falha, o belo livro de Raghuram Rajan, teve sua edição brasileira lançada na semana passada. Vale citar o trecho a seguir. "Governos democráticos não são programados para pensar em ações que têm custos a curto prazo, mas que produzem ganhos a longo prazo - que é o típico padrão de retorno de qualquer investimento. Que por vezes governos façam estes investimentos é uma consequência ou de uma liderança incomumente corajosa ou de um eleitorado que compreende os custos de adiar escolhas difíceis. Liderança corajosa é coisa rara. Mas também é raro um eleitorado informado e comprometido, porque os próprios especialistas são muito confusos... o debate não leva a um consenso, os moderados dentre o eleitorado não sabem bem no que acreditar, e o resultado é que as escolhas de políticas seguem o caminho de menor desconforto - até que a situação se torne insustentável".

Mas, como diz adiante o autor, "as democracias são necessariamente generosas, enquanto que os mercados e a natureza não são". E nas inevitáveis respostas a situações que se tornam insustentáveis, muitos governos podem atingir os limites de suas capacidades (de tributar, de gastar, de se endividar, de reformar, de gerir, de investir), ficando tentados a seguir cursos indesejáveis de ação. Enquanto os políticos hesitam em empreender ações dolorosas, mas necessárias, para colocar a economia no rumo apropriado para o crescimento de longo prazo, os problemas se agravam e se tornam mais difíceis de resolver. Como diz Rajan, "mais anos à deriva" levarão ao aumento dos encargos da dívida pública, a mais direitos (ou expectativas de direitos) frustrados ou inacessíveis e a um crescente número de desfavorecidos.

Devo dizer que estou dentre os inúmeros admiradores da "construção europeia" após a 2.ª Guerra Mundial. O que os europeus investiram nesse processo, ao longo de mais de 60 anos, permite certa confiança de que serão capazes, ainda que a elevados custos, de se erguer à altura dos enormes desafios atuais. Porque as lideranças políticas, econômicas e culturais europeias sabem o que está em jogo. E, apesar de seu conturbado processo decisório, deverão fazer o necessário.

O necessário hoje, a meu ver, já está acontecendo. Esse debate sobre "austeridade versus crescimento", quando assim generalizado, é um falso debate. Porém mesmo novas lideranças políticas comprometidas com (e eleitas para) fazer "whatever it takes" (o que quer que seja necessário) para retomar o crescimento sabem, e muito bem, que esta retomada, em muitos países (inclusive na França), não pode ser realizada por meio do aumento adicional dos seus já elevados déficits fiscais anuais e de seus não menos elevados estoques de dívida pública. Na verdade, para muitos países é fundamental reduzi-los, e não apenas não aumentá-los.

A discussão econômica séria hoje na Europa não é sobre se há ou não necessidade de ajustes fiscais. É sobre a possibilidade de recalibrá-los de maneira crível e factível (numa perspectiva de médio prazo) para que a necessária redução dos déficits e dos estoques de dívida seja menos intensamente concentrada nos primeiros anos e, portanto, não tenha efeitos muito negativos sobre o crescimento. Isso é possível e, em alguns casos, necessário. Mas a agenda do crescimento europeu, como a nossa, transcende de muito essa questão.

Por certo, há limites para a austeridade, que podem ser de natureza econômica ou político-social, e que sempre dependem do contexto específico de cada país. Mas também é verdade que há limites para o crescimento, que são ou deveriam ser conhecidos. Governos não decidem, por meio de atos de vontade política, quais serão as taxas de crescimento futuro de uma economia - só os ingênuos, ou arrogantes, pensam assim.

Em resumo, há limites para austeridade, há limites para o crescimento e há limites para o voluntarismo. Nenhum deles é uma fatalidade. Ainda bem.

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