terça-feira, março 13, 2012

Matar crianças, perder a guerra - CLÓVIS ROSSI


FOLHA DE SP - 23/03/12

O crime do soldado dos EUA evidencia que a invasão do Afeganistão é um imenso fracasso


JAMAIS ESQUECI frase do notável escritor argentino Ernesto Sábato (1911-2011), quando apadrinhou a associação "Abuelas de Plaza de Mayo", um grupo de bravas senhoras dispostas a lutar para reaver os netos desaparecidos junto com os pais tragados pela máquina de matar montada pelos militares argentinos entre 1976 e 1983.

"Nós, adultos, de algo sempre somos culpados. Mas as crianças, que culpa podem ter as crianças?", perguntava Sábato.

A frase voltou à cabeça ao ler a análise no "Financial Times" da morte de afegãos (nove crianças) por um militar norte-americano. Escreveu Ahmed Rashid, autor de best-sellers sobre a região: "As centenas de civis já mortos neste ano em todo o país ficam quase esquecidos agora, na esteira de crianças mortas por um "farengi" (estrangeiro)".

O sofrimento de crianças tem esse condão de sacudir consciências e, com isso, tornar mais evidente o que se sussurrava quando as vítimas eram adultos, estrangeiros ou nacionais: a guerra do Afeganistão é um colossal fracasso.

Para fazer afirmação tão redonda basta voltar no tempo e recuperar o objetivo declarado pela Otan, em 2001, ao se atirar à intervenção no Afeganistão: era "reconstruir, democratizar e desenvolver" o país.

Impossível discordar de Marwan Bishara, analista político-sênior da rede Al Jazeera, quando escreve:

"Em face de um governo cada vez mais corrupto e incompetente, os afegãos estão vendo poucos progressos no terreno. A chamada "nation building" (construção do país) está paralisada, a justiça e a obediência à lei são inalcançáveis e um terço da população está sofrendo de desnutrição".

Que os afegãos estejam fartos é óbvio. Até porque, como continua Bishara, "invadir outro país e ocupá-lo por mais de uma década não pode sair barato, moral ou humanamente". Não está saindo nem para os afegãos nem para os soldados dos Estados Unidos.

Como é descrito pela revista "Time" na sua edição eletrônica, "evidências iniciais sugerem que as repetidas mortes de soldados norte-americanos tornaram-se demais para um deles, que aparentemente tentou obter sua própria e perversa vingança, teorizam funcionários do Pentágono", aludindo ao soldado que saiu domingo ao ataque alucinadamente.

Nesse ambiente, a única saída parece ser recuar dez anos e trazer de volta o Taleban, escreve Bruce Riedel, ex-CIA, hoje pesquisador-sênior na Brookings Institution: "Depois da série de incidentes deste ano, não deveria haver nenhuma dúvida em Washington de que a única saída é buscar um acordo negociado com o Taleban para pôr fim à guerra o mais depressa possível".

Reforça o autor Ahmed Rashid no "Financial Times": "O melhor desenlace no Afeganistão [é] um processo político cuidadosamente desenvolvido que traga todos ou alguns dos talebans para um cessar-fogo e um arranjo de divisão de poder, respaldado pelos vizinhos [alusão óbvia a Paquistão e Irã, principalmente]".

Mas, adverte Rashid, um processo como esse demanda tempo e paciência -condições que parecem ter desaparecido com a morte das crianças.

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