segunda-feira, novembro 07, 2011

FLÁVIO JOSÉ DE SOUZA BRANDO - A respeito do calote público aqui, na Zona do Real


A respeito do calote público aqui, na Zona do Real
FLÁVIO JOSÉ DE SOUZA BRANDO 
VALOR ECONÔMICO - 07/11/11

O plano de saída da crise na zona do euro, com calote parcial na dívida voluntária da Grécia, foi aceito por bancos privados. Irlanda, Portugal, Espanha também flertam com a crise e o calote, sendo a Itália (US$ 2,7 trilhões em divida soberana) o caso mais sensível. Os europeus falam em buscar dinheiro da China, mas também da Rússia, da Índia e do Brasil (os Brics). Nós temos experiência de "default" em dívidas soberanas de estados sob uma federação?
Sim, bilhões de dólares em dividas públicas estão inadimplentes. O valor exato é desconhecido (inexistem contabilização confiável, provisões, reservas, neste ponto empatamos com a Grécia), mas R$ 100 bilhões vencidos e acima de R$ 500 bilhões em gestação no Judiciário são números aceitos pela maioria dos especialistas em precatórios (ordens judiciais para pagamento de dívidas públicas).
Nosso maior devedor é o Estado de São Paulo (R$ 20 bilhões), e seu endividamento representa 16,28 % das receitas correntes líquidas (RCL). O segundo colocado, é a prefeitura municipal de São Paulo - R$ 16 bilhões, 60% da RCL. O Espírito Santo traz o maior problema proporcional, ultrapassou 100% da RCL.
Já estamos na terceira moratória (8 anos em 1988, 10 anos em 2000 e 15 anos em 2009). Descumprir ordens do Judiciário há muito deixou de ser tabu para Estados e municípios que insistem em recalcular suas dívidas, sempre pelas piores taxas do mercado, e agora até retroativamente. Aprovaram um sistema no Congresso onde o cumprimento de suas dívidas fica limitado a um teto sobre receitas líquidas e prazos absurdos.
Depois de muitos anos, o Supremo Tribunal Federal agora indica, no julgamento da Emenda 62, que poderá enterrar o capítulo histórico desses calotes públicos recorrentes. Surge então o "dilema Kadafi": Se acabar a ferramenta calote para procrastinar o pagamento de dívida pública o que virá depois será melhor ou pior, e para quem?
Estados e municípios não têm caixa para pagar o passivo atrasado a curto prazo, logo a opção é reestruturar suas dívidas a longo prazo, com garantias da União (a nossa Comunidade Econômica). O parágrafo 16 do art 100 da Constituição prevê que "a seu critério exclusivo e na forma da lei, a União poderá assumir débitos, oriundos de precatórios, de Estados, Distrito Federal e municípios, refinanciando-os diretamente".
Os detentores de precatórios "micados" poderão trocá-los por papéis federais ou estaduais/municipais garantidos pela União, com liquidez imediata e deságios civilizados. A União estará contra-garantida pelos repasses constitucionais federais a estados e municípios. O mercado privado de títulos voluntários públicos brasileiros opera R$ 2 trilhões, logo os precatórios poderão ser absorvidos (risco federal) pelo mercado privado, sem afetar o fluxo de caixa de União, Estados ou municípios. Isso poderia ter sido feito nas administrações FHC, mas não aconteceu: em 1998 a União assumiu R$ 101,9 bilhões de dívidas estaduais de outras naturezas, equivalentes na época a 11,3% do PIB e a 77,9% da dívida líquida de estados e municípios.
Para que não haja um "tsunami" de papéis no mercado a curto prazo, a negociação dos novos papéis poderá ser restrita a resgate curto ou longo conforme escala crescente de valores, e incentivo (inclusive tributário) a sua capitalização em fundos de infraestrutura, construção de casas, aposentadoria, investimentos em tecnologia, etc. Esses papéis poderiam pagar dívidas fiscais atrasadas. A dívida pública ativa representa normalmente de 10 a 20 vezes a dívida passiva (precatórios), e o percentual anual de recuperação de impostos atrasados não passa de 2 %.
Agências de avaliação de risco (rating) em Nova Iorque justificam porque, apesar da patologia descrita, atribuem boas notas ao Brasil: os devedores evitam o tema precatórios, não enviam números auditados e os credores nunca conseguiram cobrá-los. Qualquer credor de precatório, provando o calote continuado e não revelado em pedido de empréstimo ao Banco Mundial ou BID, poderá requerer o reconhecimento da nulidade da operação por fraude, seu vencimento antecipado e, por tabela, de todos outros empréstimos vencendos.
Quanto a direitos humanos, milhões de credores têm tido seus direitos e garantias fundamentais violados (mais de 80.000 credores somente do Estado de São Paulo já morreram sem receber seus créditos) o que também ditaria o cancelamento de contratos internacionais (exigência idêntica a direitos de indígenas e meio-ambiente). Neste cenário, alguns devedores ousam argumentar que os credores da Grécia aceitaram deságio de 50 % do valor de face (mais capitalização de bancos, austeridade fiscal, etc) logo os titulares de precatórios deveriam se preparar para algo do gênero.
Nada mais falso. Os números locais são muito melhores em valor absoluto/relativo (com opções de solução), e os bancos privados compraram voluntariamente dívida grega (cujo endividamento supera 100 por cento de seu PIB). Precatórios não tem origem em decisão de investimento: os credores foram a Justiça reclamar seus direitos e receberam ordens de pagamento.
A dívida pública voluntária brasileira é paga religiosamente e não há justificativa para que a dívida judicial - obrigatória, por definição (e estoque muito menor - fique pendente e escondida. A rigor, seu pagamento teria prioridade sobre as voluntárias. A conjugação de fatores positivos: commodities, reservas naturais e financeiras bilionárias (por volta de US$ 300 bilhões), superação de calotes no passado, mercado saudável recomenda nosso país como participante ativo deste "imbroglio" europeu?
Em termos. Pode ser uma janela para discussão de protecionismo agrícola, subsídios, imigração, pagamento de serviços ambientais e a prática de um viés de "socialismo" definido por Margaret Thatcher como "aquele que dura enquanto houver dinheiro dos outros.."
Por outro lado, o Brasil ainda tem uma enorme carência social e de infraestrutura, na qual incluiria a segurança jurídica. Seja como for, antes de ajudar a Europa (ou a África, quem merece mais?), nós precisamos focar a faxina de nossa própria casa. Calote público nunca mais.

Flávio José de Souza Brando é presidente da Comissão de Defesa dos Credores Públicos do Conselho Federal da OAB e da Comissão de Dívida Pública da OAB/SP

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