sábado, fevereiro 12, 2011

FERNANDA TORRES

Tamagoshi
FERNANDA TORRES
REVISTA VEJA - RJ


Quando meu filho mais velho estava com uns 6 anos, pediu que eu comprasse um Tamagoshi para ele. Como eu havia negado todas as suas súplicas de colocar um cachorro para viver conosco dentro de um apartamento, achei que o Tamagoshi poderia servir de substituto. Depois de ajudá-lo a ligar o aparelhinho, de dar o nome e escolher os atributos, uma trabalheira binária sem fim de sins e nãos, finalmente a criaturinha nasceu. Empenhado, meu rebento alimentou, divertiu, deu estudo e até dança para o bicho. Tudo foi muito bem durante o fim de semana, com o golem criando corpo e meu filho se achando o mais feliz dos pais.


Mas a segunda-feira amanheceu violenta, com escola, natação, inglês, futebol, e o Tamagoshi acabou esquecido em casa. Por volta das 5 da tarde, quando chegou da estiva, meu filho foi dar comida para a cria e tomou conhecimento da tragédia: o Tamagoshi já não estava entre nós. Uma música fúnebre saía da caixa de som do pequeno objeto. No visor, a entidade havia criado asinhas diminutas que voavam em direção ao céu e duas cruzes ocupavam o lugar dos olhos. Em choque, o rosto do meu menino empalideceu. Era possível perceber o pavor culposo nos seus olhos. “Ele morreu?!”, perguntou-me, com a voz embargada. Eu não tive tempo de responder, as lágrimas rolaram gordas pelas suas bochechas, a cabeça baixou e ele emudeceu de vez.
Mãe esforçada, corri para o manual a fim de saber se o destino do serzinho eletrônico poderia ser reversível. Será que os japoneses acreditam no além? Lembrei dos fantasmas dos filmes de Kurosawa e acreditei que sim. Esperançosa, retornei com uma boa alternativa. Seríamos obrigados a conviver para sempre com a dor da perda, mas zerando o aparelho com a ponta de um alfinete poderíamos começar tudo de novo, do zero.
Repetimos todo o processo do ovo, da escolha das características, do nascimento, até outro monstrinho surgir nos pedindo comida, educação, diversão e sono. Culpado com a morte prematura da primeira criatura, meu menino se empenhou em dobro, mas mesmo assim não houve jeito. Esse durou três dias. Nas vezes em que ficou esquecido em casa, uma rede de auxiliares, eu inclusive, o ajudou a manter-se de pé.
Apesar dos esforços coletivos, ele também partiu sem nem chegar à adolescência. Desencarnou acompanhado da mesma composição funesta, com as mesmas asinhas e os olhinhos em cruz. O impacto ainda foi grande, mas um pouco menor. Depois da quinta morte consecutiva, o inferno tecnológico foi parar no fundo da gaveta e nunca mais tivemos o desprazer de invocá-lo.
Recentemente, por obrigações contratuais, abri uma conta no Twitter com o nome de @atijucana. Frequentei a rede social com assiduidade, enviei mensagens, respondi aos amigos, senti aquele orgulho besta de ver o número de seguidores subir paulatinamente e a inveja dos que são seguidos por milhares de pessoas. Enalteci a capacidade que um instrumento como aquele tem de chamar atenção para questões importantes, divulgar ideias, projetos e fomentar ações.
Além de todas as qualidades, descobri que o Twitter aplaca a carência da caixa vazia do e-mail naqueles dias em que só entra spam. Durante um mês fui só elogios, até que um dia me enchi. Fui acometida por um grande enfado da rotina obsessiva de ler mensagens curtas, checar quem entrou e quem saiu e saber se fulano está aqui ou ali. Nunca mais apareci. O Twitter, o Facebook e afins são grandes invenções, não há dúvida, mas, assim como o Tamagoshi, se baseiam em uma substituição repetitiva e compulsiva do mundo dos vivos. Essas redes exigem atenção constante, se não são alimentadas, morrem à míngua. Tomam preciosas horas reais de dedicação de você.
Elas me lembram aqueles grupos de japoneses que a gente encontra muito em viagem, que, em vez de ver com os olhos os lugares que visitam, filmam sem parar para depois assistir em casa.
Melhor comprar um cachorro.

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