domingo, outubro 24, 2010

FERREIRA GULLAR



Os acasos da manhã
FERREIRA GULLAR



FOLHA DE SÃO PAULO - 24/10/10

Se um de nós tivesse saído de casa alguns minutos antes ou depois, não nos teríamos encontrado



ERA DOMINGO e, depois de alguns dias cinzentos, vi pela janela da sala que a manhã estava clara e iluminada. Embora não tenha, aparentemente, qualquer motivo para cair na fossa, nada impede que, de repente, na manhã clara, a alma se acinzente. Por isso, antes que isso ocorresse, tratei de sair de casa e ir andar pela avenida Atlântica, a uma quadra e meia de onde moro.
Não faço cooper, mas andar é o recurso de que lanço mão quando, não sei por que, a vida perde sentido. Nessas horas, meus amigos, não há teoria que resolva, já que é a cabeça mesma que diz não.
Por isso a única alternativa é sair andando, andando à toa, já que também não há aonde ir, ou seja, nenhum destino interessa.
Andar, porém, se pode andar sem destino, deixando por conta das pernas o rumo a seguir. Hoje, no entanto, não foi esse o caso: decidira sair deliberadamente para andar ao sol, sentir no rosto a brisa do mar, gozar do prazer de estar vivo.
Pois bem, quem me lê e presta alguma atenção no que digo, já deve saber que, para mim, o acaso é um fator decisivo em nossa vida e em tudo, das menores às maiores coisas, da topada no meio-fio ao poema que se escreve.
Mas faço questão de dizer que o acaso não é tudo, uma vez que ele só contribui para nossa vida quando atende a alguma necessidade. Isso para os acasos sérios, o que não é o caso da topada no meio-fio, a menos que nos destronque o pé.
Já o amor verdadeiro pode ser fruto da conjugação feliz de acaso e necessidade. Por isso, você diz: "Estava escrito"; "Foi Deus quem a pôs no meu caminho".
De fato, a conjugação de acaso e necessidade parece ter algo de milagre. Só que não pensei em nada disso quando desci no elevador, saí pelo portão do edifício e cheguei à rua, batida de um vento matinal. E foi assim, quase flutuando, que alcancei a avenida Atlântica, onde banhistas e ciclistas animavam a paisagem.
E eis que, ao chegar ao calçadão, sou cumprimentado por um homem de bermudas e camisa desabotoada que me diz: "Senhor Gullar, levei sua crônica para Buenos Aires e o pessoal ficou muito feliz".
Falava com leve sotaque portenho; pergunto a que crônica se referia e ele disse que era uma sobre o apartamento em que eu morara em Buenos Aires durante o exílio. Ah, sei, disse eu, na avenida Honório Pueyrredón.
O acaso não é senão a ocorrência de alguma probabilidade. Aquele senhor, possivelmente argentino e que mora no Rio, saíra de casa, como eu, para andar à toa pela praia e se deparara, por acaso, comigo, autor de uma crônica que se referia à sua cidade, ou melhor, a algo que ocorrera eventualmente num dos prédios de uma de suas inumeráveis avenidas.
Se um de nós dois tivesse saído de casa para aquele passeio, alguns minutos antes ou depois, não nos teríamos encontrado e eu jamais saberia do que me contara. Nem esta crônica estaria sendo escrita.
"Recortei sua crônica e a levei para o síndico do edifício onde o senhor morou. Ele disse que já ouvira falar de um exilado brasileiro que residira ali."
Sempre me encanta essa magia dos acasos da vida. Veja você: uma editora argentina decidira lançar a tradução de meu "Poema Sujo", escrito naquele apartamento de Buenos Aires em 1975. Como não viajo de avião, meu amigo Roberto Viana convenceu-me a ir até lá de carro para o lançamento do livro e me levou, claro, até o edifício onde o poema nascera.
Filmou-me à porta de entrada, que estava fechada, sem que, lógico, o síndico nem nenhum dos moradores soubesse do que ali ocorria, naquela tarde de 10 de setembro, aliás, dia de meu aniversário. Agora, todos o sabem, porque a referida crônica foi emoldurada e posta no hall de entrada.
Despedi-me do simpático argentino e segui meu passeio sem rumo, quando fui abordado por três garotos e um deles me perguntou: "O senhor não é o Paulo Goulart?". Já habituado a esse tipo de confusão, apenas sorri. E o outro rapaz: "Nada disso, cara, ele é o João Goulart... Não, não, é o Goulart de Andrade. O senhor não é o Goulart de Andrade?".
Dou um adeusinho a eles e cruzo a pista da avenida em direção ao mar. Sou mesmo aquele cara famoso que não se sabe quem é.

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