domingo, outubro 31, 2010

CLAUDIO SALM

O he-he-he do Lula
CLAUDIO SALM
 O GLOBO - 31/10/10



Perguntei a um amigo psicanalista qual o adjetivo que, na opinião dele, melhor definiria o presidente Lula. "Imaturo", respondeu. Para mim, o que mais chama a atenção no Lula é o cinismo. Se fosse imaturo, não teria capacidade para discernir as situações em que pode ser cínico daquelas que não pode. Em política econômica, por exemplo, não pode, e Lula tem maturidade suficiente para saber que não se brinca com uma economia dominada pelo capital financeiro, assustadiço como uma manada de búfalos. Mais do que o cuidado com o que fala, Lula afastou do BC qualquer nome que pudesse ser associado a propostas heterodoxas em matéria de política monetária e cambial.

Mas, de resto, se as consequências do trato leviano não são imediatas, Lula não perde oportunidade de ser cínico.

Na campanha eleitoral, martelou na tecla da importância da "continuidade".

Continuidade do quê? Dos juros mais altos do mundo? Do real apreciado? Do crescente déficit externo? Da expansão do consumo com baixo investimento? Em muitas áreas, o falatório e os gestos inconsequentes parecem não ter maior importância. Lula sabe que colocar o boné do MST não fará com que o agronegócio abandone o país, como sabe também que extrair o petróleo do présal através do regime de concessão não é o mesmo que "entregar nossas riquezas para as empresas estrangeiras".

A política externa é um prato cheio para o cinismo, pois os discursos nunca são comprados pelo valor de face.

Tudo é interpretado a partir de critérios que escapam ao cidadão comum, e as palavras raramente correspondem ao praticado. Jânio Quadros condecorou Che Guevara e as muralhas de Jericó não desabaram. A política externa quase não foi mencionada na campanha eleitoral. Os marqueteiros devem ter recomendado aos seus clientes candidatos que o melhor seria não falar nada, nem a favor, nem contra, muito pelo contrário. O Itamaraty não dá nem tira voto, já dizia Ulysses Guimarães. Nossa política externa sempre foi muito respeitada quanto à defesa dos direitos humanos. No entanto, em nome da afirmação de independência, atitude a meu ver correta, e em nome de uma realpolitik, a meu ver equivocada, ficou mais do que evidente que o governo Lula pisou na bola na questão dos direitos humanos. Como adverte Tony Judt, quando "o governo se vê aliado de governantes estrangeiros desastrosos, sob o argumento, 'realista', de que eles são os sujeitos com quem é preciso negociar, esquece que, ao fazer isso, priva-se de qualquer capacidade de pressão política em cima deles. No final, o governo se restringe ao cinismo".

Foi o que se viu. Ou não foram cínicos os comentários de Lula sobre os dissidentes cubanos, equiparados por ele a delinquentes comuns? E sobre os protestos em Teerã contra as fraudes que teriam favorecido a eleição de Ahmadinejad, comparados por Lula ao choro de torcedores de futebol quando perdem o jogo? As feministas da Secretaria da Mulher nada disseram em defesa de Sakineh, a iraniana ameaçada de ser apedrejada até a morte por adultério, mas vibraram com a oferta feita por Lula, de lhe conceder abrigo (asilo?). Assimilaram o cinismo do chefe. Diante das manifestações contra a construção da barragem de Belo Monte, Lula declarou que entendia perfeitamente, pois ele, quando jovem, também havia protestado contra a construção de Itaipu. Podia ter sido mais cínico? Lula sabe que não importa, que o seu cinismo não irá afetar seus índices de aprovação que vão se aproximando dos de Ceausescu.

Recordo-me de um episódio a que assisti - ninguém me contou e nem li na "mídia golpista". Como muitos outros da minha geração, também me senti atraído pelo novo sindicalismo, disposto a colaborar no que pudesse.

No final dos anos 1970, aceitei o convite de um grupo de dirigentes sindicais para dar uma explicação sobre a fórmula de reajuste salarial proposta pelo ministro Mário Henrique Simonsen. A intenção do convite era buscar ajuda para fazer a crítica da fórmula, aliás, muito semelhante à da lei atual sobre o reajuste do salário mínimo. Eram trinta ou quarenta sindicalistas reunidos no sindicato dos químicos em São Paulo. No momento em que comecei a explicar o conceito de produtividade, um dos sindicalistas (hoje usufruindo de uma generosa sinecura), pulou na minha frente e começou um esquete. Representava um trabalhador curvado sob o peso de mais e mais sacos nas costas e repetia para os demais: "Entenderam? Produtividade é isso!" A turma se esbaldou.

Achei que não havia mais clima para prosseguir. Retirei-me discretamente, decidido a recusar qualquer outro convite do tipo. Lula estava presente na reunião. Lembro-me até hoje do seu he-he-he.

*CLAUDIO SALM é professor do Instituto de Economia da UFRJ.

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