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Antonio Machado
CORREIO BRAZILIENSE - 03/06/10
Lula justifica carga tributária elevada, mas não fala da qualidade do gasto, que é o que importa
A apologia da carga tributária parruda feita pelo presidente Lula em seminário sobre a América Latina, em Brasília, dá margem a duas interpretações, já que imposto, como a própria palavra o expressa, ninguém paga com prazer, e, no Brasil, está longe de ser razoável.
É possível que Lula tenha apenas revelado o que acha sobre o que se paga de impostos no Brasil, sem entrar no mérito se é muito ou se é pouco. A carga impositiva elevada, conforme a definiu, foi condição para que a discussão sobre o que vem primeiro, crescer ou distribuir renda, fosse superada em seu governo. “Nós fizemos os dois, concomitantemente, e o sucesso foi extraordinário”, disse.
É uma maneira de enxergar o tamanho da mordida tributária, embora parcial, já que nos países onde ela é muito alta, como na Europa, a qualidade dos serviços custeados pelo Estado compete em situação de igualdade com os privados, como educação e saúde. E a renda per capita é tão alta que, proporcionalmente, aqui se paga muito mais.
Lula também deve saber a diferença entre os regimes tributários no Brasil e nos países ricos, onde a renda é mais tributada que o consumo, mas exportação e investimento, em regra, são desonerados.
A menor dispersão da renda no mundo rico a torna passível de vir a receber a maior parte da tributação. No Brasil, a distribuição de renda é um processo em curso, acentuado no governo Lula, mas ainda muito concentrada. O receio é que tributar pesado o capital seja um desincentivo a investir no país. Nem Lula ousou fazê-lo.
Tal arrazoado torna mais compreensível o que declarou: “Tem muita gente que se orgulha de dizer: ‘Ó, no meu país a carga tributária é [de] apenas 9%. No meu país, a carga tributária é apenas 10%”. E foi em frente: “Quem tem carga tributária de 10% não tem Estado! O Estado não pode fazer absolutamente nada”.
Dada a expectativa de serviços públicos no mundo, Lula tem razão. Arrecadação de 10% como proporção do PIB mal daria para custear a educação e saúde. Discutível é que se tenha de entregar ao Estado 36% do PIB, o patamar da carga tributária no Brasil, que pode ir a 40%, incluindo receitas parafiscais, em troca do que é devolvido à sociedade. E pior fica quando se considera o investimento público.
Além de mirrado, na prática é privado, que o sustenta e assume o risco, ainda que financiado por um banco estatal. Não é tão óbvia a relação entre tamanho do Estado e desenvolvimento como Lula diz.
O juízo embaralhado
O presidente achou pertinente dar exemplos à sua explanação sobre a coerência da portentosa carga tributária no Brasil. “Os Estados que têm as melhores políticas sociais são os Estados que têm carga tributária mais elevada”, afirmou. “Vide EUA, vide Alemanha, vide França, vide Suécia, vide Dinamarca. Os que têm a carga tributária menor não têm condições de fazer absolutamente nada de política social. É só fazer um “recogido” na nossa querida América [Latina] para a gente ver o que acontece.” Lula embaralhou o raciocínio.
A carga é muito baixa na maioria dos países abaixo do Rio Grande, é muito alta na Europa e ocupa uma posição intermediária nos EUA. A brasileira é maior que a dos EUA, onde os serviços públicos têm menor cobertura que na Europa, mas são superiores aos do Brasil.
Imunizando o governo
É neste contexto da comparação internacional feita por Lula que se supõe que talvez ele também tenha tido a intenção, ao defender o nível elevado da carga tributária, de imunizar o seu governo de críticas contra os altos impostos. Elas existem, de fato, mas não bem da candidatura de José Serra, e sim de grupos de profissionais liberais e pequenos empresários. Para o PSDB, fazer essa crítica é embaraçoso, pois a arrecadação explodiu nos dois governos de FHC.
Lula manteve a tendência, mas mais pelo aumento da receita vinda do crescimento econômico e da formalização do trabalho e empresas, que da criação de impostos e majoração de alíquotas. Contra a sua vontade, aliás, o Congresso pôs fim até a um tributo, a CPMF.
O verdadeiro debate
A verdadeira discussão Lula não fez, nem a crítica conservadora a faz. Trata-se da qualidade da aplicação dos dinheiros arrecadados à sociedade e das prioridades quanto ao que se faz com eles. Não é o tamanho da tributação o que importa. Antes da crise, a Suécia, com a maior carga tributária do mundo, 50,1%, vinha de 20 anos de forte desempenho econômico, assim como os EUA, com nível fiscal de apenas 28,2% (ambos os dados de 2006, que se comparavam com 34,23% do PIB, no Brasil). E na China é ainda menor. É isso que importa.
Cadê a valentia?
O constituinte de 1987 tanto sabia aonde poderia levar a questão tributária que a Constituição instrui no parágrafo 5º do artigo 150 que “a lei determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidem sobre mercadorias e serviços”. O projeto que regulamenta o dispositivo foi aprovado no Senado e empacou na Câmara. Os deputados são ligeiros ao aprovar despesas. Mas parecem temer que o brasileiro descubra que paga 45% de impostos sobre o preço de um humilde chinelo, 45,5% ao comprar uma caixa de sabão em pó, 7,9% no quilo de arroz, 65% na conta de luz, mais de 40% na de telefone, 20,4% para casar. Paga até quando morre. Sem que os tributos sejam apartados dos preços, como manda a Constituição, não há valentia em justificar a carga tributária.
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