domingo, março 14, 2010

NAS ENTRELINHAS


Um fio condutor

Alon Feuerwerker
CORREIO BRAZILIENSE - 14/03/2010

Mesmo espremendo a cabeça, não consegui encontrar um mísero exemplo no qual nossa diplomacia tenha sacrificado iniciativas econômicas estratégicas ou interesses empresariais amigos

É exercício intelectual fascinante buscar o fio condutor da política externa brasileira sob Luiz Inácio Lula da Silva. Vai estimular muita tese de mestrado e doutorado por aí.

Para começo de conversa, tome-se a ideia de integrar a América do Sul. A meta é óbvia, dadas a proximidade e a nossa dimensão estratégica (território, economia, população). Ajuda, também, o subcontinente não ser área de risco para a superpotência do norte.

Mas Lula faltou à posse de Sebastián Piñera em La Moneda. Certamente foi lido em Santiago com desconforto, ainda mais no contexto do terremoto. Se Lula tinha outras coisas a fazer poderia ter ajeitado a agenda. Ou então carregado com ele as pessoas com assuntos inadiáveis a discutir. Faz isso habitualmente.

O presidente não foi à posse de Piñera porque o chileno é de direita?

Lula dava-se maravilhosamente bem com os Estados Unidos de George W. Bush (adversário cordial) na comparação com Barack Obama (concorrente no rol dos construtores do “novo mundo possível”). Ademais, nosso presidente não pareceu tão empenhado assim em buscar desfecho favorável à esquerda no Chile, desde que estimulou a divisão do campo governista de lá, dando gás ao lançamento do “petista” Marco Enríquez-Ominami.

É possível então concluir, por acaso, que a política externa brasileira se guia pela busca obsessiva de antagonismo com os EUA, amigos da democracia cristã chilena derrotada, e ainda assim certamente satisfeitos com a vitória de Piñera? Difícil. Nossas tropas estão no Haiti inclusive para ajudar Washington. E como explicar, à luz do suposto antiamericanismo, a ruptura com a China e a Índia em julho de 2008 nas negociações da OMC em Genebra? Ali o Brasil desertou do campo “emergente” e aproximou-se dos EUA e da Europa para tentar fechar um acordo na Rodada Doha.

Grande acordo, por sinal, mas para eles. Acenamos com a abertura do nosso mercado de manufaturados e compras governamentais, se os desenvolvidos reduzissem as barreiras para os produtos agrícolas. “Inserção soberana do Brasil na nova ordem internacional?” Nada. Foi mais coisa de república de plantations. De última geração. Bananeirismo high tech. Ou “etanolismo” high tech.

O Brasil tampouco se reivindica, na arena internacional, o dínamo da promoção dos direitos humanos ou da democracia representativa. É razoável, nenhuma nação segue estritamente o critério. Lula não precisava ter sido tão ligeiro, insensível e irresponsável no tema dos presos políticos de Cuba. Mas isso deve ser debitado ao estado mental de relaxamento e onipotência, produto da sua imensa força política e da completa ausência de oponentes à altura. Tem mais a ver com a inimputabilidade, e não com alguma diretriz racional.

Seríamos então a mola propulsora das soluções negociadas e do fim dos conflitos? A potência da paz? Como, aparentemente, mostra nossa posição no impasse iraniano? Difícil. Em Honduras, o Itamaraty exige definir até o cardápio das autoridades hondurenhas no café da manhã, ou a cor do terno que o novo presidente vai usar nas solenidades oficiais, para aceitar reconhecer o governo nascido do binômio golpe-eleições. Atenção: foi ironia. Mas Tegucigalpa é um bom “case” da nossa maneira original de compreender a não ingerência.

Qual é então o norte da política externa do Brasil? Mesmo espremendo a cabeça, não consegui encontrar um mísero exemplo no qual nossa diplomacia tenha sacrificado iniciativas econômicas estratégicas ou interesses empresariais amigos. Inclusive na Bolívia, onde o Brasil conduziu as coisas de modo a no final nossa presença estar reforçada. E fez bem.

Sob Lula, o Brasil completou a emergência como jogador na arena internacional dos negócios. A base material desse salto é a fusão interna das esfera produtiva e bancária, com a subsequente necessidade vital de exportar capitais para reprodução, e de buscar mercados agressivamente. Mesmo que de vez em quando haja tensão entre esses dois aspectos.

Com Lula, o Brasil ficou mais “americano”. Talvez mais imperialista, no sentido estrito. Adicione-se o entrelaçamento do Estado e da política com o capital monopolista, ou oligopolista, e a receita estará completa.

No popular, o negócio é o seguinte. Se Sebastián Piñera oferecer às empresas brasileiras uma fatia suculenta das obras de reconstrução no pós-terremoto, eu aposto que as relações com o Brasil transitarão da água para o vinho.

Não sei se o parágrafo anterior é uma boa síntese, mas não achei outra melhor.

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