terça-feira, janeiro 05, 2010

ILAN GOLDFAJN

Caçadores de fantasmas em 2010

O ESTADO DE SÃO PAULO - 05/01/10


Bons administradores de risco são como caçadores de fantasmas. Receiam pelo que ninguém acredita, atuam para evitar o que ninguém vê (ou quer ver). Se não conseguem evitar o que temiam, são cobrados pela falta de precaução. Se bem-sucedidos, evitam o pior. Mas como o pior não acontece, poucos acreditam que houvesse risco de verdade. Era tudo excesso de zelo, estavam vendo fantasmas, era pura paranoia. Em 2010 o Banco Central do Brasil provavelmente sofrerá desse mal: terá de subir os juros ainda neste ano. Será acusado de excesso de zelo ou, pior, caso não atue, deixará um problema inflacionário para o ano seguinte.

O Banco Central é caçador de fantasmas por natureza. Administra o risco da volta da inflação para preservar, em última instância, a estabilidade macroeconômica, o que beneficia a todos. Mas para isso tem a obrigação de se antecipar aos eventos, subir os juros para evitar o retorno da inflação. Se for bem-sucedido, a ameaça inflacionária é debelada e a inflação permanece em torno da meta. Mas o trabalho bem-sucedido é difícil de comunicar. Para o grande público, a ameaça não era real, a inflação já estava controlada antes e assim continua. A impressão deixada será de que o Banco Central subiu os juros desnecessariamente: viu fantasmas, para alguns, "não quis deixar o Brasil crescer" ou, na melhor das hipóteses, sofreu de excesso de zelo.

Interessante que quando ocorrem problemas (e a inflação volta) fica paradoxalmente mais fácil explicar a reação do Banco Central. Este é o caso dos choques (crises internacionais, etc.), que são inesperados por sua natureza. Eles impactam a inflação e levam o Banco Central a reagir. Como existe uma defasagem de tempo entre a ação do Banco Central e o impacto na inflação, nesse ínterim os choques acabam elevando (ou reduzindo) a inflação. O Banco Central corre atrás, mas a "evidência" está registrada: a inflação corrente está fora do lugar. É uma situação pior, pela incapacidade de se antecipar, mas o Banco Central não é acusado de ver fantasmas.

Ao longo do tempo, a realidade prevalece. Um Banco Central que, de verdade, tem excesso de zelo (paranoia inflacionária) terá sobrerreagido várias vezes, levando a inflação a situar-se sistematicamente abaixo da meta, com flutuações maiores no produto (ou seja, gerando recessões desnecessárias). Por outro lado, um Banco Central leniente com os riscos vai "surpreender-se" em demasia com o excesso de demanda e gargalos e, na média, produzir uma inflação acima da meta prometida à sociedade. No Brasil, não há sinais sistemáticos de excesso de zelo ou, ao contrário, de leniência. A inflação tem flutuado em torno da meta nos últimos anos. Esse desempenho deveria ter garantido algum ganho de credibilidade: ações preventivas não necessariamente deveriam ser associadas a excesso de zelo.

Mas, apesar do ganho de credibilidade, acredito que haverá um desafio para o Banco Central (vulgo "caçador de fantasma monetário") neste ano. O Banco Central deverá precisar subir os juros. O desafio de comunicação do Banco Central, paradoxalmente, virá das boas condições macroeconômicas. O produto interno bruto (PIB) do Brasil estará crescendo a uma taxa vigorosa (6% ao ano), com inflação sob controle (em torno de 4,5%). Então, por que mexer?

Porque o futuro se delineia diferente do passado, e mesmo do presente. A inflação acumulada estará bem comportada ao longo da primeira metade do ano, refletindo principalmente o passado - a capacidade ociosa advinda da crise do ano passado e seu impacto defasado sobre a inflação de alguns bens e serviços. Mas a economia cresce a taxas vigorosas, o que ocupará rapidamente a capacidade ociosa. Os dados de utilização da capacidade da indústria já refletem isso (devem chegar ao pico anterior de 86,7%, ainda no mês de maio). O desemprego continua diminuindo, resultado da criação acelerada de empregos. Em algum momento vão surgir gargalos ou, simplesmente, pressões para elevação de preços, resultado de excesso de demanda. Já, hoje, a demanda doméstica cresce cerca de 10% em termos anualizados, por enquanto satisfeita pela ocupação da capacidade ociosa e por importações crescentes.

Esses processos são relativamente lentos (comparados aos choques, crises, etc.), não acontecem da noite para o dia: a ocupação da capacidade vai ocorrendo, gargalos vão surgindo, a mão de obra começa a faltar, alguns insumos ficam mais escassos. A inflação de serviços também começa a subir. Mas, ao contrário dos choques, não tem efeitos imediatos. Esses processos ocorreram ao longo do ano, elevando a inflação gradativamente. A vantagem é que são processos que podem ser combatidos pelo Banco Central de forma preventiva. A desvantagem é que... são processos, que podem vir a ser postergados até a inflação ser um problema imediato.

Mas o crescente aquecimento da economia brasileira não vem de hoje. O Brasil já cresce a taxas elevadas desde o segundo trimestre do ano passado. E não há sinais de reversão dessa tendência. O consumo deve continuar a crescer forte, estimulado pelo aumento da renda e do crédito. O investimento expande-se a taxas muito elevadas - bom sinal para o futuro da economia -, mas demandará recursos crescentes no curto prazo. E os gastos correntes do governo continuam subindo a taxas elevadas. E os estímulos governamentais para combater a recessão (de quase 12 meses atrás) continuam valendo hoje. Alguns sendo prorrogados e outros, criados. Como esses processos são mais lentos, erros de política econômica demoram a aparecer, mas também são mais custosos para consertar.

Em suma, é provável que o Banco Central tenha de subir os juros neste ano, antes que a inflação vire um problema. Se tudo correr bem, terá cortado o mal pela raiz. E será acusado de ser conservador, ter excesso de zelo ou ser caçador de fantasmas. Difícil tarefa de comunicação para o governo.

Ilan Goldfajn é economista-chefe do Itaú Unibanco

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