Título de cidadania
O GLOBO - 02/12/09
O Morro do Cantagalo, fincado entre Copacabana e Ipanema, no coração da Zona Sul do Rio, tem tudo para se transformar no laboratório de uma medida pioneira, que seria uma consequência concreta da ação do governo do estado de retomar o controle territorial com as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs).
Durante quatro meses do ano passado, com o financiamento do Instituto Gerdau e o apoio de escritórios de advocacia e de engenharia, o Instituto Atlântico, entidade apartidária cuja missão é propor, e testar na prática, políticas públicas inovadoras, desenvolveu um projeto de cadastramento geral dos moradores e o levantamento da topografia detalhada do morro, com o objetivo de conceder a titulação plena dos possuidores de lotes e unidades residenciais.
São 1.456 domicílios e cerca de 5 mil moradores, 79% dos quais vivem lá há mais de 20 anos. O economista Paulo Rabelo de Castro, presidente do Instituto Atlântico, esteve ontem com o prefeito Eduardo Paes para tentar viabilizar um acordo para a concessão dos títulos.
O projeto de demarcação do Instituto Atlântico já estava sendo tocado independentemente da ação dos governos estadual e municipal, e esta é a segunda ocasião em que a iniciativa privada e a governamental se cruzam.
Na primeira vez, houve uma parceria que pode indicar o melhor caminho para a resolução dos problemas burocráticos e legais. Terminada a etapa de levantamentos e conferências de dados, o Instituto Atlântico entrou com uma Petição Inicial da Ação de Usucapião Especial Coletiva, inédita no meio jurídico, que está em tramitação na 7aVara da Fazenda Pública Estadual.
Ao mesmo tempo, o governo do estado se interessou pelo projeto, e o vicegovernador, Luiz Fernando Pezão, passou a coordenar os esforços, que resultaram no projeto de Lei Complementar 27, que autoriza o Poder Executivo a tomar iniciativas de alienação de áreas do estado hoje ocupadas por favelas, em benefício de seus atuais possuidores, mediante determinadas condições.
Para Paulo Rabelo, a decisão do governo de retomar o controle territorial do complexo de favelas do Cantagalo e Pavão-Pavãozinho “é uma ação paralela”, mas a ocupação fundiária poderia anteceder a ocupação territorial. “Agora, a questão fundiária passa a ser uma exigência”, avalia.
O território, que antes era dominado pelos traficantes, precisa ter dono, e o trabalho inicial já foi todo feito. O que está sendo negociado com a prefeitura é o “auto de demarcação”, que pode ser feito por meio de um convênio não oneroso com o Instituto Atlântico, desde que aceitem a demarcação já feita.
Como o estado já aprovou a lei complementar que permite a doação, pode se antecipar e conceder o título, em cerca de 90 dias. Segundo Paulo Rabelo, a organização fundiária de uma comunidade é parte essencial de um amplo projeto de segurança para os próprios moradores e bairros circunvizinhos.
O Instituto Atlântico desenvolveu o que chamam de “tecnologia social”, conjunto de técnicas de intervenção comunitária baseado no princípio da auto-organização.
Por meio da associação dos moradores, toda a população do Cantagalo participou das discussões do projeto desde o início, e todos os moradores deram autorização por escrito para o levantamento.
O aumento dos encargos tributários e de tarifas de serviços públicos que acontecerá com a regularização e o título definitivo, por exemplo, foi muito debatido.
Um dos objetivos será conseguir do estado cobranças reduzidas durante um período de transição, até que a comunidade esteja adaptada à nova situação.
A comunidade do Morro do Cantagalo tem as mesmas características básicas das demais favelas da cidade.
Um estudo recente sobre as favelas do Rio do Instituto de Estudos de Política Econômica — Casa das Garças — mostra que “o ciclo de urbanização básica terminou.
A infraestrutura essencial não é significativamente diferente de outras partes urbanizadas da cidade”.
Tomando por base os dados do Censo de 2008 da Rocinha, complexos do Alemão e Manguinhos, Parada de Lucas e Vigário Geral, o estudo mostra que a residência típica das favelas seria de alvenaria (95%) e teria energia elétrica (100%); água da Cedae ( 99%); rede de esgoto (96%); coleta de lixo (96%); e iluminação na rua (93%).
No Cantagalo, os números encontrados pelo Instituto Brasileiro de Política Social (IBPS), que fez o cadastramento dos moradores, são semelhantes: 94% têm água e esgoto; a coleta de lixo é feita em caçamba para 69% dos moradores e 23% têm coleta regular; 86% têm telefone e 75% têm medidor de luz.
Nas favelas do Rio, quase todos os imóveis são próprios, com exceção da Rocinha, onde 33% são alugados.
No Cantagalo, 77% dos imóveis são próprios.
Esse estudo da Casa das Garças diverge do diagnóstico do economista Paulo Rabelo de Castro quanto à prioridade de ações, concordando com a estratégia do governo do estado. “Devido à existência do controle territorial armado por narcotraficantes e milícias, a retomada definitiva, com a retirada das armas, é uma questão estratégica e não tática”, afirma.
O trabalho chegou à conclusão de que “o estado e a sociedade civil estão presentes nas favelas. A ausência do estado ocorre apenas em uma função: o policiamento ostensivo. Porém, este é o ponto primordial para que todos os demais direitos e equipamento sejam acessados”.
O estudo indica como ação prioritária após a “retomada definitiva e a pacificação”, entre outras, a formalização dos negócios e a regularização da situação fundiária e de habite-se. O mesmo grupo prepara-se agora para analisar as experiências de regularização de títulos em diversos países.
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