sexta-feira, novembro 27, 2009

MARIA CRISTINA FERNANDES

A política externa sob escrutínio popular

VALOR ECONÔMICO - 27/11/09


As perdas internacionais de Leonel Brizola e o fora FMI de Luiz Inácio Lula da Silva marcaram os limites que, há apenas 20 anos, circunscreveram o tema da política externa nas eleições presidenciais.

É outro o Brasil que, nesse curto espaço de tempo, vê o eixo do discurso político passar das injustiças da ordem internacional contra o país às pretensões nacionais de maior protagonismo na mediação do conflito do Oriente Médio.

A crítica de próprio punho do governador de São Paulo, José Serra ("Folha de S.Paulo", 23/11/2009) à visita do presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, marca a estreia do debate da política externa na campanha presidencial e é, de antemão, um reconhecimento de que o Brasil mudou.

Pela crítica do pré-candidato tucano, depreende-se que o objeto de discórdia é o mérito da visita do governante de um país ditatorial e repressivo e não a pretensão brasileira à mediação.

No dia seguinte o noticiário registraria que nem mesmo o presidente americano questiona as pretensões da diplomacia brasileira. Em carta a Lula, na qual explicitaria suas insatisfações com a visita sem questionar o direito do Brasil de promovê-la, Barack Obama acabaria por aceitar a legitimidade da atuação brasileira ao pedir que a pauta do encontro incluísse direitos humanos e cooperação nuclear.

O historiador brasileiro Luiz Felipe de Alencastro, cuja sede em Paris não o impede de acompanhar detidamente a conjuntura nacional, assistiu à largada do tema na campanha presidencial com incontido interesse.

Custa-lhe entender por que a indignação que cerca a visita de Ahmadinejad não se estende à relação do Brasil com outros países ditatoriais como, por exemplo, a China. O vice-presidente Xi Jinping veio ao Brasil em fevereiro. A visita do representante do país cuja crescente pauta comercial amparou o Brasil na crise não recebeu nenhuma moção de repúdio ou desagrado da oposição.

Alencastro compara a reação contra o presidente iraniano àquela que antecedeu a visita de Lula à Líbia de Khadafi, que precederia sinais de distensão entre as relações do ditador com outros países.

Apesar de Honduras, não vê abandono do princípio da soberania como norteador da política externa brasileira - "O mundo mudou. A não ingerência era uma maneira de se acomodar atrás da liderança americana", diz.

O historiador só vê dois momentos comparáveis ao momento de maior protagonismo das relações exteriores no debate político interno do país, ambos do século XIX - o fim do tráfico negreiro e a Guerra do Paraguai.

E atribui o viés hoje dominante no Itamaraty à retomada da linha que norteou a instituição sob os auspícios de San Thiago Dantas, chanceler do governo João Goulart e paraninfo da turma do ministro Celso Amorim no Rio Branco.

Era o mesmo lado ao qual se perfilava o então presidente da União Nacional dos Estudantes (Une), José Serra. Isso talvez explique por que no seu primeiro libelo de política externa nessa campanha não haja uma única linha de repúdio ao maior protagonismo adotado pelo Itamaraty.

Tão proveitoso quanto observar a linha de confronto que Serra traçará com seus antigos aliados será acompanhar os atritos dentro de sua própria aliança partidária. Herdeiro das forças que derrotaram San Thiago Dantas e sua turma, o DEM, principal aliado serrista, é hoje o partido mais ativo, nos debates parlamentares, à conduta do Itamaraty.

Sem diferenças gritantes em sua política econômica e com quaisquer tentativas de limitar as políticas sociais inviabilizadas pelas urnas, o DEM tem usado a política externa para exercitar um anticomunismo embolorado.

O país das perdas internacionais agora tem poder de veto no FMI, mas o que certamente estará fora do debate é que o ingresso do Brasil não muda o jogo.

Na noite da última terça-feira feira, quando caiu um aguaceiro em São Paulo, tucanos e petistas se misturaram aos intelectuais do Cebrap para comemorar os 40 anos da instituição, da qual Alencastro também foi ativo colaborador. Lá Roberto Schwarz deixaria registrado o depoimento mais contundente sobre os novos tempos do Brasil na ordem mundial.

Dizendo não se arrepender de ter votado em Lula todas as vezes em que este se candidatou e de avaliar positivamente tanto o seu governo quanto o de Fernando Henrique Cardoso, Scharwz assume os riscos de afirmar que, no futuro, ambos os governos, além do de Collor, serão vistos como um único bloco que melhorou a posição relativa do Brasil na globalização.

Fiel às convicções que um dia inspiraram aquele centro de estudos, Scharwz concluiu: "O que me parece errado é adotar uma visão rósea do capitalismo porque o Brasil está com um vento a favor ou porque temos amigos no governo. A irracionalidade e a destrutividade do capitalismo estão aí, visibilíssimos na crise e no despropósito da mercantilização total. E é nessas discussões que o marxismo finca sua crítica, mesmo que, no momento, não faça muitos adeptos".

Maria Cristina Fernandes é editora de Política. Escreve às sextas-feiras

E-mail mcristina.fernandes@valor.com.br


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