quarta-feira, novembro 11, 2009

ALEXANDRE BARROS

Militar é militar, polícia é polícia


O Estado de S. Paulo - 11/11/2009
Militares são treinados para ver o mundo dividido entre amigos e inimigos. Sua tarefa é matar os inimigos. Polícias existem para proteger comunidades, e não para matar arbitrariamente. Quando polícias executam culpados, suspeitos, criminosos e quem acontece de estar na linha de tiro, isso é crime.

Encarregar profissionais treinados para matar da função de polícia é a melhor maneira de aumentar a truculência e a vitimização de inocentes. Até prova em contrário, só podemos ser punidos por ordem judicial (muitos parlamentares, aparentemente, acham que isso não se aplica a eles). Se o Judiciário é lento, que seja reformado, mas não coloquemos nas armas dos militares a nossa segurança interna e pessoal.

Há soldados profissionais e conscritos. Profissionais sabem matar e não se preocupam com as consequências, porque essa é sua função quando em guerra. Conscritos lá estão forçados pela lei, que os obriga a pagar com um ano de trabalho quase gratuito um imposto que o governo cobra por meio do ultrapassado serviço militar obrigatório.

Servi ao Exército como soldado (a quem interessar por que não fui aprovado em Matemática no exame do CPOR, mais detalhes no meu artigo Dificuldades em Matemática, publicado nesta página e disponível no link: http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20090407/not_imp351155,0.php). Aprendemos a fazer continência, marchar, atirar e a não fazer nada. No meu caso, consertar canhões e obuses. Ainda ignoro por que o Exército achou que eu tinha vocação para mecânico de armamento pesado.

A experiência foi um pesadelo: viver numa instituição total, que a todos despe de qualquer de individualidade, foi uma oportunidade de aprender como funciona uma instituição total, conceito que só vim a conhecer anos depois, já como sociólogo.

O caso mais perigoso do meu serviço militar ocorreu no carnaval de 1962. O quartel ficava numa área do Rio de Janeiro que tem muitos quartéis. Tínhamos de policiar uma praça no subúrbio de Higienópolis (atenção, paulistanos: Higienópolis do Rio não tem nada parecido com Higienópolis de São Paulo; é um subúrbio, naquela época, de classe média baixa). A tarefa era manter a ordem, principalmente se militares se envolvessem em confusões, mas também se civis o fizessem em nossa jurisdição.

Soldados comportaram-se bem. Um civil embriagado passou dos limites e cumprimos o dever, para o qual não estávamos preparados: detivemo-lo e o levamos para a delegacia de polícia. Terminada a burocracia, o encarregado, escrivão, agente ou delegado me disse: "Fique tranquilo, cabo. Na Quarta-Feira de Cinzas a gente solta ele." Caiu sobre mim uma culpa enorme. Um cidadão ia passar dois dias na prisão praticamente por nada. E eu tomei consciência de que tinha recebido de meus comandantes essa tarefa. E mais: esse poder.

De repente me dei conta de que tinha uma arma - naqueles dias, um revólver calibre 45. E eu tinha o direito de usá-la contra pessoas desordeiras, criminosas ou não. E podia fazer isso legalmente. Até hoje isso está na minha cabeça.

Na cabeça ficou-me a insensatez de uma organização entregar uma arma a um menino de 19 anos e dizer-lhe que ele tem o direito de usá-la para defender a ordem pública.

Ser policial não é fácil: a vida é dura, grandes dilemas, a tentação permanente da corrupção e a culpa fica presente quando acontece uma morte. Atribuir a função de polícia a militares treinados para matar é muito pior. É irresponsabilidade.

Lutamos, no Brasil, para restabelecer o controle civil das Forças Armadas. A tarefa não está terminada. Ainda há muitos fios desencapados nessa área.

Dar aos militares poder de policiar entre 1964 e 1979 (ano da anistia) não deu certo e não tem por que dar agora. Para convencer a maior parte das Forças Armadas da legitimidade dessa tarefa foi preciso inventar que o Brasil estava em guerra contra um "inimigo interno". Até hoje oficiais militares se queixam de quanto a corrupção corroeu seus colegas e subordinados naquele tempo.

Militares reprimindo cidadãos são resquícios do tempo em que o mundo se dividia entre nobres e plebeus, quando não havia diferenças entre militares e policiais. A democracia exigiu a divisão de tarefas entre militares, treinados para guerras contra inimigos externos, e policiais, para proteger e servir aos concidadãos. Esse é um componente essencial da democracia.

As grandes potências coloniais usaram seus soldados para policiar e reprimir populações colonizadas porque elas eram vistas como estrangeiras, inimigas e de raça inferior (a metralhadora, quando foi inventada, só podia ser usada contra "nativos", era uma arma traiçoeira demais para ser usada entre "iguais").

Não somos colonizados, inimigos do País, de raça inferior ou cidadãos de segunda. Não queremos os militares, treinados para matar, com poder de polícia, cuidando de nos reprimir. Usar militares como policiais não faz parte do jogo democrático.

Entre 1964 e 1985 (eleição de Tancredo Neves), os militares deram-se o poder de reprimir os que eles definiam como inimigo interno. Tivemos iniquidades, arbitrariedades, torturas e mortes injustificadas (não que não as tenhamos ainda hoje). Não queremos repetir a experiência. Ela não foi boa para nós nem para os militares.

Não creio em contágio. Mas experiências de vizinhos, como as do coronel Hugo Chávez, de Evo Morales, Rafael Correa e outros, me assustam. Transformar militares em policiais é retrocesso. É arriscar a volta a tempos arbitrários e violentos. Não temos saudades deles.

Declarações de altos funcionários públicos republicanos manifestando-se a favor de ideias desse tipo são irresponsabilidades ou fruto de parco conhecimento de História. Talvez também possam ter saudades do autoritarismo.

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