terça-feira, julho 07, 2009

ARNALDO JABOR

Pina Bausch partiu deste mundo mau

O GLOBO - 07/07/09

Pina Bausch morreu. Logo agora que precisamos tão urgentemente de beleza. Quase ninguém falou de sua importância nos cadernos de cultura.

Pina Bausch, uma das maiores coreógrafas da história, revolucionou a dança contemporânea, unindo balé com teatro.

Pina era "grande arte" - coisa rara hoje - para nós que vivemos enganados por uma massificação da poesia, por uma sociologia crítica superficial na arte, por um ufanismo menor ou uma alegria compulsiva de pagodões e pilantragens de mercado para esquecermos o horror social do país.

O discurso oficial do oportunismo chapa-branca nos faz acreditar em nosso "futuro glorioso" que não chega nunca.

A história brasileira é uma novela de ilusões. Enquanto sonhamos, eles roubam. Enquanto acreditamos no futuro, o sistema político nos mente no presente.

Essas últimas semanas foram feias de ver: além dos escândalos diários, vimos a babaquice do PSDB (ninguém sabe mais o que significam os tucanos), tivemos de aguentar a cara-de-pau absoluta do Lula com o bigode do Sarney colado no rosto - vemos que a mentira venceu.
Seduzido e enganado, o povo ama a hipocrisia e a incompetência. A feiura é saudada como "necessária" na política. Além disso, esse governo conseguiu uma coisa quase "revolucionária": usou tão largamente, tão torrencialmente o jogo de alianças tolerantes com o PMDB para sua única ideologia que é o próprio Lula que fez jorrar como um esgoto toda a verdade do patrimonialismo do país que, agora, contemplamos devastados.

Caímos numa espécie de perversão do lixo, um estranho amor pelo circo pegando fogo, uma volúpia pelo excremento, um "frisson" pela ignomínia. Não temos mais para onde olhar. Tudo é feio.

Foi aí que vi nos jornais que Pina Bausch tinha morrido. E pouca gente entre nós sabe quem ela foi, tirando a turma dos cultos e descolados.

Eu estive com ela uma única vez, num bar em São Paulo, e achei que fumava demais, em cadeia, e tive o temor de um câncer a caminho, por sua trêmula palidez. Pina para mim era um dos pontos luminosos da cultura contemporânea. Talvez seja o (a) artista que mais admirei na vida. Sempre que ela vinha ao Brasil, eu corria para vê-la, para passar duas horas (ao menos...) contemplando a mais pura forma de arte da atualidade. Isso; Pina Bausch conseguiu milagrosamente fazer uma arte que posso até chamar de "terapêutica". Dentro de um mundo violento, humilhado, ansioso por alguma grandeza, ela conseguiu nos dar inúmeros trabalhos cheios de delicadeza e paz. Esquecíamos tudo lá fora e ficávamos somente diante da poesia. E não era apenas o êxtase de uma sinfonia ou um grande filme. Não. A grande arte de Pina, a grande arte em geral, nos deixa ver a máquina leve que organiza a composição estética, o segredo do processo criativo. Ela não nos emocionava apenas; ela nos ensinava. Aquela coisa do "beleza é verdade e verdade é beleza" se realizava em seus espetáculos.

A importância artística de Pina é imensa, pois ela conseguiu descrever nossa época com uma mistura rara de sentimentos: angústia ligada à compaixão. Isso: melancolia com esperança.
Há na arte, desde o pós-guerra, o sentimento do absurdo, o horror, a desesperança crítica. Os mendigos de Beckett vagueavam em desertos sem saída. "O Estrangeiro", de Camus, pedia que saudassem sua morte com "vivas" de ódio. Hoje, na literatura, restou um anarquismo sem rumo, detritos masoquistas de uma desesperança superficial, "kafkas pop", "sub-joyces" despejando um automatismo narrativo porra-louca e superficial. Isso tem rendido prestígio e "sentido" a muitos idiotas. Muita gente conhecida transformou falta de talento em estilo, ausência de visão de mundo em "assunto". Descrença, desespero e ceticismo são bons para a promoção de falsos gênios. O "nada" dá lucro.

Pina Bausch, que já é filha da Guerra Fria, nunca esteve nessa. Ela sempre deixou um fio de felicidade passar por entre seus bailarinos solitários, desunidos, dessincronizados, nas tristes roupas cotidianas, pobres ternos, pobres vestidinhos, desamparados transeuntes do nada para o nada. Pina criou um minimalismo afetivo, sem a frieza rancorosa de tantos artistas "engajados", sem a negra alegria de saudar a morte, de festejar a impossibilidade, narrando um juízo, fina oportunista.

Pina sempre viu uma melancólica beleza, "uma intensa luz que não se vê", como cantou Caetano (que também a amava); sempre nos mostrou uma paz "dark" diante desse mundo pós-WTC, pós-Al Qaeda, pós-Bush.

Pina Bausch captava o imperceptível. Seus atores/bailarinos/personagens vivem sempre sozinhos, tentando o amor, tentando uma união que se desfazia e renascia.
Pina via com amor nossos clichês e aprofundava-os, salvava-os, raspando-lhes a casca da repetição óbvia.

Pina humanizava nossos defeitos, nossos ridículos e nos oferecia a própria vida reciclada com carinho, virando-nos em viajantes de nós mesmos.

Seus atores/personagens oscilavam entre desejo e repressão, entre liberdade e medo. Seus espetáculos sempre foram aulas de "grande arte" e, por entre os corpos bailando, percebíamos as influências mais límpidas da arte contemporânea.

Víamos Fellini, claro, víamos Chaplin ali, víamos na cenografia o suprematismo, o minimalismo mais espontâneo, sem o velho exibicionismo vanguardista, víamos Mondrian, Malevitch, víamos os irmãos Marx repetindo as mesmas "routines" de chanchadas, víamos até Beckett raspado de sua depressão doentia.

Ela desenhou, com a espantosa competência poética de seus bailarinos, um painel amplo da melhor criação do século XX.

É isso aí. Quando eu via Pina, eu saía limpo, oxigenado, purificado, pronto para mais uma temporada no inferno da estupidez nacional.

Agora que ela se foi, ficaremos reduzidos ao "Cirque du Soleil"...

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